O CAIÇARA

A CHACINA NO SITIO

ANO DE 2009 – NA CIDADE DE RIO GRANDE.

Ele a pegou com brutalidade e a jogou no chão, logo, subiu sobre ela, pegou um tijolo que estava por perto e a golpeou, ela, para se defender, colocou as mãos na cabeça, cobrindo a face, o artefato atingiu-a sobre as mãos, outros golpes se sucederam.

Sai afoito, rumando para a casa que distava a uns cem metros; no caminho pega uma acha de lenha em uma pilha, ao chegar a casa, desfecha varias pauladas no homem; logo vem à mulher que também é abatida a pauladas.

Naquela tarde, o termômetro marcava trinta e oito graus e três décimos. O escritório da delegacia de policia estava tão quente que era quase impossível trabalhar; o ar condicionado havia estragado e o conserto tinha atrasado.

Um ventilador de teto coberto de ferrugem movimentava o ar quente e gemia lamurientamente a cada volta. Lá fora pairava um mormaço predecessor de chuva, talvez tempestade de novembro. Era como se a Terra estivesse morrendo de embolia.

O telefone toca.

- Alo, é da delegacia de polícia?

- Sim, o inspetor Rodrigão falando.

- Aqui fala José Leotário Silveira. Eu acabo de chegar ao meu sitio e encontrei o casal de agregados mortos. Aparentemente por pauladas.

- Não mecha em nada e diga onde fica o sitio, senhor José.

- Fica na estrada que vai da Quinta para Povo Novo. É só cruzar a vila pela rua principal, logo ao passar por um pontilhão, na primeira entrada a esquerda.

- Estamos indo. Espere no local até chegarmos.

- Sim, estarei esperando.

A caminhoneta da policia chega ao local, desce o inspetor Rodrigão, acompanhado de dois policiais militares.

A cena do crime: O casal de moradores, mortos a pauladas. Após as investigações de praxe, a arma do crime, não foi encontrada. Uma investigação mais acurada levou os policiais a um galpão que distava mais de cem metros da casa onde houvera os assassinatos. O corpo de uma jovem foi encontrado; disse o proprietário que a moça teria apenas vinte e poucos anos. A polícia concluiu que fora morta com uma tijolada na fronte.

Logo o médico legista foi chamado.

As mãos da vítima estavam dilaceradas como que tivesse tentado impedir a agressão.

Carlos Ribeniche, o médico legista, deu por terminado o seu exame, ergueu-se e sacudiu o pó da calça. Olhou para o inspetor Rodrigão e disse:

- É tudo de vocês.

Rodrigão era um profissional, um homem de aspecto capaz, com uma folha de serviços impressionante. Tinha o cabelo cinzento e grisalho e refletia a postura de quem já vira tudo aquilo muitas vezes.

-O que é que temos?- perguntou Rodrigão.

- A causa óbvia, é o amassamento do crânio, com perda de massa cefálica. Parece que o autor queria que morresse imediatamente.

O Casal recebeu diversas pauladas, com quebra de costelas e amassamentos no crânio.

E quanto à hora da morte?

O legista olhou para os corpos:

- Difícil de estabelecer. Imagino que o tenha sido há mais de seis horas. Dada a temperatura corporal e a rigidez cadavérica ainda não concluída.

Daqui a algumas horas posso dar um relatório completo, assim que o IML levar o corpo para a autópsia.

O local foi minudamente vasculhado e fotografado, logo após, os corpos foram enviados para o IML.

Nos dias posteriores, foi feito o que era possível para lançar alguma luz sobre os misteriosos assassinatos.

O proprietário da chácara custeou todos os sepultamentos.

Seguindo uma velha experiência, agentes da polícia civil ficaram de olho no cemitério durante os enterros. Todos os que compareceram foram rigorosamente observados.

Os assassinos retornam com frequência às suas vítimas para ver como são enterradas. O impulso para fazer isso deve ser maior do que o de retornar ao local do crime.

A polícia instaurou inquérito para investigar a matança.

Concomitantemente aos assassinatos, foi preso um andarilho, que caminhava pela região e tinha sido visto nas cercanias do sitio no dia do aniquilamento. Rodrigão mandou prendê-lo para averiguações. O homem vestido com andrajos, carregando um saco com utensílio, foi encontrado acampado a beira da estrada e levado para o posto policial.

Ele parecia ser excepcional, falava com dificuldade, compassando as palavras, que mal podiam ser entendidas.

Foi achada entre seus molambos, uma corrente de ouro com uma medalhinha de Nossa Senhora Aparecida.

Quando perguntado, respondeu que há havia achado na rua. Chamado o dono do sitio, onde houvera a chacina, este identificou a peça com sendo da moça assassinada.

O errante foi interrogado exaustivamente e nada revelou, apenas disse que se chamava Leo e que havia encontrado a correntinha e que não tinha nada a ver com o os crimes, dos quais estava sendo acusando. Em certo momento do interrogatório, o homem chorou levemente, estendeu as mãos como um cego e caiu no chão como um fardo inerte. Nada mais lhe foi perguntado.

O inspetor, no fundo do seu âmago, sábia que o interrogado não era culpado daquele terror. Encostou-se na guarda da cadeira e olhou para seu pequeno relógio redondo de pulso. Em seguida deu uma olhada para a mesa, onde estavam às fotos dos crimes e pensa:

- Não é possível, há algo errado nisso tudo, mas tenho de cumprir minha obrigação.

Por haver um indício de prova, a correntinha que pertencera a uma das vítimas, foi obrigado a apresentar o caso à promotoria pública que decidiria se instauraria inquérito judicial, indiciando o suspeito.

À noite, quando se encontrava exausto em seu gabinete, relendo os protocolos, desanimado, deprimido, desapontado, o inspetor resolve investigar quem eram as vítimas, procuraria na circunvizinhança alguma informação que o levasse a alguma nova hipótese da motivação dos crimes.

Na manhã seguinte, cedo levantara e se dirigiu as cercanias do sitio, onde houvera o brutal crime.

O vizinho mais próximo era um casal de velhos, que viviam sozinhos. Quando se apresentou como sendo inspetor de policia, o rosto da velha senhora estava branco, os olhos arregalados e a respiração inaudível; no rosto de seu marido havia uma expressão que poderia muito bem ter sido provocada pela reação de sua mulher.

Após haver explicado que queria apenas alguma informação sobre os assassinados no sítio ao lado, e que eles não eram suspeitos de nada, ficaram mais tranquilos e o convidaram a entrar.

A anciã disse que conhecia o casal e sua filha, mas que não os visitavam, pois eram muito caseiros e somente saiam para ir a missa aos domingos e para fazerem compras, mas que o proprietário do sitio, poderia prestar maiores esclarecimentos sobre a vida de seus empregados.

A mansão, do proprietário do sitio, ficava na estância, há mais de cem quilômetros e um pouco afastada das casas dos empregados, num imenso parque muito bem cuidado, mantido em ordem por um jardineiro. Larga escadaria de pedra conduzia o acesso de carros à entrada. O oficial da polícia contemplou o salão de entrada da mansão, um átrio com janelas que chegavam ao chão. Apesar da hora, o senhor José Leotário Silveira estava em casa e recebeu o inspetor e o levou para a biblioteca e a primeira coisa que fez foi oferecer uma bebida, que Rodrigão recusou - para desgosto de José Leotário, era fiel à regra de validade na policia "bebida e trabalho não se misturam”.

O entrevistado serviu e tomou uma dose de wiski. Era a terceira ou quarta desde que recebera a comunicação da visita da polícia, menos de uma hora atrás. Apesar disso, ainda estava em condições de dar respostas precisas às perguntas de Rodrigão.

As perguntas foram tranquilas, o inspetor queria saber: se a família tinha algum desafeto, se a moça tinha namorado e coisas desse tipo.

O entrevistado informou que o sitio tinha sido comprado por seu sogro, que o usava em tempos idos, para descansar o gado que enviava ao abatedouro. O que hoje não é mais necessário dado ao transporte rodoviário. Mas que mantivera o sitio com um casal de agregados, para não os desamparar.

As respostas foram precisas, quanto a parentes o entrevistado disse que a família tivera um filho, que aos nove anos fora adotado por um tio, pois o garoto parecia sofrer de distúrbios emocionais. Nunca mais ouviu falar do garoto.

- Talvez o senhor não goste da próxima pergunta, mas ela é de importância decisiva: como era a postura de moça com relação aos homens?

- Entendo o que o senhor quer dizer... Não, ela era uma moça decente.

- O senhor sabe se ainda era virgem?

- Não, isto é, entendo que não era mais virgem. Mas também não era uma moça que mudasse de homem a cada semana. Tivera um namorado, mas o rapaz se mudou para outra cidade e eles terminaram o namoro.

- Sabe se ela namorava alguém ultimamente?

- Que eu saiba, não namorava ninguém ultimamente.

- Foi de grande ajuda as suas informações.

- Estarei sempre às ordens para ajudar na solução dos assassinatos, senhor inspetor.

Mal o inspetor chegou à delegacia, o comissário de plantão lhe informou:

- Inspetor! Tem um homem ai que quer falar com o senhor é sobre os crimes do sitio.

- Onde ele está?

- Tá na sala de interrogatório.

- Por que ele esta lá?

- Disse que foi ele o autor dos crimes.

- Vamos ver o que esse cara tem a nos informar.

Adentrou na sala, lá estava o homem, sentado a mesa, com os cotovelos apoiados em ambas as mãos no rosto.

Ao ver o inspetor, levantou a cabeça e olhou o demoradamente.

- Então, você quer confessar os assassinatos do sitio?

- Sim, eu sou o assassino, quero ser interrogado.

Rodrigão olhou para o homem e logo pensou:

- Esse cara é um doido varrido, só pelo aspecto já da para ver. No mínimo quer gozar da minha cara. Vou dar corda para ele se enforcar.

- Qual é o seu nome? - perguntou o inspetor.

O confesso assassino esboçou um sorriso.

- Pelo que me lembre Jorge.

- Sim, é o que está escrito em seus documentos. Mas é mesmo seu verdadeiro nome?

- Se está nos documentos, claro que é - respondeu o interrogado.

- Não foi isso o que eu disse. Quantas vezes você já os perdeu?

- Meus documentos?

- Sim. Eu sei que eles já foram renovados algumas vezes.

- Não sei dizer ao certo quantas vezes.

- Está vendo? Eu sei como vocês fazem a coisa. Quando perdem os documentos, entram satisfeitos no registro civil mais próximo e pedem segunda via. De graça, é claro.

E muitas vezes o registro civil não tem outra opção a não ser confiar nos dados que vocês fornecem. Uma vez eu lidei com um cara que trocou de nome mais de quatro vezes no decorrer de um ano. E você? Já trocou de nome alguma vez?

- Não senhor, este e o meu nome verdadeiro.

- O que é que você faz atualmente?

- Era bancário, senhor inspetor.

- Era, e agora o que é?

- Sou desocupado, não consegui mais emprego.

- O que foi que o levou a praticar os assassinatos?

- Não sei, deu-me uma loucura, e quando eu vi, já havia matado as três pessoas.

- Diga o que foi fazer no sitio?

- Eu tava olhando para a garota e fui pegar ela, quando apareceram os pais, e ai, eu tive de matar a todos.

- Matou-os ao mesmo tempo?

