O PEQUENO PIETRO
 
     Thomas Mark era de meia idade, talvez quarenta e três anos. Aparência fina e as palavras sempre educadas. O seu trabalho no escritório da L&M Building no centro comercial, na Avenida Castro Alves, sala 801, era o resultado de anos dedicados ao trabalho de campo. Engenheiro experiente e com boa convivência, era bom amigo e desejado nas rodas de conversas. Pierre Coutrin, um recém-chegado, e gerente de produção, era o único que doiscordava das suas ideias e sempre criava alguma discussão nas reuniões administrativas. Talvez o jeans desbotado, o sorriso largo, a ausência da gravata e o porsche amarelo 2007 fosse o motivo da inveja. Mas Thomas não lhe dava muito atenção e a presidência sempre aprovava seus argumentos.

     Salvador era uma cidade tranquila e bela, ideal para um mineiro morar. Metrópole rodeada de mar, com lindas praias e o sol de dezembro a dezembro. As águas calmas da baía de Todos os Santos eram celebradas nos passeios de veleiros ao final da tarde. Thomas escolheu a Bahia inicialmente por uma questão de oportunidade, veio trabalhar na L&M Building logo após o término do curso de engenharia na Universidade Federal de Belo Horizonte. Depois de algumas namoradas, todas baianas, resolveu ficar noivo e casar após cinco anos de contínua convivência. Elisabeth era uma mulher que chamava atenção, alta, cabelos negros e pele dourada. Não era de muita conversa e mesmo depois de terminar o curso de arquitetura não tinha muitos amigos. Trabalhava num escritório a uma quadra de Thomas. Ela caminhava alguns metros, atravessava uma pequena praça com árvores, que além das sombras não ofereciam outras belezas, e logo chegava ao seu encontro. Era certo após o expediente se encontrarem para ir ao mercado, shopping, cinema, teatro ou a casa de algum amigo. O Bar Bela Vista, próximo à praia de jardim Armação, era um local que algumas vezes frequentavam. Talvez por possibilitar um encontro mais reservado, em meio à penumbra, paredes rústicas decoradas com esteiras artesanais. Wilson era o garçom preferido, camisa branca, sempre limpa, um bigode bem aparado, voz baixa e discreta. Sempre era possível ouvir alguma discussão entre o casal. Não chegavam a alterar a voz, mas o ambiente de discórdia era óbvio. O rosto tenso, o olhar seco, e os lábios cerrados de Elisabeth eram constantes. Entravam e saiam sempre mantendo uma distância do outro, não muito que viesse a desfazer a aparência de um casal.

     Em alguns momentos Wilson ouvia a conversa dos dois, mesmo que fossem somente partes da discursão. Ficava claro que a questão era o desejo de Thomas. Após dez anos de casados ele desejava um filho. A ideia aterrorizava Elisabeth. Ela sempre dizia que não era o momento. Que não estava preparada. “Como assim? Nós trabalhamos, estamos bem financeiramente. Temos nossa casa. Nossas carreiras estão consolidadas e você já tem trinta e cinco anos. Esperar mais o quê?”

     A pergunta e angústia de Thomas pareciam chegar ao fim. Não haveria mais argumentos para Elisabeth. Eles moravam numa bela casa à beira mar. Mil metros quadrados de jardins, piscina e uma confortável construção de dois andares. O piso térreo era amplo, uma sala de jantar com uma mesa em jacarandá para dez pessoas. Cozinha grande e bem equipada, sala de estar com um imenso sofá vermelho e um high-tec espaço de cinema. Casa bem arejada, ventilada e luz solar por todos os cômodos. No andar de cima ficavam os quartos e o escritório. Vizinho à suíte do casal estava o futuro espaço para o bebê. Thomas projetou com muito carinho. E dentro do closet havia uma porta quase secreta entre os dois quartos.

