Caso 131-7

Os homens e suas sociedades estão em constante transformação, ser parte do grupo requisita que os indivíduos se adequem aos complexos e velozes processos de produção, de consumo. Alguns sujeitos conseguem encaixar perfeitamente no sistema, outros são mais vagarosos, e outros, infelizmente, jamais se encaixarão. A pirâmide das necessidades humanas, segundo Maslow, é um constructo simbólico muito rígido e, por isso, quem não consegue alcançar o topo de suas próprias projeções não passa de alguém com um equivocado senso de realização, uma mentira, uma autoilusão. Algo que eu pensava ser uma patologia, um grande desvio da realidade produtiva pela qual vivemos e nos realizamos, assim como Marx, em sua peculiar forma de interpretar a realidade.

Eu precisei alterar esta minha percepção de realidade por causa de um curioso caso que recebi de um Centro de Atenção Psicossocial (abreviado como CAPS) – o caso 131-7 – que chamou minha atenção por causa da CID F20.1 de um paciente – um homem adulto de 47 anos – que reside nesta cidade, Indaial, no centro do que os catarinenses chamam de Vale Europeu. Como psicoterapeuta com formação em hipnose regressiva, eu consegui tratar de muitos pacientes fóbicos que tinham traumas severos, mas este homem o qual descreverei em breve continua sendo uma incógnita para minha atuação profissional.

Conheci primeiro a esposa de F., por razões éticas não darei nomes, apenas iniciais, a senhora R., uma mulher de estatura mediana, de cabelos lisos de cor de mel, olhos profundamente verdes e mãos marcadas pelo trabalho duro da roça. Ela contou-me que seu marido sofria todos os dias, às 18h pontualmente, de uma forte febre que o fazia delirar, em suas próprias palavras – ficar fora da casinha –, depois ele corria para o meio de sua horta e começava a gritar guturalmente, algo sem sentido para quem ele realmente era nas demais horas do dia. Lá ele ficava o resto da noite até o amanhecer, quando caia desmaiado totalmente absorto do que fizera.

Em um final de semana, durante a visita dos filhos que na época moravam em Blumenau por causa dos estudos, a filha do casal, a jovem G., viu o estado lamentável do pai, que acabara de sair do seu torpor e se levantava sujo de lama e de esterco do chão. A senhora R. discutiu com G. o motivo da mãe não ter levado, ainda, o pai ao hospital. A mãe alegou sua falta de habilidade com as coisas da cidade, já que ela era semianalfabeta.

À altura do acontecido, a filha resolveu que levaria o pai ao hospital Beatriz Ramos, o único na cidade. Lá deu entrada para os cuidados iniciais do pronto-socorro, alguns curativos, uma receita de um calmante do médico plantonista e um encaminhamento para o CAPS. Quando conversei com a filha, ela relatou-me de uma conversa a caminho do hospital com seu pai, que lhe falou sobre as pedras que flutuam pela eternidade e sobre o grande homem com rosto de polvo que nelas dorme. A jovem sem entender nada disse para o pai ficar quieto.

No dia 4 de setembro, às 19h30, depois que R. saiu do meu consultório, eu recebi uma chamada telefônica de uma cliente que frequentava meu grupo de terapia hipnótica. No telefone, a mulher estava histérica porque seu filho mais velho estava convulsionando no chão do seu apartamento enquanto falava uma língua desconhecida. Como profissional da saúde, orientei que ela ligasse para o SAMU da cidade, já que seu filho representava um risco para si naquelas condições. O telefone deu o sinal de linha ocupada, pensei na época que ela havia desligado na minha cara. No entanto, eu soube depois, por uma vizinha, que a gritaria no apartamento aumentou e depois se ouviu um barulho de tiro. Os vizinhos chamaram a polícia, que invadiu a residência localizada no quarto andar, mas nada encontraram, nem mãe, nem filho, nem móveis, nada. Apenas a luz acesa do banheiro com uma porta entreaberta, a qual fazia um feixe de luz sobre o corredor escuro, e o vidro do espelho do banheiro que estava rachado formando um tridente invertido deformado.