- Sim, eu me assustei e comecei a dar pauladas neles.

- Cai fora seu vagabundo doido, você não matou ninguém.

Se aparecer aqui novamente, vou mandar baixar o sarrafo em você.

O homem saiu e Rodrigão pensa:

- Se vou perder tempo com esse maluco, nem sabe como os crimes aconteceram. Interessante é investigar o filho do casal, mas como vou achá-lo?

O andarilho foi indiciado por crime doloso, isto é, com intenção de matar e fora confinado no presídio estadual de Rio Grande onde aguardava seu julgamento.

O inspetor Rodrigão, enquanto isso continua suas investigações, pois não acreditava que o andarilho fosse o assassino.

Sentado a frente de sua escrivanhia, ele pensava:

-O cartório me informará o nome do garoto, que por sinal deve ser adulto há muito tempo.

O registro de nascimento constava Marsal Medina, nascido em 28 de maio de 1972.

O DETRAN informou todos os dados do procurado e seu domicilio.

CAPITULO II

CAMINHANDO NA PRAIA

ANO DE 2010

Em seu cérebro estavam nítidas as imagens que lhe causavam tão grande desgosto. Podia ver o semblante do magistrado, insistindo na conciliação, tudo para sua esposa e quase nada para ele. Podia ver a expressão no rosto de seu filho, de dez anos, parecia que o olhava com pena e compaixão.

Seu advogado chamou-lhe atenção para o fato que o pior acordo, seria melhor que a mais benevolente decisão judicial, pois o Juiz se mostrava visivelmente a favor de sua mulher, que ficara com aguarda do filho.

Concordou em ficar com o carro e com o apartamento de Capão da Canoa, teria de se refugiar em algum lugar. O carro lhe serviria para se mover sem saber para onde, mas poderia fazê-lo quando bem lhe conviesse.

Atônito saiu da audiência, estava tudo terminado, sua esposa não lhe pedira qualquer ajuda para criar o garoto, pois de antemão sabia que ele não ganharia dinheiro nem para sustentar o seu vicio e que o seu fim estaria próximo.

Deu a partida no carro, com o cascalho jorrando sob os pneus. Estava sóbrio, não se arriscaria comparecer a audiência embriagado.

Chegara a Capão da Canoa, por volta das dezenove horas. A cidade estava quase deserta, pois o vento frio açoitava tudo o que vinha pela frente. Seu apartamento, no quinto andar de um edifício-grande, agradável à vista, com seis andares. O AP que a muito estava fechado e cheirava a mofo. As portas, comidas por cupins, deixaram o piso cheio de farelos de madeira e outros resíduos. Abriu a janela frontal para arejar, mas teve logo de fechá-la, pois o vento invadiu o ambiente movendo tudo o que estava solto. Um vaso de porcelana, com algumas flores artificiais, despencou no piso, quebrando-se. Procurou pelo apartamento todo e não encontrou qualquer tipo de bebida, sua mão já começa a tremer por falta de álcool. Resistiu, tomou um banho e jogou-se na cama, o cansaço era grande motivado por um dia interminável com extremas tensões. O sono logo veio seguido do pesadelo que o atormentava há tempos. Ela quer soltar outro grito, debate-se, chuta para trás... Um murmúrio incontido penetra em seus ouvidos. Seus olhos expressam terror. Terror e medo da morte. Um objeto duro choca-se contra sua cabeça e ela desfalece e logo tudo se torna escuro.

O homem desfechava golpes com uma acha de lenha, em pessoas, às quais, não podia ver nitidamente. Via os corpos caídos no solo, mutilados pelas pancadas. O agressor sai discretamente do local, carregando a arma do crime. O assassino tinha uma aparência inusitadamente sombria, sua face da cor de cera de tão pálida. Gesticulava com a mão esquerda e com a direita apertava a acha de lenha que lhe servira de arma mortífera.

Acordou em sobressalto, o suor correm-lhe das axilas, as têmporas lhe doem, os ouvidos zunbiam. Levanta, toma uma ducha e se acalma, por algum momento, olha o relógio que marcava duas horas e vinte e cinco minutos. Pensa sair e tomar alguma bebida, mas desiste, já é muito tarde, nada estará aberto. Passava das quatro horas da manhã quando ele adormece novamente.

Às dez horas, acordou, colocou seu abrigo de inverno e deixou o edifício a procura de um lugar que lhe servisse um dejejum.

Foi numa lancheria a duas quadras do edifício que ele conseguiu uma xícara de café e dois sanduíches, que lhe servira de dejejum.

Rumou para a praia. Os tênis martelavam o cimento rachado da calçada, a respiração produzia um ruído áspero na garganta cada vez mais seca e fria. A cabeça começou a latejar com força. Uma parte mordaz de sua mente lhe perguntava se ele seria capaz de correr, se ainda aguentaria correr uns poucos quilômetros? Naquele momento se considerava livre, pois aos trinta e oito anos, saíra de uma relação conturbada, que o deixara quase que sem fundos, a maioria dos bens ficara com seu cônjuge e com os vorazes advogados. Não culpava sua esposa, atribuía tudo a sua ausência na igreja, seu lugar cativo nos bares da capital gaúcha e seu vicio de embriagues. Não abrigava a menor dúvida que estes teriam sido os motivos de sua derrocada.

Marsal Medina, homem de altura acima da média, teria um metro e noventa, pesava noventa e sete quilos. Seus cabelos castanhos escuros, com corte mediano, caiam para ambos os lados, deixando aparecer duas entradas nas laterais, que anunciavam o inicio de uma grande calva. Sua barba, bem aparada, com fios de aproximadamente um centímetro, lhe cobria todo o rosto.

Caminhando, a passos largos, chegou à praia, onde havia apenas dois pescadores, com seus caniços lançados. Encetou sua caminhada ao longo da praia, forçando o passo para aquecer o corpo enregelado pelo vento. Logo começou a correr moderadamente. Já estava ofegante, quando avistou ao longe uma figura que caminhava solitária. Ao se aproximar pode ver que se tratava de uma pessoa do sexo oposto. Interrompeu a corrida para poder melhor apreciá-la, voltando a caminhar com passos lentos. Olhando-a atentamente pode ver que se tratava de uma mulher de corpo esguio, com altura aproximada de um metro e oitenta, corpo bem formado, pois enchia o abrigo, aparecendo os contornos de seus glúteos. Cobria-lhe a cabeça um capuz que não deixava aparecer sequer os cabelos. E, ele imaginava como seria seu rosto, em forma delicada, talvez uma pele morena, lábios em forma de coração, os olhos dançantes, dum verde profundo, os abundantes cabelos crespos e castanhos. Ah! Sem dúvida, uma destas criaturas que se enclavinham na nossa memória — e nos perturbam nas noites de insônia.

A sua frente à figura mais imaginativa do que real, de quando em vez abria os braços longos e saltava delicadamente um córrego que cortava a praia para terminar no oceano.

Ele a imagina como uma garça em movimentos compassados pela leveza como se movimentava.

Diminuiu o passo, pois não queria ultrapassá-la e perder a imagem que tinha a sua frente. Embora desejasse ardentemente ver seu rosto, no entanto, isso poderia ser feito mais adiante.

De repente ela se dirige ao oceano, onde as grandes ondas quebravam na praia, impulsionadas pelo vento. Ele instintivamente começa a olhá-la. Ela adentra no oceano e é tragada por uma grande onda e desaparece. Ele correu, e logo adentrou no oceano, para tentar salvá-la, mas foi surpreendido por uma grande onda que o derrubou e o levou a esmerilhar seu corpo na areia do fundo, em uma sequência de rodopios. Debatendo-se, consegue emergir, quando uma nova onda o atinge e o afunda novamente, tentando levá-lo para o fundo. Equilibrou-se e subiu a tona e começou a bracear desesperadamente lutando por sua vida. Logo sentiu os pés se apoiarem na areia e soergueu o corpo olhando para todos os lados a procura da mulher que afundara. Com o corpo enrijecido pelo frio, correu para fora da água gélida. Seu corpo tremia sem parar, seus dentes crepitavam uns contra os outros, sentiu que sucumbiria se ali permanecesse, correu para pedir socorro aos pescadores solitários.

- Ei você! Viu uma mulher com um abrigo cinza, que passou por aqui?

- Não, não vi ninguém, apenas você passou por aqui enquanto eu pescava.

- Ela entrou no oceano, eu quis socorrê-la, mas não fui capaz de dominar as ondas e ela desapareceu.

- Você está enganado, não há mulher alguma na praia, estou aqui desde cedo e não vi ninguém, salvo você e aquele outro pescador. Pergunte a ele se viu alguém.

O Caiçara correu até o outro pescador que distava mais de cem metros. Era um velho caboclo de mais de oitenta anos, com pele encarquilhada e carapinha branca, o nariz enorme, a boca de beiços gros¬sos e vermelhos, pernas meio tortas, braços ossudos e flácidos as suas carnes, mãos abrutalhada, meio corcunda, camisa fora das calças e, ao pescoço, pendentes de um cordão encardido, com vários amuletos. "Tá perdido?", perguntou com a sua voz gutural, o pescador.

- Não, só quero saber se você viu uma mulher passar por aqui, há apenas alguns minutos atrás?

- Não vi não sô! To aqui “diahoje” cedo, só vi “ocê” chegá e ninguém mais, não senhô.

- Mas ela somente poderia ter passado por aqui, pois estava se dirigindo para lá - apontando para o lado contrário.

- Não, sô, ocê deve esta enganado, vá se esquentá ocê tá todo molhado, vai pegá uma “penomunia”, querendo dizer pneumonia.

Imerso numa dor profunda e paralisante angustia, entregou-se à grande tristeza. O frio não mais o perturbava, ele somente queria entender o que havia acontecido. Neste estado de torpor mental, retornou ao seu apartamento. Tomou um banho quente, colocou roupas quentes e sentou na única poltrona que ali existia. Ouvia o som da água que começava a cair tilintando na janela. Ela se acentua em lençóis de chuva que esmagavam o exército de antenas de televisão e convertiam as ruas de Capão da Canoa em um córrego continuo, arrastando tudo que vinha pela frente, transformando em torrentes impetuosas de lama. O céu estava transformado num pandemónio com o ribombar quase incessante.

Estava se tornando inexoravelmente prisioneiro de suas lembranças. Em pensamentos revivia as cenas que vira na praia, a mulher serenamente adentrar no oceano e ser tragada por uma grande onda. Quem seria ela, o corpo certamente daria na praia em alguns dias, ai o mistério seria desvendado.

Só havia um jeito de se acalmar, seria entregar-se a bebida. Procurou, pois se lembrara de que guardara em algum lugar uma garrafa de vodca. Achou-a escondida atrás de um dos armários da cozinha. Abriu-a e tomou grandes goles. Quando a garrafa estava pelo meio, colocou-a no piso e seu corpo despencou na poltrona e logo adormeceu.

Quando acordou, sentou-se empertigado, o suor pingando do corpo torturado, enquanto ondas de culpa e arrependimento rolavam sobre ele como um maremoto surreal.

Levantou-se, era em torno das vinte e uma horas, havia dormido mais de seis horas.

Naquela noite, o Caiçara dormiu aos sobressaltos, pois as imagens continuavam a golpeá-lo como ondas implacáveis contra um litoral rochoso.