     Foi nesse ambiente que o pequeno Pietro nasceu. Menino grande, olhos negros, pele morena e sorriso fácil igual ao do pai. Elisabeth parecia angustiada. Ela estava envolta por aquela nova realidade. Não tinha se adaptado à amamentação. As mamas eram cheias, não haviam fissuras, nem dor. Ela simplesmente não aceitava aquela parceria tão íntima. Era como se Pietro lhe roubasse suas entranhas, sua alma. Ela não aceitava aquela intimidade. Nem mesmo iniciara a vida, aquele pequeno ser já começara a tomar alimentos artificiais. Thomas não entendia a razão daquele desinteresse de Elisabeth e as discussões ficaram mais frequentes. Em pouco tempo o número de babás aumentaram e cada vez mais Elisabeth se via descompromissada com os cuidados com o seu filho. Pietro crescia sob aquele distanciamento materno. A distância entre Thomas e Elisabeth era cada vez maior, quase que não conversavam sobre Pietro. Todas as novidades, o sorriso, o primeiro balbuciar, o engatinhar eram relatados com detalhes pelas babás. As discussões aumentaram quando Pietro começou a caminhar. Eram muito frequentes as marcas de quedas. Marcas avermelhadas, inchaços, equimoses tornaram-se comuns em Pietro. Thomas perguntava as babás, mas todas eram firmes em afirmar que não entendiam a razão daqueles traumas, já que Pietro poucas vezes caía. Ângela, a babá mais antiga, amiga da família e de confiança de Thomas, por volta do aniversário de um ano de Pietro, e em função de um hematoma que ele apresentava na coxa, chamou o pai para conversar. As revelações foram brutais. Os relatos das agressões não vistas, mas ouvidas, eram frequentes. Em algum momento do dia Elisabeth ficava sozinha com Pietro e era quando tudo acontecia. Sempre no quarto. Choros que eram abafados pelos gritos de Elizabeth. Além disso houve o relato de algumas visitas de um homem forte e alto, que se chamava Pierre e se apresentava como amigo e colega de trabalho. Aquilo era de fato inusitado e perigoso. Pierre já tinha se tornado inimigo de Thomas. Eles nem mais se falavam na empresa. Sabia do interesse dele pelo seu filho. Era muito comum os colegas mais próximos falarem o quanto o Pierre se interessava em ouvir e perguntava sobre as novidades do pequeno Pietro. Todos sabiam que Pierre já chegando próximo aos cinquenta anos se sentia frustrado por não ter filhos, apesar de quase trinta anos de casamento. A partir daquele instante a convivência entre Thomas e Elisabeth já não era mais possível. Mas, era necessário ter provas daquela denúncia. Uma semana depois, após terem sido instaladas câmeras no quarto, as provas estavam muito bem registradas. Logo em seguida as provas foram para a justiça e Elisabeth foi presa preventivamente, enquanto aguardava o julgamento.

     Até a data do julgamento os noticiários não falavam de outro assunto. Apareciam mais testemunhas e a crueldade daquela mãe parecia monstruosa. Após seis meses da sua condenação a cinco anos de prisão, saiu o parecer da avaliação da medicina forense. Elisabeth sofria de transtorno de personalidade e às vezes de surtos psicóticos. Ela não poderia mais cuidar do filho, só poderia receber visitas dele sob supervisão. Com ajuda do serviço social e da psicologia a vida voltou a sua rotina.

     Era uma manhã semelhante a tantas outras. Dois anos já se passaram. Thomas chega ao escritório por volta das oito horas. Sempre encontra os jornais do dia sobre sua mesa. Ao ler a primeira manchete, ficou paralisado. Não acreditava no que lia. Nessa madrugada havia acontecido uma fuga em massa do presídio, e Elizabeth – a mãe perversa – está sendo procurada. Aqueles segundos pareciam horas, até ele ligar para sua casa. O telefone demorou de se ser atendido, até que Ângela o fez. “Tudo Bem? Você está com Pietro?”, é o que ela ouve, até entender que aquela voz aflita é de Thomas. “Ele tá ali. Deixei-o brincando no jardim enquanto vinha atender ao telefone”, era a voz tranquila de Ângela para o desespero de Thomas. “Vá! Rápido! E o traga para dentro de casa. Não abra a porta para ninguém até eu chegar aí. Coloque-o ao telefone, preciso falar com ele”, disse desesperadamente e aguardou na ligação. “Dr. Thomas, meu Deus! Pietro sumiu. O portão estava aberto. Procurei por toda a casa. Meu Deus!”, era a voz desesperada de Ângela que gritava e chorava. "Meu Deus! Meu Deus, Pietro sumiu! Ele sumiu!"