O Mistério de Aurélio

Talvez a psicologia ou a psicanálise, místicos ou pais de santo, mentores espirituais ou clérigos, etc: algo ou alguém, sem especificar a designação ou a esfera de investigação que se possa desenvolver para explicar o mistério que acometia Aurélio, será de fundamental importância para a humanidade em casos de circunstâncias parecidas.

De dia, Aurélio era um homem comum, típico brasileiro que acorda cedo, beija sua esposa com boca de café e sai para a labuta. Chega na empresa, espera o horário correto para bater o cartão, fala de futebol com os colegas e começa a trabalhar na metalúrgica. À uma, sai para almoçar, descansa um pouco nos duros bancos cimentados do jardim da empresa e, quando despertado pelos colegas, volve a trabalhar.

Ao cair da noite, a parafrasear a película de Trey Edward Shults, antes de as coisas tornarem-se estranhas em seu lar alugado, continuava a sua rotina de homem comum assalariado e fodido da zona urbana paulistana: chegava em seu bairro, passava no bar, bebia umas cervejas geladas, algo mais quente para marear um pouco e, por conseguinte, ainda passava à padaria a levar alguns pães à casa.

Chegava à casa, um pouco embriagado, deixava os pães em qualquer lugar visível à Ana Flávia e anunciava sua chegada com um berro. Não tinham filhos, pois o pouco salário mal dava para suster os caros ansiolíticos da esposa e o alcoolismo do marido. Chegava à porta do quarto - a não aproximar-se da cama para que a mulher não “descobrisse” através do odor que ele bebera aquele dia - e dava-lha boas noites. Em seguida, dirigia-se ao banheiro. Fazia alguma hora no toalete: barbeava-se (a se cortar bastante pela imprecisão causada pela embriaguez), cagava, espremia espinhas e várias outras coisas até tomar seu banho.

Com a embriaguez mais controlada, porém ainda a sentir certos mareios, ele esquentava a sua janta e assistia um pouco à televisão.

Contudo, antes de dormir, quando o relógio batia exatamente 23h53, os ocorridos estranhos começavam a se propagar: punha-se Aurélio de quatro, ao solo, a aulir. Uivava como se fosse o lobo da estepe. Era o momento em que Ana Flávia levantava-se para trancar seu quarto a chave.

Aurélio circulava a casa, a farejar o chão, a ir sempre em direção à porta do quarto do casal. À porta, de joelhos - a pensar ser um cão -, raspava ele a unha, a querer adentrar o quarto e dormir ao lado da esposa - a ladrar e chorar à porta. Ora latia, ora saía para urinar em alguma esquina da casa. Todas as noites havia muitos anos era Aurélio acometido daquela estranha sensação de lobisomem moderno: a estranheza de sua essência era tornar-se um noturno homem-cão.

Guilherme Zelig
Enviado por Guilherme Zelig em 21/12/2018
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