Pouco antes do nascer do sol, por fim, chegara à hora de levantar, desistira de dormir. Vivera, em algumas horas, dias talvez, anos de emoções e agora se sentia entorpecido, à deriva num mundo subitamente sem significado. Perdera a mulher que amara tanto. Vira aquela, que poderia ser a sua substituta, afogar-se no oceano logo a sua frente, sem que nada pudesse fazer. Ficou ali sentado por cerca de cinco minutos, repreendendo-se por ser tão idiota. Algo fantasmagórico, como uma mulher, que entrou no oceano. Ou seria imaginação?

Resolveu que ficaria no apartamento, sem dele sair, apenas se serviria dos noticiários da TV e rádio para saber se algum corpo de mulher fora encontrado. O que lhe garantiria, caso acontecesse, que não estava imaginando coisas.

Passava horas a fio vivendo de suas recordações. A bebida havia terminado, resolvera não mais beber. Iniciaria novamente a grande batalha que seria a abstinência ao álcool. Já havia traçado tal rumo, por várias vezes, mas sempre sucumbira à tentação e a compulsão pelo álcool, desta feita, não desistiria, afinal era um homem ou um verme? Pensava sou apenas o espectro do homem que fui a perambular pelas ruas da miséria humana, meu caráter morreu antes de mim. Por isso, resolvo neste momento nunca mais colocar uma gota de álcool em minha boca e que Deus me ajude. Duas horas depois, havia terminado o refrigerante, resolveu ir ao armazém da esquina.

Lá chegando como por extinto se dirigiu onde estava o estoque de vodca, pegou uma garrafa, levou-a ao peito e abraçou como quem abraça uma grande amiga. Por algum tempo travou uma inigualável batalha, entre a necessidade compulsiva de ingerir álcool e o firme desejo de livrar-se do vicio. Chegou a colocar a garrafa de novo no lugar, mas a recolheu novamente. Nessa dúvida atroz, movido por uma vontade inigualável, largou a garrafa e se encaminhou a prateleira onde havia refrigerantes, pegou quatro garrafas e se dirigiu ao caixa.

Após seis horas de abstinência, surgiram os primeiros sintomas, tremores, aumento da sudorese, o pulso ficou acelerado, seguido de náuseas e vômitos. Com o passar das horas surgiu delirium tremens e alucinações. Fantasmas apareciam por todos os lados, a água do oceano o afogava com uma poderosa mão. A mulher estendia-lhe a mão e quando ele a pegava era puxado para dentro do oceano. Três dias de horror passou o Caiçara, permanecendo engolfado em mórbidos pensamentos.

Os fantasmas desapareceram, os tremores os acompanharam junto com os demais sintomas da abstinência.

Faminto e desidratado levantou e preparou uma refeição, regada a refrigerante. Lembrava como sofrera ao pedir um refrigerante no armazém da esquina, seu desejo era de comprar uma garrafa de vodca e tomar ali mesmo. Mais uma vez repetiu mentalmente, sou um homem ou um verme? E pediu um refrigerante.

Após o almoço, sentira uma cólica seca, que parecia lhe arrancar os intestinos do lugar. Correu para o sanitário, mal pode retirar a calça e sentar no vaso, que tudo despencou, como uma enxurrada de fezes putrefatas, cujo cheiro impregnou todo o apartamento. Ele próprio não suportou o forte cheiro e quase vomitou. Mas aos poucos o cheiro foi ficando menos agressivo e ele pensou:

“Que vida miserável quando tudo isso irá acabar?”

Terminou a “evacuação”, levantou, limpou-se como de hábito. Olhou o papel sujo e o cheirou, o cheiro era insuportável, ligou o chuveiro e tomou um banho, já devia fazer uns três dias que não tomava banho. Escovou os dentes debaixo do chuveiro, saiu nu pelo AP, foi até o quarto, abriu o armário e colocou uma camiseta e uma calça blue jeans, pegou o Nike surrado e o calçou sem saber ainda o que iria fazer. Sentou no sofá e colocou os pés sobre a mesinha, esticando a coluna e olhando para o teto. O que fazer, seu organismo gritava por uma dose, até que uma simples cervejinha já lhe bastava. Não, não sucumbirei, dizia uma voz que vinha da parte mais profunda de seu âmago. Movido por uma forte compulsão, levanta, coloca o velho e roto, sobretudo e deixa o apartamento. Devia ser por volta das seis horas, o céu já estava perdendo seus tons claros e a escuridão invadia o dia. Perambula pelas ruas em busca de algo que não definiu ainda o que seria. Na verdade travara-se em sua mente uma batalha infernal, uma parte lhe exigia uma dose de álcool, a outra protestava dizendo que deveria resistir, pois estragaria todo o esforço que fizera até aquele momento.

Chegou a um bar, estava quase vazio, ainda era cedo, sentou, olhou para todos os lados. A televisão que estava sintonizada na RBS e, naquele momento, transmitia a novela das seis. Ele pensa- quero assistir o telejornal da RBS, que iniciará logo após a novela.

Sentou defronte a televisão. Veio um garçom com cara de mau que lhe perguntou:

- O que vai ser meu chapa?

Olhou para ele e pediu uma cerveja.

- Bem gelada – perguntou o barman?

- Não, pega uma garrafa fervendo seu estúpido, filho de uma égua e enfia. – pensou, mas não falou, não tinha como enfrentar aquele brutamonte, ainda mais estando debilitado, sorriu e assentiu com um aceno de cabeça.

Seu cérebro lhe dizia não bebas, logo repetia bebe. Sim, não, sim, não... A cerveja chega. O garçom a serviu estava de suar o copo. A mão, como movida por um impulso irresistível, alcançou o copo, os dedos em pinça o agarraram e o braço em supino levou o copo aos lábios que o receberam já abertos.

O primeiro gole, gélido e suave, descera como diz a propaganda, redondinho, logo o segundo, o terceiro, o copo e cheio novamente e esgotado de um só gole. Outra garrafa, mais outra e uma vodca para arrematar. Já estava alcoolizado. Na televisão o noticiário iniciara e o Caiçara, sequer ouviu a noticia, pois estava totalmente embriagado.

Levantou com intuito de ir ao banheiro, com os braços balançando loucamente na esperança de, não sabia como, manter o equilíbrio, se viu adernando de encontro a uma coluna de tamanho substancial que dava sustentação ao teto. Tateando conseguiu chegar ao banheiro.

Quando retornou do sanitário, sentado a mesa, de tão carregado, nem se lambia. Pelo canto da boca escorria a baba grossa da saliva e a cabeça, pinguça, não largava o encosto da mesa.

Por volta das vinte e duas horas, o bar totalmente as moscas, o atendente, chegou perto do bêbado e disse:

- Ei Che! É ora de fechar.

Tocou no bêbedo e constatou que estava dormindo.

Arrastou-o até o lado de fora do bar e o largou encostado na parede do prédio.

As vinte e três horas ele foi recolhido pela patrulha militar que fazia a ronda no local. Estava gelado e insensibilizado pelo álcool. Foi levado para a delegacia e colocado em uma cela. Para se aquecer cobriram-no com pesados cobertores. E, assim, permaneceu até o romper do dia.

O sol já estava alto quando ele acordou, com uma enorme dor de cabeça. Custou a deduzir onde estava, lembrava apenas que tinha sucumbido mais uma vez a bebida e nada mais. Bateu na grade, mas logo percebeu que a porta estava aberta e saiu. Ao chegar à recepção da delegacia, perguntou o que havia acontecido com ele e se estava preso, por algo que tivesse feito. Respondeu-lhe um dos militares que ali estava:

- Você ontem foi recolhido pela patrulha, estava totalmente alcoolizado. Foi trazido para cá para não morrer de frio.

- Então quer dizer que estou livre?

- Sim, como um passarinho, mas não esqueça o, sobretudo, a noite fará mais frio. Mas antes de ir embora, deve preencher um formulário que lhe vou apresentar. Não o quero assustar nem sobressaltar, mas, se quiser seguir um bom conselho, deixe de beber.

-No momento é o que mais quero nesta vida, pode crer.

O guarda olhou-o fixamente para ver se ele estava troçando, mas tinha um ar absolutamente sério.

Ele retornou a cela, pegou o casacão, antes preencheu e assinou o formulário e logo deixou a delegacia carregando uma imensa culpa por haver sucumbido à tentação de se alcoolizar.

Chegou ao apartamento, sua cabeça estava num emaranhado de confusão, antes de acender as luzes, pode ver de soslaio, era qualquer coisa sobrenatural, horrível, indizível, movia-se em suas mãos, teria gritado de terror, se ainda tivesse voz.

Sua cabeça começou a rodear, náuseas e vômitos o levaram de súbito ao banheiro; a coisa agora estava por todo o corpo, como uma goma pegajosa e grudenta. Ele era um verme e rastejava sobre um animal morto, já em estado de putrefação, tinha de ondular o corpo para conseguir se movimentar, na gosma purulenta e ensangüentada. Outros seus semelhantes rastejavam uns sobre os outros.

Lançou no vaso uma golfada de vomito, um arrepio, que vinha do fundo da espinha, fizera-o tremer e se arrepiar todo. Passou água na boca, gargarejou e lançou-a na pia.

Na verdade, tudo o que estava acontecendo era fruto de sua imaginação causada pelo álcool. Para cada canto que olhasse algo de sobrenatural surgia para aterrorizá-lo. Monstros surgiam do nada, águas revoltas o engolfavam.

Contudo, essa delirante, ou, antes, essas tresloucadas e sinistras aparições, não eram reconhecidas por ele, pois eram frutos de seu estado avançado de dependência alcoólica.

Contemplou seus fantasmas durante alguns momentos, trêmulo, convulso; o seu cérebro girava sob a ação de mil pensamentos incoerentes.

Numa reação invulgar, retirou as roupas, abriu o chuveiro e se pôs debaixo, deixando a água cobrir-lhe por inteiro. Ali ficou por alguns minutos e logo ensaboou o corpo, enxaguou-se, fechou o chuveiro, passou para fora do Box, secou-se, cobriu-se com a toalha e foi para a sala. Os fantasmas imaginários tinham sumido, ao menos por enquanto. Senta na poltrona, recordou quando era pequeno, devia ter quinze anos, quando seu pai, lhe fizera aquela pergunta.

"O que é o que é: de manhã tem quatro patas, ao meio-dia duas e à noite três?"

Pense, disse-lhe o pai, pense, amanhã veremos se tem a resposta.

Na manhã seguinte ele não havia obtido a resposta, seu pai lhe disse:

"O homem: na manhã da vida, ainda bebê, ele engatinha; na idade madura, mantém-se sobre as duas pernas; enfim, quando suas forças declinam, apóia-se numa bengala."

De repente sentia-se como um velho, que deveria apoiar-se a uma bengala, tinha que deixar a bebidas, ou essa o destruiria.

Sente fome e dirige-se para a cozinha, abre o armário de viveres, está vazio, nada havia para comer.

- Onde coloquei a carteira- pensa

Procura-a e ao encontrá-la, abre e vê que não tem dinheiro algum.

- Fui roubado, mas onde? Teria sido o garçom mal encarado, o policial ou qualquer um quando estive dormindo na rua?

Ficou ali sentado por cerca de cinco minutos, repreendendo-se por ser tão idiota.

