O lêmur de Lugduno

Quando cheguei ao escritório na dilua de manhã, encontrei meu sócio Tertius Acilius conversando com uma cliente, uma matrona loura vestida na última moda romana: cabelos cobertos por um véu de seda lilás debruado a ouro, muitos braceletes de cobre nos braços e brincos com pingentes de coral que lhe davam uma aparência sedutoramente bárbara.

- Ah, este é o meu sócio, Publius Secundinius - apresentou-me ele.

E, indicando a dama:

- Domina Canutia Proba, dos Germanicus de Lugduno.

- Salve, psicopompo! - Cumprimentou-me a dama, inclinando a cabeça e abrindo um sorriso simpático.

- Salve, domina - repliquei, tomando assento ao lado dela. - Que parte da história eu perdi?

- Na verdade, muito pouco. Eu estava começando a contar ao seu sócio sobre as circunstâncias que me fizeram vir até ao Caligo Psicopompos...

- Desde Lugduno? - Ergui os sobrolhos, admirado.

- Na verdade, eu resido aqui, em Ebora Cerealis, faz alguns anos - explicou ela. - Mas tenho negócios em Lugduno, de onde minha família provém e onde nasci.

Não por coincidência, Canutia Proba possuía uma vila de veraneio próxima a de uma outra cliente nossa de Pax Julia, Considia Pascentia. Neste negócio, como eu sempre afirmava, o boca a boca funcionava melhor do que anúncios na televisio.

- Deixe-me recapitular... - comentei ao fim da história. - A domina herdou um palacete no centro de Lugduno, no qual pretendia residir, ou vender... todavia, o mesmo está sendo assombrado por um espírito malévolo?

- Eis aí o problema; - avaliou a dama - a entidade comporta-se como um espírito malévolo, mas segundo a análise de um dos seus colegas de Lugduno, Octavianus Decumius, trata-se realmente do meu falecido tio, Amulius Probus, o qual eu não via há muitos anos, mas que teve a bondade de me indicar herdeira do palacete em seu testamento.

Eu e meu sócio trocamos um olhar de compreensão.

- É a primeira vez que ouço falar de um manes que vira um lêmur - declarou placidamente Tertius Acilius.

- Como faleceu exatamente o seu tio? - Indaguei.

- Caiu do navio durante uma viagem às Ilhas Gregas... o corpo nunca foi recuperado.

- Que conveniente! - Exclamei.

- Perdão? - A dama me encarou, surpresa.

- Alguém morre num local do qual seu corpo não pode ser recuperado... em seguida, seu espírito surge num imóvel de sua propriedade. Parece um roteiro clássico de assombração por lêmur - analisei. - O problema é que, se o falecido havia deixado o palacete em testamento para a sobrinha, porque iria desejar justamente assombrá-la?

- Fiz esta mesma pergunta ao Octavianus Decumius - retrucou a dama.

- E o que ele respondeu? - Perguntou meu sócio.

- Que o espírito do meu tio havia mudado de ideia.

Não olhei para Tertius Acilius, pois temi que ambos caíssemos na gargalhada.

- Antes que pensem que se trata de uma piada de mau gosto, eu mesma vi o fantasma!

Encaramos Canutia Proba, e ela estava bem séria.

* * *

- O nosso serviço já foi mais fácil - comentou meu sócio com resignação, depois que a cliente se foi.

- Nos tempos clássicos, talvez - retruquei. - Hoje em dia, ser psicopompo envolve conhecimentos de saúde pública e até mesmo fazer investigação privada. Por sorte, temos a interrete.

Estávamos sentados em frente ao monitório do computrato, acessando a rede mundial de informações. Eu não iria me lançar na longa viagem entre a Lusitânia e a Gália sem antes saber com quem estava lidando. O acesso à interrete era caro e censurado, mas valia cada denário investido.

- Isso também significa dizer que podemos cobrar mais caro - ponderou Tertius Acilius.

- E vamos cobrar - assegurei. - Despesas de transporte aéreo e estadia inclusos na conta da loura gaulesa.

- Esses caras têm dinheiro - avaliou meu sócio, me vendo abrir um relatório gerencial sobre a saúde financeira dos Germanicus de Lugduno.