No dia que conheci F., dia 6 de setembro, às 14h30, ele veio com sua esposa. Aparentemente, o jovem senhor não mostrava nenhum sinal de transtorno psiquiátrico. Alto, loiro, com a pele do rosto marcada por rugas e manchada pelo sol, F. sentou-se confortavelmente na cadeira reclinável do meu consultório, o qual tinha a iluminação regulada para relaxar as vistas junto com uma trilha musical, a nona sinfonia de Chopin, música que particularmente invoca em seus ouvintes uma nostalgia transcendente de tempos e eras, uma verdadeira ponte para trabalhos de relaxamento mental que usam a hipnose.

– Quando o senhor estiver confortável, vamos começar – eu disse.

– Doutor, isso dói?

– Não fará mal, apenas relaxe seu corpo, feche seus olhos e se concentre na sua respiração – disse-lhe com um tom de voz calmo e compassado. Esta é a minha técnica de hipnose, a qual é usada para penetrar na mente alheia sem agressões. – Imagine que você está cuidando da sua horta. O sol no horizonte está se pondo e o céu está escurecendo, contarei até três, três vezes, e você será meu.

F. respirava vagarosamente, sentira que ele entrara em transe hipnótico rapidamente. Em uma cadeira no fundo da sala, perpendicular a uma estante de livros cheias de enciclopédias e outros livros de psicologia, R. assistia a tudo. Ela usava um terço na mão e seus olhos estavam fixos sobre o marido, “uma posição de defesa para o que pudesse acontecer”, imaginei quando a olhei.

O homem deixou sua cabeça cair levemente para o lado, o transe estava completo. Aumentei levemente a nona sinfonia. O agudo das teclas do piano chama nossa alma para fora, cada nota em sustenido, cada batida e deslize das cordas do violino são como ondas que massageiam a essência humana para seu caminho original, para o desconhecido.

– F., agora você está na casa dos seus pais, você está assentado à mesa tomando café da manhã. O dia é domingo – eu falo conduzindo sua mente às memórias para saber se algo irá despertar no campo do tempo da infância.

O senhor começou a respirar mais rápido, seus dedos se torceram para o interior da sua mão, que ficou vermelha pela pressão que sofria. F. estava em posição de ataque naquele instante. Eu precisava tomar controle da situação.

– F. o que você vê?

– ...

– ..m.

– ..mor.

– F., seja mais claro! O que é “mor”?

A mão esquerda de F. se levantara e permanecia rígida no ar como uma macabra saudação nazista com o punho cerrado.

– ...morte.

– Alguém morreu, F.? Você quer falar sobre isso?

– ... su.

– ...sua mor.

– A minha morte?! Seja claro, F.

– Ca..tchu...looooloooooooo.

F. se debatia violentamente enquanto silvava em tom gutural uma palavra desconhecida longa e macabra, um som que jamais ouvira. O ambiente tranquilo do meu consultório se encheu de uma estranha perturbação palpável. A senhora R. estava de olhos fechados com o terço entre as mãos, ela parecia rezar com muita convicção a ponto de achar que se encontraria com Deus ali.

– Quando eu contar até três, você voltará! Disse firmemente sem parecer ansioso por causa daquela reação esquisita. – 1...2...3!

– ...

– ... Huma.. no..., tolos...

– ...os ... falsos... doo... ooonos... cairão! Disse F. antes de se acalmar e dormir eternamente.

O caso 131-7 se mostrou incurável para mim, para a medicina, para o mundo da matemática e das possibilidades reais. Sua esposa, depois da sessão e de toda a burocracia e processos pelos quais passei, disse que sabia que seu marido seria levado embora – “deus me disse, doutor” – foram suas palavras. Foram suas palavras antes do caso ser arquivado. Meses depois, no dia 2 de março, às 21h30, eu estava desligando meu computador do escritório para ir embora. O último paciente cancelara sua sessão, a última do dia. Desliguei a música e as luzes, estava no meio da sala quando o telefone soou seu longo “trim” monofônico. A princípio retruquei, mas acabei voltando para atender.

– Alô? Quem é?

Apenas o som chiado de uma linha com interferência estática era ouvido.

– Quem é?! Fale... Isso não é hora para brincadeira.

Na linha: – ... ca... tchu... loooooolooooo.

O mesmo som sibilante e gutural que saíra da garganta de F. Um arrepio percorreu meu velho corpo enquanto punha o telefone no gancho outra vez. Desde aquele dia, então, todos os dias às 21h30 o telefone toca antes de eu sair do consultório para me passar a tenebrosa mensagem.