E agora, o que farei sem dinheiro? De qualquer forma em poucos dias ele acabaria, foi apenas uma antecipação. Permaneceu por horas e horas envolto em mórbidos pensamentos.

Ah, parar de se preocupar, parar de sentir a dor, nunca mais sentir nada. Suicídio? No momento a opção era quase atraente. "Seria tão fácil chega de lágrimas, chega de dor..." Num ato de coragem, desviou o pensamento.

Não havia outra solução a não ser vender o carro e assim postergar por mais um tempo a derrocada final.

Mas um carro não se vende, assim de uma hora para outra, a não ser por um preço vil - pensou.

A fome que estava sentindo, era imediata, não poderia esperar a venda do carro. Voltou a procurar na cozinha, era inútil a tentativa, pois sabia que nada havia para comer. O apartamento ficara fechado por muito tempo, os poucos viveres que havia comprado ao chegar a Capão já haviam terminado.

Nunca em sua existência havia passado tal privacidade, constatou como era difícil achar o que comer se não temos dinheiro para comprar. E, o pior, é que a fome de hoje será a mesma fome de amanhã e assim sucessivamente.

CAPITULO III

FRANCINE

Olhou para o relógio, eram dez horas da manhã,

Ligou o radio, momento em que o Cléo Kuhn*, dizia a previsão do tempo. “A previsão para hoje é de tempo instável, com queda acentuada da temperatura. As chuvas continuarão durante todo o período e a temperatura deve cair ainda mais. Ventos fortes do sul trazem mais uma massa de ar frio que…”

Resolveu sair para pensar e ver como resolver o seu problema.

O clarão do relâmpago seguido do estrondo de um raio seco, marcante, invadiu o apartamento. A energia caiu, foi à cozinha a procura de fósforos, tateando e tropeçando nos móveis. Conseguiu chegar lá, quando um novo raio clareou tudo e ele pode ver os fósforos e pegá-los. Sucedendo ao raio, o estouro do trovão invadiu o apartamento, fazendo tremer as vidraças. Agora bastaria procurar uma vela e trazer claridade ao ambiente. No fundo de uma das gavetas encontrou uma vela e a acendeu.

A luz mortiça iluminava fracamente o ambiente, dando-lhe uma expressão fantasmagórica, fazendo-o se enrodilhar no velho sofá. Abafou um gemido que ia explodir-lhe na garganta e afundou o rosto entre os braços e chorou. Chorou como fizera pela última vez aos dezoito anos, quando, seus pais adotivos falecera vítima de um acidente de transito.

Considerava-se culpado por não ter-lhes avisado que sofreriam o acidente fatal, tinha visto tudo em uma antevisão do futuro, mas receoso de que fosse, mais uma vez, taxado como louco, calou no seu peito aquele grito que não ecoou. “Não devem ir nessa viagem, pois não voltarão dela com vida”. Não resistiu e quando já estavam em viagem, ligou pelo celular, mas este estava fora de área ou desligado. Rezou para que tudo não passasse de uma simples abstração e que nada acontecesse. Lembrou de que poderia dar um viso a Policia Rodoviária que os atacaria prevenindo-os do acidente, mas o que diria ao policial que havia tido uma premunição do acidente? Mesmo assim, ligou por diversas vezes até conseguir o contato com o posto policial, ficaram de avisá-los quando passassem. Roeu as unhas em desespero, e aninhou-se num sofá na posição fetal e chorou, rezou para que os policiais lhes dessem o aviso e que eles o atendessem.

Assim permaneceu ali incontido em um letargo inebriante, até que uma nova visão surgiu fazendo-o ver nos mínimos detalhes a cena do acidente. O carro, em que viajavam seus pais, se aproximando de uma ponte, quando surge um carro em disparada ultrapassando outro. O fritar dos pneus a batida frontal no inicio da murada. Logo a batida do caminhão na traseira prensando o carro, reduzindo-o em uma massa compacta. O sangue escorrendo e logo o incêndio, seguido de uma explosão. Tudo estava claro na antevisão que tivera, agora seria a visão do que realmente havia acontecido. Saiu em desespero, nada mais poderia fazer e por isso se culpava.

Na época havia perdido tudo, que era representado pela figura de seus pais, agora de fato perdera tudo, na mais significativa das palavras. Perdera a mulher, o filho, que como ele ficara órfão, aos dez anos, só que de pai vivo. Perdera a vergonha, muito antes do dinheiro, e por final perdera a vontade de viver. Quando a luz se restabeleceu, ele continuou perdido em enroscados pensamentos: “Quanta coisa acontecera na sua vida que não consegue entender nem explicar…

E nesse torpor mental, pensava:

-Nestas horas sempre achamos que o responsável é o destino, a sorte, mas na verdade, o grande culpado é o nosso próprio arbítrio. Tudo o que dizemos, fazemos e entendemos nos pode levar a vitoria, ao êxito e a prosperidade, ou lançar-nos na desgraça, na desesperança e na miséria.

Este é o Mistério do Universo. Ninguém pode prever o que a sorte trará. Tremo como um velho, embora tenha apenas 38 anos. Se ao menos tivesse uma chance de deixar o vicio que me atormenta e me degrada...

Agora o que era mais premente, o que gritava e roncava era a fome, pois nos últimos dias, pouco ou nada comera. Mas como fazer para obter alimentos sem dinheiro, sem credito, sem conhecidos, pois, quando tivera na praia fora em veraneios e não fizera amizades.

Colocou um pesado abrigo de inverno, um capuz cobrindo a cabeça, calçou os tênis e se dirigiu ao estacionamento, onde estava seu carro. Adentrou no carro estendeu a mão e girou a chave, ligando-o. Pisou no acelerador e afastou-se do meio-fio, rumando para o centro. Tinha de pensar em como conseguir alimento, não para aquele dia, mas para todos os dias que viriam.

A Avenida Paraguaçu, onde estão os bancos e as casas comerciais, naquele momento, estavam quase deserta, poucos carros trafegava, o frio estava cada vez mais intenso, o vento açoitava, mas a chuva havia dado uma trégua. Pegou uma rua transversal que o levaria para o subúrbio de Capão da Canoa. Os imensos prédios de apartamentos deram a vez a casas suburbanas, mal conservadas, as ruas asfaltadas deram lugar a ruas de calçamento em pedras irregulares e outras de chão batido.

O carro estava a cinquenta quilômetros horários quando passava por uma rua completamente deserta. Embora os vidros estivessem fechados, pode ouvir um pedido de socorro entrecortado, como tivesse sido impedido o seu término. Olhou para o lado de onde possivelmente teria vindo o pedido e pode ver um beco entre duas casas. Estacionou o carro e correu para o local. A cena que viu o constrangeu e fez-lhe o sangue fluir pelas artérias com um pulsar frenético das carótidas. Um homem espremia uma mulher contra a parede de madeira da casa mal construída. Com uma mão em seu pescoço a estrangulava, enquanto a outra lhe baixava a calça. Ao vê-lo o homem diz-lhe:

- Cai fora que você não tem nada com isso e a curiosidade matou o rato.

O Caiçara, como movido por uma força que até então desconhecia possuir, avançou célere contra o agressor, que vendo aquele homem grande se aproximando, soltou a vítima e virou-se para fugir. Havia um caixote perto da saída. A fuga frenética não lhe permitiu percebê-lo, pois estava correndo com a cabeça meio virada. Esbarrou no obstáculo e caiu com um grito, enquanto o caixote se despedaçava. Na queda quebrou o nariz contra o solo, o sangue corria aos borbotões, levantou apressado e saiu correndo.

O caiçara sai do beco a procura da mulher, olhou para todos os lados e não a viu. Rumou para o carro e quando ia entrar, viu que ela saia de trás de um poste de concreto da rede de energia. Foi ao seu encontro.

Uma mulher muito bonita, de pele dourada, cabelos louros, corpo esguio. Os olhos castanhos estavam parados e arregalados. De seus olhos corriam lágrimas, da garganta soluços de pavor.

Ela virou a cabeça de um lado para outro, por diversas vezes, inconscientemente, como se tentasse aliviar o pescoço dolorido.

- Venha, embarque no carro que eu a levo para onde quiser ir- disse o Caiçara.

Aproximou-se com cuidado, olhando para o beco, para ver se via o seu agressor. Seus olhos marejados de lágrimas, seus cabelos desajeitados, seu pescoço, comprido e fino, apresentavam marcas da agressão.

- Não tenha medo, ele foi embora e não vai voltar. Confesso que não sei como fiz aquilo, não é o meu estilo de vida, sempre detestei a violência, mas quando a vi naquela situação, algo em mim, subjugou os meus medos e me fez partir para onde estavam, o que o assustou fazendo-o fugir.

Mas quem é você e o que estava acontecendo naquele momento?

A moça chorando e soluçando adentrou no carro. O caiçara deu partida e este deixou o local. Enquanto a passageira chorava ele andou a esmo até que ela se acalmou e disse:

- Sou Francine! Tinha ido comprar açúcar na padaria, quando passava pelo local, fui agarrada pelo braço e arrastada para dentro do beco, o resto você viu.

- Sou Marsal Medina. E no momento estou passando por grandes dificuldades.

- Que tipo de dificuldade?

- Separei-me da família, era casado e tenho um filho de dez anos. Estou morando em Capão momentaneamente, pois na divisão dos bens me tocou o AP da praia e este carro.

- Pare o carro, pois já passamos pela minha casa, é aquela ali- apontando para uma casa velha de alvenaria.

- Aceita tomar um chá? Minha mãe faz um gostoso bolo de fubá. Agora lembro que não cheguei a comprar o açúcar.

- Pois vamos buscá-lo. Onde fica o mercado?

- Logo ali a duas quadras de onde houve a tentativa de estupro.

- Mãe! Este e o Marsal que me salvou de um estupro.

- Não diga minha filha, conta o que aconteceu, que horror!

Agarrada a mãe e novamente chorando, contou o que havia acontecido.

A senhora agradeceu Marsal e convidou-o a tomar café.

Após haver tomado um lauto café, com bolo de fubá, pão, manteiga e mortadela.

- Mais uma xícara de café?- perguntou a dona da casa.

- Eu queria uma bebida, qualquer, uma cachaça, uma vodca, um wiski, ou seja, lá o que for. – pensou, mas não teve coragem de dizer, apenas, agradeceu e empurrou a xícara para frente.

- Nunca tomei um café tão gostoso como este dona Justine, mas agora tenho que ir.

- Muito obrigada por ter salvado minha filha, seu Marçal.

- Não fiz mais do que a minha obrigação de cidadão.

Francine foi acompanhá-lo até a porta!

- Posso vê-la novamente?

- Sim! Basta me telefonar, ou vir a minha casa.

- E qual é o teu telefone?

- Toma nota... E, o seu qual é o número?

- Agora você é que deve tomar nota – e sorriu de canto de boca.

- Onde fica o seu apartamento?

- Fica no edifico Leblom, ap. 507

O Caiçara deixa a casa e dona Justine diz a filha:

- Notou algo estranho no seu Marçal?

- Não minha mãe, o que a senhora observou.

- Notou que ele teve de pegar a xícara com as duas mãos?

- Não, não observei.

- Seus olhos somente viram um homem bonito e nada mais. Mas não se preocupe quando se é jovem não sabemos observar nada.

