Passado submerso

Depois de despedir-se dos tripulantes do navio oceanográfico "Daucina", da Armada Espanhola, o tenente Juan Martín Guillén desceu pelo poço que atravessava o lastro, e instalou-se na esfera de pressão de onde conduziria o batiscafo "Hidalgo" em uma descida pioneira ao fundo do Abismo Laurenciano, uma fossa abissal localizada na costa atlântica do Canadá. Embora não fosse o ponto mais profundo do oceano Atlântico, o Abismo há muito despertara a atenção dos cientistas pela existência de grande número de fontes hidrotermais que permitiam a existência de complexos ecossistemas, mesmo na total ausência de luz. Especulava-se que em outros planetas, ou mesmo em luas do Sistema Solar, formas de vida poderiam ter surgido sob condições semelhantes, em oceanos protegidos do vácuo do espaço por grossas camadas de gelo.

- Pronto para liberação, "Daucina" - informou Guillén pelo microfone do headset. Ele estava sentado em frente à janela de observação feita de um bloco inteiriço de acrílico, pela qual comandaria o aparelho não somente na descida, mas também durante a navegação horizontal ao longo do Abismo, muito mais um vale do que propriamente uma fossa abissal.

Os cabos que prendiam o batiscafo ao navio oceanográfico foram soltos, e ele começou a descer numa taxa constante de 3 km/h. Como o leito do Abismo ficava à 6.000 metros abaixo do nível do mar, ele preparou-se para pelo menos duas horas de cuidadosa observação dos instrumentos, visto que não havia muito mais a fazer até atingir o fundo. Pelo sistema de comunicação, que conjugava sonar e hidrofone, o tenente informou que tudo transcorria de acordo com o esperado.

- Acendendo iluminação externas... acho que vi uma baleia - anunciou em dado momento.

Um grande vulto escuro passou ao longe, aparentemente assustado pelas luzes brilhantes do batiscafo. Em seguida, alguns peixes aproximaram-se para acompanhar a descida daquele estranho intruso.

- Vinte minutos para início da navegação horizontal... rastreando fontes hidrotermais próximas - alertou, quando o "Hidalgo" passou a marca dos 4.000 metros de profundidade.

Pouco depois, avistou o fundo do oceano, pontilhado por chaminés de fumarolas negras que soltavam densas colunas de água escura pela presença de sulfetos metálicos, lembrando um aglomerado de fábricas submersas. Passando a navegar na horizontal, e manobrando cuidadosamente para desviar do fluido superaquecido, Guillén avistou o que parecia ser um arco natural entre as paredes do Abismo, como uma grande ponte construída por uma civilização extinta. Apontou a proa do "Hidalgo" para lá, e como o leito oceânico abaixo dele estivesse livre de fumarolas, resolveu passar por baixo da estrutura, para ter uma ideia mais precisa de sua composição.

- Há um arco rochoso atravessando o Abismo... vou me aproximar para fazer imagens - avisou ao "Daucina".

No exato momento em que o "Hidalgo" passou por baixo do arco, as luzes externas piscaram. Em seguida, apagaram-se. Além da vigia de observação, tudo o que podia se ver era escuridão.

- "Daucina", tivemos uma falha na iluminação externa - comunicou Guillén, tentando fazer inutilmente com que o sistema voltasse a funcionar. Não obtendo resposta, repetiu a mensagem, obtendo o mesmo silêncio anterior.

- E essa agora... pane nas luzes e na comunicação! Melhor iniciar os procedimentos de subida de emergência - avaliou.

Soltou o lastro do batiscafo e imediatamente começou a subir, num ritmo ligeiramente mais rápido do que o da descida. A medida em que o sonar começou a mostrar que estava aproximando-se da superfície, algo começou a inquietá-lo profundamente: não havia qualquer sinal de luz do dia lá fora. Ele imergira no fim da manhã, e somando o tempo de descida e subida, deveria estar agora no início da tarde. Mesmo que uma tempestade estivesse castigando o Atlântico, teria que estar vendo alguma luz pela janela de observação. E no entanto, nada se via.

- "Daucina", tempo estimado para a superfície... 10 minutos - avisou, sem receber qualquer sinal de que a mensagem fora recebida.

Tentou tranquilizar-se, mas findo o tempo previsto, o "Hidalgo" rompeu a superfície da água e ele continuava a não ver nada pela janela à sua frente, embora o suave balanço que sacudia o aparelho indicasse que ele estava emerso. Seria possível que, por algum estranho fenômeno, houvesse permanecido mais tempo nas profundezas do que o registrado no relógio de bordo? Talvez fosse noite agora, e ele tivesse derivado para longe do navio-base. Agarrando-se à esta possibilidade, começou a girar o batiscafo sobre seu eixo, tentando ver alguma luz lá fora. Finalmente, seus esforços foram premiados: viu um ponto de luz à distância, muito fraco e amarelado. Encheu-se de esperança e acionou o motor, rumando para lá o mais depressa que podia.

A luz foi crescendo na janela de observação, e igualmente a sua perplexidade. Não era uma embarcação, como ele pensara a princípio... parecia uma lâmpada incandescente, suspensa sobre uma escadaria que mergulhava nas águas escuras onde ele navegava. O sonar começou a dar sinais de que a profundidade estava reduzindo-se rapidamente, e pouco depois optou por cortar o motor, antes que ficasse encalhado. A escadaria estava bem à sua frente, e parecia velha e gasta. Ao redor dela, apenas trevas, como se estivesse dentro de uma imensa caverna.

Guillén não viu diante de si outra opção que não fosse sair e ver o que havia lá fora. Abriu a escotilha que ligava a esfera de pressão ao casco do submersível, subiu pelo poço, e finalmente viu-se no topo do "Hidalgo". O ar ali era pesado e cheirava à maresia, mas podia respirar sem problemas. Encheu um bote inflável, entrou nele, e remou pelas águas calmas até o ponto onde a escadaria entrava nas águas. Agora podia ver que havia uma porta de madeira, no alto da escadaria, e foi para lá que se dirigiu. Antes de girar a maçaneta de latão, olhou para baixo e viu o bote cor de laranja junto aos degraus, e mais adiante, o vulto maciço do "Hidalgo" emergindo da escuridão.

A porta abriu-se com um rangido, e perante seus olhos assombrados, o que viu quase o fez recuar de volta. Estava num porão, atulhado de tranqueiras e móveis quebrados. O mais notável: ele conhecia aquele porão, estivera ali muitas vezes, em criança. Ficava na casa do avô paterno, em Málaga, na Andaluzia. Como aquilo poderia ser possível, perguntou-se inutilmente. Málaga ficava às margens do Mediterrâneo, e a casa do avô fora demolida há muitos anos, para a construção de um edifício residencial.

Havia uma outra escada no porão, que levava ao térreo da casa, ostentando outra porta, que estava fechada. Guillén ouviu passos lá em cima, como se alguém estivesse prestes a descobrir sua presença ali. Decidiu que não iria ficar para saber de quem se tratava, e virou-se para tomar o caminho de volta ao "Hidalgo". Contudo, à sua frente havia agora apenas uma parede de tijolos.

A porta para o mar, desaparecera.

- [08-06-2019]