KELLY, A ESTRANHA

Eu conheci Kelly quando cursava o segundo ano científico, lá pelos anos 60, não me recordo precisamente o ano, mas garanto que foi um dos melhores tempos da minha juventude. Ela era uma garota bonita, de olhos verdes e pele clara, tinha um visual exuberante e o que mais mais me impressionou foi o seu modo estranho, muito misterioso, de olhar as pessoas sem contudo incomodá-las. Era bastante inteligente e compreensiva, apesar de não se infiltrar com freqüência em grupos de colegas do colégio, preferia bater um papo com um, dar um tchau para outro ou simplesmente trocar ideias com quem se dispusesse a falar de estudos. Era altamente intelectual e elogiada pelos colegas de classe e pelos professores e isso me deixou ainda mais decidido a desvendar os segredos que Kelly parecia esconder. Eu não tinha muita intimidade com ela dado ao meu jeito acanhado de conviver com as pessoas, mesmo tendo bastante intimidade. Isso me deixava um tanto frustrado, mas eu fazia o possível para tentar mostrar a todos que era um jovem normal.

Passaram-se alguns meses desde que Kelly havia ingressado no colégio e até então eu não tinha informações mais precisas a seu respeito, onde morava e o que fazia nas horas vagas. Tentei certo dia seguí-la na saída das aulas mas não obtive êxito, ela era muito rápida e se perdia em meio às pessoas na rua e também eu não queria acompanhar seus passos de muito perto. O maximo que eu conseguia na sala de aulas era cumprimentá-la ou trocar alguma ideia a respeito de determinada matéria, o que não tomava muito tempo.

Era uma sexta-feira, chovia bastante na hora que largamos da classe e eu percebi que Kelly estava sem sombrinha e eu de guarda-chuva em punho reuni coragem e lhe ofereci uma carona até o ponto do ônibus. Esperei um "não" dela, porém me surpreendi com a sua resposta quando simplesmente me convidou para irmos até o pátio onde existia uma quadra coberta, pois precisava falar comigo. Aquilo me deixou em estado de êxtase e eu quase não consegui acreditar no que estava ouvindo. Ela sorriu e disse: "vem, vamos conversar!". No prineiro passo que dei em sua direção, já percebendo sua mão macia tocar a minha no intuito de me puxar, fomos interrompidos por uma buzina que tocou na frente do colégio. Era um veículo moderno cujo motorista acenou para ela, que voltou imediatamente após me dizer "depois a gente se fala". Fiquei atônito e sem entender o que acontecia e quem era que havia estacionado o carro na frente do colégio e a chamara. Notei o seu sorriso um pouco "sem jeito" e meu coração batia aceleradamente. Eu estava convicto de que algo interessantei ia acontecer lá na quadra e isso ficou martelando em minha mente o resto da tarde. Depois que ela foi embora no carro eu imaginava que pudesse ser o seu pai ou alguma pessoa da família, talvez até um motorista particular que tinha sido enviado para apanhá-la. Como o sujeito era bastante jovem deduzi que podia ser seu namorado, apesar dela nunca ter comentado nada sobre isso.

A tarde pareceu longa para mim e eu não conseguia apagar aquela cena da minha mente, logo agora que imaginava algo surpreendente acontecer na minha vida. Fiquei confuso e inquieto, queria uma solução imediata para desvendar mais esse mistério e esperei ansiosamente o dia terminar, chegar a noite e até fui dormir mais cedo na esperança de acordar pela manhã já interessado em encontrá-la e saber o que Kelly queria me falar. Confesso que a noite foi bastante longa e nem consegui pregar os olhos tamanho era o meu desejo de vê-la na minha frente e dizer-me o que desejava. Até sonhei com esse momento e nele eu me senti um jovem apaixonado e carinhoso, tocando suas mãos com delicadeza e fitando seus lindos olhos imaginando beijar aquela boca carnuda e sensual, mas a coragem fugia de mim, eu não conseguia sequer falar alguma coisa. O sonho se repetia a cada momento que eu acordava de sobressalto, isso durante a madrugada toda, eu me sentia perplexo com tudo isso.

Finalmente o dia amanheceu, tomei meu café da manhã depois de um banho refrescante. Me perfumei na saída de casa e cheguei ofegante no colégio devido a pressa de me deparar com a garota dos meus sonhos. Na hora da aula entrei tranquilamente na classe e me sentei em minha carteira, procurei demonstrar calma e fazer de conta que estava tudo normal, porém o meu semblante me traía e alguns colegas perguntaram se estava tudo bem. Era visível a minha inquietação e só eu não percebia. Olhei discretamente para a carteira de Kelly e notei que estava vazia, o que me levou a pensar que havia se atrasado, mas a aula teve início e ela não apareceu, o que me deixou bastante transtornado. Não consegui me concentrar na classe e o professor notou o meu estado de espírito, o que me fez tentar reagir de forma que tudo se normalizasse, o que certamente aconteceu apesar de intimamente estar frustrado. No final das aulas saí da classe de cabeça baixa sabendo que Kelly não tinha ido ao colégio e o motivo para mim era mais um mistério.

Passaram-se alguns dias sem que a misteriosa garota encantada frequentasse o colégio e na secretaria fui informado que ela havia pedido dispensa por motivo de viagem. Para mim foi como se o mundo viesse abaixo e eu sofri muito com a sua falta, não conseguia entender o que realmente estava ocorrendo. Tudo mudou na minha vida, me senti "desprezado" por quem eu imaginava ser um dia a mulher da minha vida. O que ela queria me dizer naquela fatídica manhã de chuva quando um motorista buzinou e praticamente "arrancou" de mim a oportunidade de tê-la bem pertinho? Por que isso? Isso ficou martelando em minha mente até o final do ano e nos anos seguintes, até eu mudar de colégio.

Nunca consegui esquecer Kelly, ela permaneceu no meu pensamento por muitos anos mesmo eu me relacionando com outras garotas. Inevitavelmente eu "via" Kelly em qualquer garota que tivesse o seu perfil, a sua semelhança física, tentava até chegar mais perto para ter a certeza de que não era ela. Décadas se passaram, anos de pensamentos e de perguntas sem respostas, todos os momentos vividos com ela ficaram "registrados" no meu cérebro e não sei se um dia terei uma oportunidade de entender o que aconteceu.

Moacir Rodrigues
Enviado por Moacir Rodrigues em 06/12/2018
Reeditado em 06/12/2018
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