- Ele é alcoólatra! Reparou no seu aspecto, seus olhos são de bêbado, pareciam inchados.

O destino fez com que saciasse sua fome, mas apenas por algumas horas. O problema persistia.

Alguns minutos depois ele chega a uma revenda de carros usados.

- Quer trocar o carro cidadão- perguntou-lhe o atendente.

- Não, na verdade quero vendê-lo pelo melhor preço que conseguir.

O homem examinou o carro demoradamente e lhe disse:

- Dá pra fazer negócio. Se não tiver presa, pode deixá-lo aqui para vender, cobro uma taxa de residência e uma comissão sobre a venda.

- Não entendi bem como isso funciona?

- A taxa é diária, só para cobrir os custos de mantê-lo sempre em dia, ligar o motor diariamente, calibrar os pneus, colocá-lo no pavilhão todos os dias ao entardecer e etc. São dez reais por dia.

A comissão é de dez por cento sobre o preço de venda, que é arbitrado pelo proprietário.

- Sim, entendi, mas se eu quiser vendê-lo imediatamente?

- Vai perder um bom dinheiro.

- Quanto você paga por ele?

- Você pode pegar uns dez mil, fora a comissão dá uns nove. Eu posso lhe pagar apenas seis imediatamente.

- Fechado.

- Arturzinho! Toma conta da documentação.

O rapaz pegou os documentos do carro examinou, e disse:

A manhã no cartório às nove horas.

- Sim, mas eu quero receber, alguma coisa agora.

- Isso é com o patrão, vou falar com ele.

- Sim, faça isso, uns mil, dá pra quebrar o galho.

- Aqui tem um cheque de mil, os cinco recebe amanhã no cartório, mas o carro fica aqui.

- Ok.

O caiçara corre ao banco, que fecharia às dezesseis horas, lá chegando troca o cheque. Passa no supermercado para fazer compras para a semana. Chegou à gôndola onde estavam expostas as bebidas. Seu olhar parado naquele monte de garrafas chegou a pegar três garrafas de vodca, mas logo se lembrou que no dia seguinte teria de ir ao cartório fazer a transferência do carro, devolveu-as ao expositor e passou a comprar os viveres.

Ao chegar ao apartamento, o zelador que estava limpando às vidraças, perguntou:

É do quinhentos e sete?

- Sim.

- Tem correspondência para o senhor na caixa.

Abriu a caixa de correspondência e apanhou um envelope e pensou- Quem teria enviado a carta?

Abriu imediatamente o envelope, havia uma única folha de papel que dizia: Senhor Marçal! Favor ligar para o numero...

Como alguém saberia o seu nome?

Adentrou no elevador e apertou o botão do quinto andar. Ao chegar ao AP suas mãos tremiam pela falta de álcool, seus lábios se contraiam. Mas formara o propósito de não beber, ao menos até o dia seguinte. Mais uma terrível noite de abstinência, com inúmeros fantasmas perturbando o seu sono. Mas o dia seguinte chegou e às nove horas o caiçara adentra no cartório, já o esperava um rapaz da revenda de carros. Tudo concluído. Recebeu o cheque de cinco mil e foi para o banco fazer o depósito em sua conta.

Mal conseguiu chegar ao AP. carregando as três garrafas de vodca. Verteu no copo, que tremulava em sua mão, até a metade, seus lábios o esperavam aberto, e o primeiro gole desceu cantarolando goela a baixo. Logo o copo foi esvaziado e, uma nova porção foi colocada, desta feita a mão já não mais tremia e o copo não balançava. Assim, bebeu até cair em sono profundo, quase em coma alcoólica.

No dia seguinte, por volta das dez horas, despertou como sempre, com forte dor de cabeça e âncias de vômitos. Sentou na cama, colocou os cotovelos sobre os joelhos, curvou as costas agarrou a cabeça com ambas as mãos e mais uma vez, chorou e soluçou de dar dó.

- Mãe! Estou preocupada com o Marçal, ele não me telefonou nem apareceu até agora, faz três dias que esteve aqui, esperava que me procurasse. Acho que vou até o AP. dele.

- Não faça isso minha filha, este rapaz é complicado, só vai dar dor de cabeça para você.

- Sei disso mãe, mas assim mesmo vou procurá-lo, ele pode estar precisando de mim.

- Depois não diga que não lhe avisei, deixa isso para lá, esse rapaz e complicado, não serve para você.

A capainha do interfone toca. Com grande esforço ele consegue chegar até o interfone e o atende.

- Sim, quem é?

- É Francine, pode abri a porta para mim?

- Ola Francine! Você chegou à uma hora imprópria.

- Abra que talvez seja à hora mais própria para falar com você.

Já fazia uns seis meses que Marsal não prestava qualquer atenção às mulheres, Francine fora uma exceção. Quando se está realmente lá no fundo, as mulheres deixam de interessar.

Ele relutou, mas terminou abrindo o conector da porta e ela entrou, subiu pelo elevador e ao chegar ao AP 507 ele já a esperava com a porta semi-aberta. Quando ela adentrou, ele lhe disse, procurando esconder o rosto.

— Bela manhã! - observou, para encetar a conversação.

— Sim - disse ela, olhando-o com interesse;

- Não a quero assustar nem sobressaltar, mas, se quiser- seguir o meu conselho vá e não me procure mais, estou passando por dificuldades momentâneas.

Olhou fixamente para o rapaz, para ver se ele estava troçando dela, mas tinha um ar absolutamente sério. Contemplou-o durante alguns momentos, trêmulo, convulso; o seu cérebro girava sob a ação de mil pensamentos incoerentes.

- Não se preocupe eu sei que você é alcoólatra e quero ajudá-lo.

A luz era pouca e o ambiente estava completamente desorganizado, roupas sobre os móveis, algum lixo pelo chão e os moveis fora do lugar.

- Que bagunça, vamos ter de dar uma arrumada nisso, Posso ligar mais lâmpadas, para clarear o ambiente?

- Não faça isso, por favor, estou com uma terrível dor de cabeça. Minhas últimas noites foram preenchidas com pesadelos, nas manhãs despertei com uma sensação de ameaça iminente. Talvez tudo isso seja fruto da minha imaginação.

- Tá bem! Vamos deixar tudo como está. Vamos sentar e conversar. Quero lhe dizer que estou aqui para ajudá-lo e que você está necessitando de ajuda não pode recusar meu auxilio.

- Você não poderá me ajudar, é algo que nem eu mesmo posso me ajudar. Já fiz varias tentativas de deixar o álcool, mas todas foram inúteis, sempre ele foi mais forte do que eu.

- Sim, mas agora somos dois e haveremos de vencê-lo. Por exemplo, você está pálido, parece que não se alimenta há dias. Vou preparar algo para comer.

Foi até a cozinha e se pôs a preparar a refeição matinal. Ele a olhava com perplexidade, o que quereria ela, se dedicando a ele seria pura gratidão?

Em alguns minutos uma pequena refeição estava preparada. Ela o chamou para a mesa.

- Ovos fritos, bife, pão e café, não como assim ha dias!

Ele comeu a parca refeição matinal e sentiu-se melhor.

- Estais satisfeito? Isso foi o que pude preparar rapidamente, mais tarde farei o almoço.

- Estava ótimo e mesmo não posso comer como um desesperado, pois estou fraco. E agora não vai fazer um interrogatório, como costumam a fazer todas as mulheres?

- Não me junto a todas as mulheres, nada tenho a lhe perguntar, ou lhe sugerir, estou aqui apenas para ajudá-lo. Sem interferir na sua vontade, se quiser se recuperar, eu ajudo, caso contrário, vou embora e nunca mais o procurarei.

- Não, fique. Eu quero deixar o vicio, apenas não consigo, o maior tempo que consigo passar em abstinência é de três ou quatro dias. Você tem de me ajudar.

- Como eu disse, agora somos dois a lutar contra o inimigo.

- O que sugere que façamos?

- Se eu puder entender como tudo começou, talvez busque uma solução.

- É uma história muito complicada, acho que não é o momento para falar disso. Por hora falarei sobre o momento atual, o que está acontecendo.

Separei-me de minha esposa e filho, atribui a mim a culpa a mais absoluta culpa da separação. Cheguei a Capão da Canoa, e fui andar na praia, o dia estava frio, vi uma mulher entrar na água e desaparecer, tentei salvá-la e quase me afoguei. Procurei nos jornais noticia de afogamento, o que não e comum nessa época do ano. Nada encontrei, parece que o corpo não deu na praia e também ninguém alegou o desaparecimento da vítima.

Passei a acreditar que tudo foi fruto da minha imaginação, mas tudo foi tão real.

- Podemos procurar nos jornais, eles estão filmados na biblioteca municipal. É só procurar no leitor de filmagens.

- Faremos isso outra hora. Posso lhe fazer uma pergunta?

- Sim, faça.

- Por que me procurou? Foi só por gratidão, ou há mais alguma coisa? Tenho a impressão que você está com medo.

- Medo! Eu, medo de que?

- De mim, de você, da gente.

- Não é isso.

- Que é?

- Eu não sei...

- Fala o que é então.

- De me apaixonar por você e de não ser correspondida, talvez seja isso. O amor é uma força que todos possuímos! Apenas não temos aprendido a aplicá-la adequadamente.

- Eu tenho medo de fazê-la sofrer como fiz com minha esposa e meu filho.

- Por isso, acho que devemos, nos despedir e não voltar a nos ver.

- Quero correr o risco, pois pretendo ajudá-lo a se livrar do vicio.

- Há quantos dias não sai do apartamento?

- Nem sei quando foi à última vez que sai, deve fazer dois ou três dias, acho.

- Que acha de caminharmos um pouco e respirar ar puro, hoje o dia está calmo e o sol de inverno está aquecendo.

- Vou levá-la onde a mulher se afogou e eu quase perdi a vida.

Deixaram o apartamento e tomaram o rumo à praia. Poucas pessoas caminhavam no calçadão, eles andaram e logo adentraram na praia, tiraram os calçados e começaram a caminhar de pés descalço na areia.

Para encetar uma conversa amena Francine disse:

- De que mais gosta na vida?

- De uma boa dose de vodca, geladinha daquelas que faz cócegas na garganta. – pensou, mas não disse, disse apenas:

- Eu nesse momento não sei do que mais gosto, estou, desmotivado para ela, tantos acontecimentos desastrosos que nem sei o que pensar. E você de que mais gosta?

- De muitas coisas, por exemplo, gosto de assistir filmes, principalmente do gênero suspense.

- Gosta de sentir medo estando confortavelmente sentada em uma poltrona em sua casa.

- Acho que é isso mesmo. Gosto de viajar, embora tenha viajado muito pouco. Gosto de Capão da Canoa, da tranquilidade do inverno e do agito do verão.

CAPITULO IV

UM CASSINO CLANDESTINO

Eles continuaram caminhando de mãos dadas, chegaram ao ponto onde o Caiçara havia visto a mulher adentrar no oceano.

- Veja, foi ali que ela adentrou no oceano.

- E no dia, não havia ninguém na praia?

- Sim, havia dois pescadores, mas disseram que nada viram.

- O que acha de irmos a biblioteca verificar os jornais?

- Agora?

- Claro, ainda é cedo, podemos fazer isso, a biblioteca, fica na câmara legislativa. Não fica mais do que três quadra daqui.

- Então vamos lá.