- Dinheiro, pelo visto, atrai acidentes em viagens de turismo... e fantasmas - retorqui, abrindo outra aba no navigatro. - Olha isso: segundo a "Acta Lugduni", os servos do palacete chamaram a Vigilância Pública logo depois da morte de Amulius Probus... pedras foram atiradas contra o telhado e ouviram um arrastar de correntes no meio da noite. Nenhum suspeito foi preso. Em seguida, o filho mais velho do falecido, Vopiscus Probus requisitou os serviços do nosso colega Octavianus Decumius, que confirmou estar o palacete assombrado por um lêmur.

- Ainda não identificado como de Amulius Probus?

- Ainda não positivamente identificado como de Amulius Probus - assenti.

- E segundo a nossa cliente, tudo isso ocorreu antes da chegada dela - comentou meu sócio, apertando os olhos para enxergar os caracteres miúdos na tela.

- Mas o conteúdo do testamento já era conhecido... - ponderei. - Portanto, ela iria herdar um imóvel assombrado, e com preço de venda em declínio.

- Para alguém querendo pagar um preço aviltado, seria um excelente negócio. SE o imóvel não estiver assombrado - meu sócio reclinou-se em sua cadeira.

- Aposto uma garrafa de vinho da Tessália que não está.

- Feito! - Acedeu ele. - Desde que não seja daquelas garrafas de vidro azul...

* * *

Na manhã seguinte, vestido com o terno preto que me identificava como psicopompo (embora volta e meia me confundissem com um registrador de maldições), mochila às costas, fui de taxiraeda até a estação de laofórios de Ebora Cerealis. Ali, paguei um denário e cinco asses por uma passagem até Olisipo, já que apenas de lá eu conseguiria um voo direto para Lugduno. A viagem no veículo de três eixos, movido a etanol, foi relativamente rápida (cerca de duas horas) e confortável: em vez dos bancos de madeira dos laofórios que faziam as rotas do interior, para a capital da Lusitânia haviam instalado assentos de plástico (anatômicos, segundo a propaganda oficial). Mais um taxiraeda, em meio ao trânsito caótico de Olisipo em época de festa (ironicamente, o primeiro dia da Parentália, em homenagem aos mortos), e cheguei ao aeroporto flutuante do rio Tagus. Não era a primeira vez em que eu iria viajar de aeroplano, mas nunca havia embarcado em nada tão grande quanto o Noviplano para 100 passageiros que flutuava junto a um dos atracadouros. O casco fusiforme, pintado de branco e com uma fileira de janelas retangulares ao longo da estrutura, era encimado por três conjuntos de três asas, sustentando oito motores.

- Olha o amuleto! - Gritava um peregrino africano, caminhando ao longo do cais. - Não voe sem um amuleto!

A maioria dos passageiros rumando ao embarque, ignorou completamente o rapaz. Como sou favorável a quem trabalha, mesmo que seja vendendo quinquilharias, parei para comprar um e dar uma força.

- Quanto é? - Indaguei.

- Apenas um asse, dominus!

Paguei, pendurei o amuleto no pescoço (uma medalhinha dourada de Apolo) e já estava seguindo com a fila quando ouvi o ambulante gritar:

- Até o registrador de maldições comprou meu amuleto! Compre você também! Não voe sem a proteção dos deuses!

Virei-me para reclamar que não era registrador de maldições, mas como já estava perto da porta do hidroplano, achei melhor deixar passar.

- Não sou registrador de maldições - avisei à sorridente atendente que aguardava a entrada dos passageiros na aeronave.

- Eu reconheço um psicopompo de longe, dominus - redarguiu ela sem deixar de sorrir.

Com o sol a pino, pouco depois da hora sexta e dentro do prazo previsto, decolamos das águas do Tagus para os céus da Lusitânia. Numa viagem com duração estimada em quatro horas e apenas uma escala em Salduba, na Hispânia, eu teria bastante tempo para ler o material que imprimira na tarde anterior sobre o estranho caso do lêmur de Lugduno...

[Continua em "Um ritual em Lugduno"]

- [19-12-2018]