La cumparsita

Era uma manhã de forte nebulosidade mas a visão era quase divinabólica:

uma esplendorosa figura feminina, trepada à mureta da ponte e abraçada a um poste - não haddádico... - ameaçava saltar para uma morte certa em águas turbulentas de um rio...Itapecerica, se não me desvario...

Comoção e perplexidade, trânsito bloqueado, polícia tentando manter a ordem, mas a cada passo de aproximação, mais a candidata ao oblívio reforçava sua determinação de saltar por meio de lancinantes brados...

Até que um jovem cavalheiro, másculo e belo até dizer chega, além de protótipo de herói, tomou a dianteira e perguntou se antes da partida definitiva, poderia dar um abraço de adeus...

Diante do assentimento tácito de iminente vítima fatal, ele, resolutamente aproximou-se mais, trepou acrobaticamente à murada e enlaçou aquela misteriosa figura com ambos os braços e a partir dali, o beijo apaixonado foi inevitável - e demorado... para o aplauso generalizado e os brados, gritos e urros de vivam, vivam!!!

O problema, contudo, foi o arremate, quiçá um tanto precipitado para as circunstâncias quando ele perguntou:

- Mas por quê, meu anjo, querias saltar para a morte mais que certa, com tanta juventude, vida e futuro pela frente...?

A resposta veio imediata:

- É que meus pais não me aceitam e até me deserdaram somente porque eu resolvi remover minha genitália e assumir minha condição feminina...

O que se seguiu foi um tchibum que continuou a retumbar e a retinir em centenas de ouvidos...A cumparsita, interrogada a seguir, jurou nada ter entendido...

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 16/02/2019
Reeditado em 11/04/2022
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