Adentraram na biblioteca municipal, logo uma atendente os recepcionou.

- Posso ajudar em algo?

- Sim, gostaríamos de examinar os jornais do município, onde tivesse as noticias de Capão da Canoa. – disse Francine.

- Temos os dos últimos três meses, os mais antigos estão filmados e podem ser consultados no leitor de filmes.

- Começamos pelos mais atuais.

Logo a moça veio com um fardo de jornais e os colocou sobre uma mesa de consulta.

Sentaram-se lado a lado a mesa cheia de jornais, e não foi difícil ver, pela expressão ansiosa de ambos, que era muito grave o assunto que ali os trazia.

- Muito obrigada. Agora vamos nos organizar para examinar os jornais, você pega um e eu outro. Tá bem?

- Sim faremos isso.

Em uma hora eles haviam examinado todos os jornais e não havia nenhuma noticia relativa a afogamentos, salvo a de um garoto que quando surfava se enredou em uma rede de pesca e morreu afogado.

Nos últimos três meses não havia mais nenhum afogamento.

- Desistimos – disse Francine.

- De forma nenhuma vamos ver as filmagens, ainda é cedo e além do mais, podemos retornar à tarde- disse o caiçara.

- Isso não faz sentido, você me disse que teria sido quando chegou a Capão a menos de um mês. Por que havemos de procurar em período tão anterior?

- Não sei, mas quero, sinto que devo procurar.

- Que seja! Podemos ver as filmagens?

- Por aqui, por favor.

A moça colocou um rolo de filme na máquina de leitura e disse:

- Para trocar de página é só mover esta alavanca.

Examinaram inúmeros jornais e é chegado o meio dia.

- Podemos retornar após o almoço? – perguntou Francine à atendente.

- Sim, podem deixar tudo como está e continuarem à tarde.

Almoçaram em um restaurante a quilo e as treze e trinta retornaram a biblioteca. Devia ser próximo das dezesseis horas, quando, em um jornal aparece a noticia de um afogamento de uma mulher. A foto exibida deixou o Caiçara perplexo.

Levou um tempo para conseguir falar, balançando o corpo e puxando os cabelos, como alguém que tivesse alcançado o limite de suas forças e estivesse prestes a ter um colapso.

- É ela! Aqui está, morreu afogada, o corpo deu na praia seis dias após a morte. Vamos ver a data, aqui está 16 de julho de 1998 Faz mais de dois anos.

- Não pode ser a mesma mulher, você disse que a viu se afogar a poucos dias, como explica isso?

- Não posso! Como também não posso explicar muitas outras coisas que aconteceram comigo.

- Você parece misterioso, é um alcoólatra, mas se comporta como fosse um místico. Quais mistérios está escondendo dentro de si?

- Na verdade não sei o que se passa comigo, tenho alucinações, e estas, não são produtos do álcool, pois eu as tinha muito antes de me tornar alcoólatra.

- Quer falar disso?

- Quem sabe em outro momento.

- Entendo! Agora devemos nos preocupar com a sua abstinência.

- Tenho de voltar para a casa, promete que não irá beber? Amanhã cedo estarei aqui para fazer o café da manhã e o tomarei contigo. Tá certo?

- Tenho medo de não resistir à compulsão pelo álcool. Fique por favor.

- Hoje não posso, não trouxe nada para vestir após o banho e até minha escova de dente eu não trouxe, a final não sabia como o iria encontrar.

- Ta bem! Vá eu tentarei resistir até amanhã.

Passava das oito horas da noite, quando ele resolveu sair para jantar. Andou, e enquanto andava, travava a velha luta mental entre o desejo de resistir à compulsão pelo álcool e a vontade de beber apenas um gole, que certamente seria a abertura da porta para mais um porre.

Andando pela beira mar, de longe avistou uma casa iluminada e se aproximou. Era um bar antigo e surrado, com as paredes desbotadas e sem pintura. Adentrou e dirigiu-se ao balcão, apoiou-se com as duas mãos e disse ao atendente:

- Tem algo para comer?

- Posso preparar alguma coisa como um bife com ovos e fritas.

- Tá bom, pode fazer.

- Para beber, o que deseja?

- Pode ser uma cerveja.

Encostado no balcão ele via que muita gente, passava as suas costas, que de certo, pela aparência não deveriam estar naquele bar ordinário.

A cerveja chegou e ele pergunta ao garçom:

- O que é que há lá nos fundos, onde as pessoas estão indo?

- É um lugar reservado para clientes especiais, não pode ir lá sem ser convidado.

- Por acaso é um clube fechado e restrito?

- É mais ou menos isso ai.

Pegou a garrafa e foi sentar em uma mesa. Abasteceu o copo, tomou o primeiro gole e logo empinou o copo, serviu outro e logo a garrafa estava vazia. Acenou para o garçom e este veio logo com outra garrafa.

Bebia tranquilamente quando olha para a porta de entrada e vê uma mulher finamente trajada que adentrava no estabelecimento.

Olhou-a de soslaio e não mais a perdeu de vista. Uma mulher de trinta e tantos anos, esbelta, bem vestida, de traços aristocráticos e olhos castanhos, inteligentes e ansiosos, provida de uma discreta elegância e atrativos sutis. Os cabelos escuros que lhe caiam suavemente sobre os ombros.

Logo veio a refeição, ele comeu sem perder de vista a mulher. Lá estava ela parada, parecia invisível aos olhos dos demais. Chamou o garçom, pediu a conta, pagou e se levantou dirigindo-se para o local onde havia visto entrar. Olhou para o garçom que lhe fez um sinal de acessão.

A sala dos fundos era maior do que ele imaginara, com um luxo extravagante. O bar ordinário na frente não passava de um dis¬farce. Ali havia um cassino clandestino... Duas mesas de roleta, cinco mesas de carteado e três para os dados. E devia haver pelo menos trinta pessoas lá dentro.

A sala enfumaçada, mas em silêncio. Até os jogadores de dados estavam quietos. E quando uma roleta girava se podia ouvir o barulho da bolinha bater no círculo da roleta.

Os habitues, pessoas de fino trato, exibiam pilhas de fichas a sua frente, garçons com bebidas, de graça, era só pegar o cálice da bandeja. Pegou um cálice e logo o esvaziou para pegar outro.

Olhou e viu a dama que entrara no bar ralé, que servia de fachada. Lá estava ela, com um grande sorriso. Não apostava, não bebia, apenas o olhava. Ele se movimenta em seu encontro e ela se movimenta até uma das roletas, que naquele momento o crupiê estava anunciando:

— Façam suas apostas, senhoras e senhores...

Por que não? –pensou: - cem reais, não vou ficar mais pobre por isso, comprou dez fichas, seria somente aquelas, talvez ganhasse e os cem reais poderiam se transformar em duzentos. Mas em qual ele deveria apostar, no preto ou no vermelho?

Nesse momento a mulher, apontou para o preto 27. Ele sorriu e colocou a ficha no indicado.

O crupiê de¬clarou:

— A banca está fechada!

A roleta começou a girar. Tudo o que o Marsal (O Caiçara) podia fazer era ficar parado ali a olhar. Cem reais poderiam ser jogados fora como se não valessem coisa alguma. A roleta girava e girava, a bolinha girava e gira, a sala girava e girava... Ansioso pegou mais um cálice e o empinou.

A bola parou. A roleta parou. E a sala parou também. Assim, Marsal (o caiçara) pôde ouvir o crupiê anunciar:

— Preto, 27.

O seu número! O crupiê empurrou a pilha grande de fichas na direção dele.

Olhou para a mulher que lhe sorriu e alcançou algumas fichas para ela. Ela se manteve parada, como uma estátua, até que ele recolheu a mão, e quando ia colocar uma nova aposta, ela apontou para o vermelho 33, ele colocou a metade das fichas que havia ganhado. Ganhou novamente. Olhou para a mulher, que lhe fez um sinal de positivo com a cabeça. Pegou todas as fichas, e esperou ela apontar, e quando o fez era no vermelho 27. Ele colocou todas as fichas que havia ganhado até então.

O crupiê de¬clarou:

— A banca está fechada!

A roleta começou a girar. Todos ansiosos, se contorcendo, parecendo acompanhar o movimentos da bolinha, quando esta parou, a roleta deu inúmeras voltas e ao parar o crupiê de-clarou:

— Vermelho, 27. O seu número!

Agora a montanha de fichas, mal cabia no espaço que lhe destinava na mesa. Atônito pega mais um cálice de bebida e olha para a mulher e, esta, lhe faz mais uma vez o sinal de positivo, devia continuar jogando, apontou para vermelho 33.

Quase que inconscientemente ele colocou todas as fichas no local indicado. O crupiê teve de trocar as fichas de pequeno valor por fichas de maior valor para que coubesse na mesa. E logo declarou:

— A banca está fechada!

Girou a bolinha no sentido contrário do giro da roleta, a bolinha pulou e logo parou. A roleta girou, girou e parou. O caiçara mais uma vez havia ganhado.

O crupiê aperta uma campainha e logo vem um homem, fala com o crupiê e este logo diz:

A banca está quebrada.

Marsal, (O Caiçara), pega um saco e o enche de fichas e vai ao caixa. Naquele momento não sabia o quanto ganhara, apenas sabia que tudo pertencia à mulher que apontara onde deveria jogar. Nesse momento um homem de grande estatura, o pegou pelo braço e lhe disse:

- Por favor, queira me acompanhar.

Chegaram a um pequeno escritório, ao entrarem o homem sentado atrás de sua mesa e inclinou a cadeira girató¬ria para frente, até poder apoiar os cotovelos redondos no tampo, confortavelmente. Era um homem corpulento, de meia-idade, o rosto avermelhado, olhos azuis suaves. Os cabelos lou¬ros estavam ralos no alto da cabeça e começando a ficar brancos. Aninhava o cachimbo nas mãos rechonchudas, saboreando-o com pequenos movimentos dos lábios, enquanto observava-o, tendo dois homens fortes um de cada lado.

Olhou o recém chagado e com um sorriso sarcástico, de canto de boca, pois do outro lado sustentava o cachimbo fumegante. Sem tirar o fino artefato de fumar e movendo-o ao falar, lhe disse:

- Então você é o homem que quebrou a banca. Sabe que o meu estabelecimento, nesses casos, tem uma grande responsabilidade de fazê-lo chegar à casa são e salvo, com o produto de seu prêmio. Por isso, vou mandar que os meus colaboradores o escoltem até sua casa. Podem levá-lo ao caixa, para pegar todo o dinheiro disponível e apurem o que faltar para que lhe forneça uma carta de credito do meu estabelecimento.

O total tinha sido de cento e oitenta e cinco mil reais. O caixa tinha disponível apenas cinquenta e três mil reais. Fez uma carta de crédito de cento e trinta e cinco mil reais.

Olhou para todos os lados, procurou-a por todo o estabelecimento, perguntou para as pessoas, ninguém havia visto a tal mulher. Pegou mais um cálice de bebida e o esvaziou.

Marsal deixa o estabelecimento acompanhado pelos dois guardas costas, que o conduzem a um carro que estacionado estava do outro lado da rua. Um adentra no volante e o outro introduz o passageiro no banco de trás e entra junto com ele.

O motorista diz:

- Como é moço, onde você mora?

Quase fora de si o Caiçara, busca no bolso um cartão e entrega ao homem ao seu lado. No cartão estava o seu endereço completo.

Quando ele acordou, sob o toque da campainha, o sol já estava no zênite. Levantou meio tonto, com a cabeça doendo, foi até ao interfone e perguntou? Quem é?

- É Francine. – respondeu uma voz feminina.

Abriu a trava da porta e ela entrou.

Soluços e gemidos de rasgar a alma saíam do âmago de seu ser, e foi assim que Francine o encontrou. Dois seres feridos que se abraçaram e choraram desconsoladamente

- Bom-dia! Como passou a noite?

- Mal, sinto muito, mas tive de beber, não resisti e sai para jantar e não me lembro de mais nada, apenas lembro que sonhei que havia uma casa de jogos e que eu jogava muito e bebia. Uma mulher me indicava onde jogar, eu ganhava a cada jogada que fazia, assim ganhei um monte de dinheiro, pena que foi apenas um sonho.

As têmporas pulsavam com uma exultação que era quase insuportável.

- Vá tomar um banho enquanto lhe preparo o café - disse Francine.

Após o banho, tomou um comprimido para a dor de cabeça. Tomou café e já se encontrava melhor, a dor de cabeça havia dado uma trégua, quando ele vê no sofá um pacote dentro de uma sacola plástica, pegá-o e o abriu. Em seu interior havia uma grande quantia em dinheiro e uma nota de crédito no valor de cento e trinta e cinco mil reais.

Fechou os olhos e balançou a cabeça para ver se conseguia apagar a alucinação e restaurar a realidade. Mas, quando os abriu, tudo continuava ali.

Ele atônito grita à Francine:

- Não foi sonho eu ganhei um monte de dinheiro, realmente tudo aconteceu.

Contaram o dinheiro, havia cinquenta e três mil reais. Francine surpresa lhe diz:

- Conte-me nos mínimos detalhes o que você se lembra sobre os acontecimentos de ontem.

Ela o sentou no sofá e ficou de cócoras ao seu lado, ele relatou como suas lembranças, todos os acontecimentos da noite anterior.

- Se entendi bem, a mulher não chegou a falar contigo, apenas se limitou a indicar onde deverias por as apostas, é isso?

- Sim, perfeitamente isso.

- E as pessoas viram que a mulher lhe indicava onde deveria jogar?

- Acho que sim, pois ela estava plenamente visível.

- E você não mais a viu após ter ido ao escritório do dono?

- Eu a procurei, perguntei para as pessoas sobre ela, ninguém soube informar.

- E agora o que pretendes fazer a respeito?

- Não abrigo à menor dúvida, hoje à noite retorno ao local e vou procurá-la.

- Irei com você, hoje minha mãe não esta me esperando, disse-lhe que dormiria aqui contigo.

O estomago começava a embrulhar-se, sentia náuseas. Colocou a mão na boca, como querendo impedir uma golfada de vômito e foi ao banheiro. Vomitou no vaso e deu descarga, abriu a torneira da pia e lavou a boca, levantou a cabeça é lá estava ele novamente. Era o seu pior inimigo. O mais cruel, o mais cínico, o mais sem piedade. Um inimigo que falava a verdade. Sempre. Sempre a verdade. Toda aquela verdade que ele sabia, conhecia muito bem e que nunca o abandonava.

Ele era dependente de álcool, e isso era inegável. O espelho que refletia a sua imagem deixava isso bem claro, nas olheiras profundas, os olhos com aspectos sanguinolentos, sua saliva grossa e a língua que mal cabia na boca. Tudo era revelado pelo inimigo, o espelho.

Retornou a presença de Francine, olhou-a, e pensou:

- Uma mulher nova, cheia de vida e entusiasmo, o que quererá com um alcoólatra como eu?Não me lembro da última relação que tive isso Foi a tanto tempo que tenho medo de fraquejar.

- Estais melhor?

- Acho que sim.

- Vou lhe preparar um chá que é uma porretada no fígado. Logo você vai ficar melhor.

- Eu quero é uma dose de vodca- gritou mentalmente, mas se resignou em aprovar maneando a cabeça em sinal de aceitação.

Tomou o chá e foram caminhar:

- Vou levá-la no lugar onde ganhei todo aquele dinheiro, certamente nesta hora está fechado, mas pode ser que o bar esteja aberto, afinal ele é a fachada da casa de jogo.

- Quero acompanhá-lo logo à noite, se você vir a tal mulher me indica que eu falo com ela.

Chegaram ao bar e ele estava fechado.

- Certamente abriria apenas a noite – disse o Caiçara.

- Vamos continuar ou retornamos?

- Acho que devemos continuar, vá que eu encontre a tal mulher.

Caminharam pelas cercanias do bar e não encontraram ninguém que tivesse estado na casa de jogos.

CAPITULO V

RETORNO AO CASSINO

Almoçaram, em um restaurante a quilo, e retornaram ao apartamento no edifício Leblom, pegaram o dinheiro e foram ao banco depositá-lo.

O restante do dia passara como que o tempo estivesse parado, ele caminhava de um lado para outro, passando a língua para lubrificar os lábios, ela assistia televisão e nos intervalos folhava alguma revista.

Eram vinte horas, quando eles saíram do edifício rumando para o bar onde se encontrava a casa de jogos. Lá chegando, solicitaram ao atendente que preparasse dois hamburguês.

- E o que vão beber?

- Refrigerante cola, por favor- disse Francine.

- Para mim uma cerveja.

Francine se mostrou contrariada, mas nada disse.

- O senhor foi quem quebrou a banca ontem? Não foi? – perguntou o garçom.

- Sim, fui eu mesmo.

- E hoje pretende fazer o mesmo?

- Vamos ver se estou com sorte.

Eles comiam, quando as pessoas começaram a chegar e se dirigiam a sala dos fundos.

Passava das vinte e duas horas, quando se dirigiram a sala de jogos. Ao entrarem, um homem fazendo uma mesura, solicitou que eles se dirigissem ao gabinete do proprietário.

- Senhor, tem a nota de credito da casa?

- Sim.

- Diga ao caixa que este senhor tem crédito até o limite da carta.

Eles logo foram levados ao caixa, que solicitou a carta de credito dizendo:

- Ela poderá ficar comigo, e poderão levar a quantia de fichas que desejarem.

Pegou um saco de fichas, no valor de trinta mil reais, e foram para os jogos.

- Veja Francine, foi nesta roleta que eu ganhei.

- Onde está a mulher?

- Não a vejo em lugar algum.

- Devemos esperar que ela chegasse para iniciarmos as apostas. – disse Francine.

- Vamos apostar baixo e ver como estamos de sorte.

Nisso passou um garçom com uma bandeja com copos de bebidas, e o Caiçara pegou um dos copos e o entornou de uma só vez. Francine nada disse, mas mostrou-se decepcionada. Nesse momento — Façam suas apostas, senhoras e senhores- disse o crupiê...

Marsal (O caiçara) apressou-se em colocar várias fichas no preto 17. Logo pegou outra taça de bebida, e logo outra, quando o crupiê anunciou:

— A banca está fechada!

A roleta girou, a bolinha foi lançada, salta de um lado para outro e finalmente se aloja no número ganhador. A roleta gira, cada vez mais lenta até que se podia ver a casa em que parara e o número correspondente.

- Vermelho 27 – diz o crupiê.

Perdera a primeira aposta, mas outras tantas seguiram regada a bebida gratuita e sempre disponível. O Caiçara jogava e bebia. Francine contrariada, já havia desistido de acompanhá-lo e se retirara para um canto sombrio.

Quando as ficha acabavam, ele ia até o caixa e pegava mais um saco de fichas e continuava a jogar.

De repente tudo ficou preto e ele simplesmente caiu como que atingido por uma flecha mortal.

Francine correu ao seu encontro, colocou a mão sobre a carótida e constatou que apenas tinha desmaiado; logo outras pessoas rodearam o incauto, que foi retirado em coma alcoólica. Levado ao hospital foi constatado que se tratava de uma grave reação de hipoglicemia (baixa glicose no sangue). Ficou em observação, após haverem lhe aplicado uma injeção de glicose. O médico que o atendeu explicou a Francine que quando se bebe o álcool passa muito rapidamente pelo estômago e intestinos para o corpo sem ser metabolizado. As enzimas no fígado fazem o trabalho de metabolização do álcool, mas esse processo demora muito. O fígado só pode metabolizar o álcool a uma velocidade, que não tem nenhuma relação com a quantidade que foi ingerida. Ao tomar álcool muito rápido ele não será metabolizado e permanecerá na corrente sangüínea em outras partes do seu corpo até que possa ser metabolizado. As células cerebrais são afetadas por esse excesso, impedindo que o cérebro funcione normalmente com a pessoa apresentando o quadro típico de embriaguez.

Eram sete horas da manhã quando o caiçara foi liberado da observação. Francine ainda estava na sala de espera, ajudou-o a sair e pegar um taxi.

- Que papelão eu fiz ontem, bebi o que podia e o que não podia.

- Você tem de procurar ajuda, sozinho não conseguirá vencer o álcool. Eu não o posso ajudar a não ser que você se ajude.

- Eu sei, acha que eu não me esforço? Acontece que eu não resisto isso é mais forte do que eu.

- Por isso, acho que devemos procurar ajuda.

- Sabe quanto perdi e o que foi feito do resto do dinheiro?

- Enquanto você esteve na recuperação eu retornei ao cassino e arrecadei as sobras, você ainda tem um credito de setenta e quatro mil, seiscentos e cinquenta reais, deram-me uma nova carta de crédito. E a estória da mulher que lhe apontava onde jogar foi fruto de sua imaginação apenas, pois ele, não apareceu.

- É! Receio que sim. Mas tudo foi tão real, que é difícil acreditar que fora apenas fruto da minha imaginação.

- Talvez ela não tenha aparecido por que você estava acompanhado - dando um leve sorriso.

- Não se trata disso, há muitas coisas que você não sabe a meu respeito.

- Por exemplo?

- Quando eu era pequeno, fui adotado por meus tios e padrinhos, pois eu sofria de distúrbios mentais, passava por delírios e imaginava coisas que haviam acontecido. Fui levado a Porto Alegre para tratamento psiquiátrico e não mais fui acometido desses distúrbios, ao menos é o que os meus tios pensavam, pois passei a esconder as anomalias que me ocorriam.

Quando eu tinha dezoito anos, tive uma premunição de que meus pais adotivos sofreriam um acidente de carro. Hesitei em lhes dizer, e por isso considerei-me culpado, quando tudo aconteceu.

Eu estava estudando no meu quarto, a música baixa, pois eu costumava estudar com musica, isso me confortava e me deixava atento no que estava estudando. De repente tive consciência de um clarão de luz — agitação, fluxo, não sei como designá-lo, não consigo encontrar nenhuma palavra para descrevê-lo satisfatoriamente — no qual eu parecia ver aquele quadro dramático e aterrador. Eles sofreram um acidente e batem na murada de uma ponte, logo outro veiculo choca-se na sua traseira e o carro pega fogo, via uma explosão e o fogo dominando tudo.

O pior que tudo aconteceu exatamente como eu havia imaginado em pura abstração.

- Você contou a mais alguém que havia previsto o acidente?

- Não, não tive coragem, pelo fato de que ninguém iria acreditar como você não acredita na mulher que me indicava os números a serem jogados.

- Você tem razão é difícil acreditar ainda mais quando as coisas não acontecem quando estamos juntos.

Pegaram um taxi e foram para o apartamento no edifício Leblom.

- Você vai ficar deitado, ainda está em recuperação. Ao meio dia vou ao restaurante e pego comida para nós. Agora descanse que eu vou arrumar o apartamento.

O dia passava sonolento, almoçaram ao meio dia, assistiram televisão e jogaram baralho. As horas não passavam. O caiçara já estava ficando impaciente. Às dezenove horas Francine olhando-o no fundo do olho lhe disse:

- Hoje vou ficar com minha mãe, afinal ela também precisa de mim. Mas volto amanhã cedinho. Aconselho-o a não sair à noite. Mas se resolver sair, por favor, não beba até desfalecer, pois poderá morrer sem socorro.

Deu-lhe um beijo na testa, pegou sua sacola e saiu.

Enquanto descia pelo elevador, pensava:

- Amanhã vou me informar sobre os AA. e vou sugerir que procure ajuda.

Ele, sozinho no apartamento, olhava para tudo que o cercava, fazia planos de resistir à impulsão pela bebida, pois, em outras oportunidades havia passado mais de três dias sem beber. Desta vez resistiria, queria recebê-la no outro dia, sóbrio e dizer-lhe que não havia bebido.

Francine chega à sua casa, sua mãe a recebe e lhe pergunta:

- Como está Marsal?

- No mesmo, não consegue parar de beber, e descobri que ocorrem coisas estranhas com ele.

- Diga, diga o que é que acontece com ele?

- Vê coisas absurdas, tem sonhos horríveis, em fim é todo complicado.

- E fizeram sexo?

- Não, até agora não. Ele parece que tem receio de falhar na hora H. Como ele não tomou qualquer iniciativa eu fiquei só na expectativa.

- Tive várias colegas, que quando estavam completamente dependentes do álcool, deixaram de se interessar por sexo, faziam, apenas para ganhar dinheiro. Quase todas morreram de cirrose hepática. E, as coisas que está vendo ou sonhando, não passam de efeito da abstinência ao álcool- disse Justine.

- Ele me disse que fora a um cassino clandestino e que lá estava uma mulher que apontava para os números que deveria jogar, e sabe, ele ganhou mais de cem mil reais em uma só noite!

Retornamos na noite seguinte, a mulher não apareceu, ele só perdeu.

- Tudo foi fruto da imaginação sob o efeito do álcool- disse Justine.

- Eu também acho que tudo não passou de alucinações alcoólicas.

A luz do dia já declinara, e a penumbra estava rapidamente cedendo às trevas da noite. O caiçara preparava-se para sair, mas jurara a si mesmo, perante o espelho de que não colocaria uma gota se quer de álcool na boca.

Caminhou, ao longo da avenida beira mar, alguns prédios, começavam a iluminar-se, outros por estarem completamente vazios, continuavam ao abrigo da escuridão. Todo o seu ser clamava por uma bebida, fosse qualquer uma, desde uma simples cerveja a uma dose de vodca. Ao mesmo tempo seu cérebro o lembrava do firme propósito de não colocar uma gota de álcool até o dia seguinte. Pensou em jantar, mas poderia não resistir à tentação de pedir uma bebida, abandonou a idéia e seguiu em frente.

Lembrara-se de quando iniciara a beber, era por simples prazer de tornar-se alegre, e divertir-se com os amigos, nas baladas de finais de semana, onde os alunos da universidade frequentavam. As meninas que levava para o escurinho, para fazer sexo escondidos sob as mesas, sem que ninguém perturbasse.

Ficou abstêmio na fase inicial de seu casamento, sua esposa rejeitava qualquer tipo de bebida. Logo veio o filho, e ele, enquanto ela estava no hospital, resolvera festejar com os amigos e tomou um memorável porre de vodca. No outro dia, com uma terrível dor de cabeça, fora ao hospital visitar sua mulher, que ao vê-lo lhe disse:

- Andaste bebendo, que vergonha, seu filho recém nasceu e já tem um pai alcoólatra.

- Ficou contrariado, mas apenas disse que fora comemorar o nascimento do filho com os amigos do escritório. E, que isso não aconteceria mais.

Passaram a dormir em quartos separados, pois ela tinha de cuidar do menino e ele roncava, além dos pesadelos que o atormentavam, acordava suando e desesperado. Às vezes aos gritos, o que perturbava a criança.

As noites mal dormidas, os sonhos aterradores, as visões que tinha sem saber se estava dormindo ou acordado, o estavam levando a loucura. Furtivamente levou para o quarto uma garrafa de vodca, e antes de dormir tomava um cálice. Passou a dormir melhor e não despertar a noite em sobressalto. As doses a cada noite iam aumentando para que o mesmo efeito fosse alcançado. Durante o dia nunca bebia, mas já estava percebendo que o álcool lhe fazia falta no decorrer do dia. Sentia-se nervoso, inseguro e irritado. Para se acalmar passou a beber furtivamente durante o dia. Não demorou muito, a sua esposa começou a perceber que não mais havia aquela tranquilidade em seu lar: os diálogos estavam sendo substituídos por agressões verbais; o filho se sentindo acuado pelas brigas dos pais. Todas as suas virtudes estavam deslizando e distanciando-se ao decorrer do tempo, ainda não se apercebia, ou seja, não sentia que estava sendo cada vez mais aprisionado pelos grilhões da doença – o alcoolismo.

Começou a faltar o serviço, pois adoecia com frequência, com problemas no fígado. A noite passou a frequentar bares e cabarés e quando retornava a casa se encontrava completamente embriagado. Por se encontrar sempre sob o efeito do álcool, seus distúrbios mentais haviam desaparecido, momentaneamente.

As luzes das ruas já estavam acesas, mas produziam apenas pequenos pontos luminosos que pouco a pouco eram cobertos pela neblina. Encostou-se num dos postes e olhou para seu pequeno relógio redondo de pulso. Em seguida olhou para a massa formada pela névoa e encolhe os ombros com frio.

Caminhou pelas ruas, sem destino certo, confuso sem saber o que deveria fazer, apenas lhe vinha à mente que teria de resistir à compulsão pela bebida. Tinha fome, mas não queria adentrar em um restaurante, seria o mesmo que admitir a hipótese de tomar cerveja e logo continuar bebendo até que perdesse os sentidos novamente. Não, não poderia fazer isso em hipótese alguma. Procurou uma carrocinha de cachorro quente, seria o necessário para aplacar a fome que corroia seu estomago. Comeu duas porções, sentiu-se satisfeito, havia passado aquela corrosão em seu estomago. Olho para o relógio que marcava vinte e uma horas e quarenta e cinco minutos. Dirigiu-se a casa de jogos. O bar que antecedia a sala de jogos estava vazio, os habitues já estavam no interior do salão de jogos. Olhou para todos os lados lá estava à mulher que lhe havia propiciado ganhar uma pequena fortuna na roleta. Nessa oportunidade parecia que a estava vendo melhor, parecia mais visível aos seus olhos. Uma mulher esbelta, estatura mediana, cabelos pretos mechado de branco na parte frontal. Olhos verdes pareciam duas esmeralda que se destacavam sob sobrancelhas negras e espessas. Seios fartos concordavam com as curvas acentuadas do seu corpo, coberto por um vestido vermelho escuro. Seu semblante esboçava tranquilidade, um sorriso gracioso, formado por lábios carnudos.

O Caiçara acompanhava a dama de vermelho, com os olhos. Ela se colocou junto da mesa de roleta. Havia uma porção de rostos gordos e magros lá, cidadãos bem vestidos. Pilhas de fichas na frente de alguns. Pilhas menores diante de outros. E a roleta no meio da mesa girando, a roleta com os 36 números e o zero e o duplo zero, a roleta com o ver¬melho e o preto. Cada vez que girava, algumas das pilhas de fichas ficavam menores e outras se tornavam maiores.

Alguns dos jogadores deviam ter mais de dez mil reais em fichas na sua frente e continuavam a ganhar. Alguns dos outros continuavam a perder e a comprar mais fichas.

Mas, ganhando ou perdendo, todo mundo estava excitado. Marsal (o Caiçara) podia sentir o excitamento em torno da mesa se irra¬diando em ondas. Todos observavam a roleta girar, a cada vez. O Caiçara ficou observando também, sentindo a pressão. Se ao menos ela lhe apontasse agora onde deveria apostar...

Ele olhou para a dama de vermelho. Ela também não esta¬va jogando, apenas olhando, da mesma forma que ele. Não exatamente da mesma forma, porque ela não estava excitada. Marsal podia percebê-lo pela maneira como ela estava parada ali, mais parecendo uma estátua. Ninguém mais prestava qual¬quer atenção à dama de vermelho, embora ela fosse a coisa mais quente que havia na sala. Era de se pensar que nem mesmo sabiam que ela estava ali, a julgar pelo jeito como a ignoravam e continuavam fixados na mesa, na bolinha de prata quicando pelo lado da roleta.

Ela olhava, mas seus olhos nunca se alteravam. Não cerrou as mãos, não respirou fundo, nem mesmo parecia interessada. Era quase como se soubesse quem ia ganhar e quem ia perder.

O crupiê anunciava:

— Façam jogo, senhoras e senhores...

O Caiçara contemplou-a, atentamente. De repente, ela virou a cabeça e tornou a fitá-lo. Aqueles olhos pareciam um par de pedras brilhantes. Marsal (O Caiçara) quis desviar os olhos, mas ela o fez pri¬meiro. E depositou os olhos na roleta e apontou para o vermelho 15.

Ele pegou a carta de credito que tinha no bolso e a colocou no número indicado pela dama de Vermelho. O crupiê pegou-a, olhou-a atentamente, chamou um dos observadores e falou-lhe algo ao ouvido entregando-lhe a carta. Dirigindo a Marsal, disse: Ele vai validar a sua aposta. Logo o homem retorna e faz um sinal com a cabeça. A carta é colocada sobre o vermelho 15.

O crupiê de¬clarou:

— A banca está fechada!

A roleta girou, a bolinha foi arremessada contra giro, pulou de um lado para outro e se alojou em um dos sulcos numerados. A roleta foi logo diminuindo o giro e logo o número sorteado foi revelado.

O crupiê cravou os dentes no lábio inferior. Seu rosto ficou ruborizado, com voz embargada de-clarou:

Vermelho 15. O cavalheiro da carta de credito ganhou.

O caiçara olhou para a dama que o orientava, ela não esboçava qualquer sentimento, qualquer emoção, apenas o fitou com um olhar melancólico. Eufórico procura o garçom com a bandeja de bebidas, mas ele não estava perto. – Não posso beber se não posso perder e, além disso, posso desfalecer e hoje não posso contar com Francine.

Olhou mais uma vez para a dama de vermelho. Ela apontava para o preto 17. Pegou tudo o que havia ganhado mais a carta de crédito e colocou tudo no número por ela indicado.

Ganhou mais uma vez e a banca estava quebrada novamente.

Ele logo foi levado ao gabinete do proprietário. O lugar, um cômodo pequeno e sóbrio, está quentíssimo e saturado de fumaça de cigarro.

Continua no próximo mês...

rocado
Enviado por rocado em 19/01/2019
Código do texto: T6554594
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