Cemitério: hotel quatro estrelas

Dr. Júlio, um renomado professor de Filosofia. Muito culto, leitor assíduo de jornais, livros, livretos, artigos filosóficos, escritor, poeta e cantor nos finais de semana. Ótima pessoa, mas de um temperamento muito curto. Sempre está metido em polêmicas, sejam elas do meio artístico, político, social e outras.

Certo dia, após os compromissos na faculdade, entrou em polêmica com um político e só não saíram aos tapas por causa do vigário local. Foi orientado a ficar mais calmo, portanto a palavra “calma” não está em seu vocabulário. Sempre, de muitas vezes, explode de fúria.

No último semestre, em reunião com a direção da faculdade, teve um surto de zanga que o deixou muito exausto. Não tinha para ninguém e sempre as decisões e os pensamentos eram, sem dúvidas, complexos e difíceis de serem entendidos pelos alunos, pelos colegas de profissão, enfim, pela sociedade em geral.

Participou de um encontro de jovens no último final de semana, mas quase foi expulso do evento pelo fato de ir contra as ideias do palestrante. Foi um tempo quente entre os dois. Parece que até o nome da mãe deles foi falado no dia.

Foi convidado para ser intermediário de um debate sobre a violência promovido pela faculdade onde trabalha. O termo violência foi mencionado várias vezes que ele mesmo interviu para que os participantes dissessem “crueldade”. Mais um fato não aceito e virou tempestade no debate. Quase saíram aos tapas e mais uma vez teve o encerramento antecipado.

Foi ao mercado comprar frutas. Lá encontrou outro professor de filosofia. A conversa entre eles foi muito demorada e precisaram ser retirados do recinto. Foi um tempo exasperado e foram discutir na rua. Quase saíram aos tapas.

Todos os lugares onde frequentava tinha confusão.

Ele, por ser uma pessoa muito inteligente e de grande saber, não aceitava as opiniões dos outros. Sempre eram suas opiniões, os seus pensamentos e os seus desejos, os mais corretos e de acordo com as correntes filosóficas. Tudo tinha a polêmica e das polêmicas é que surgiam as brigas, as palavras de baixo calão, enfim, tudo o que acontecia era fruto do pensamento.

Certa vez foi padrinho de casamento de um ex-aluno. Não deu outra. Iniciou outra querela com o juiz de paz. Quase não houve o casamento.

Foi casado e ficou nem um mês com a família. Na lua de mel criou outra contenda com a esposa sobre questões filosóficas.

Autor de vários livros, mas sempre que os lança ele cria uma contestação sobre tudo. Até mesmo o canto dos pássaros é motivo para questionar.

Foi ao médico e somente não teve briga porque o médico era o próprio pai. Tudo que ele dizia, o pai concordava e foi uma das maneiras de vencer a ânsia e uma forma de terapia contra a cólera que estava dentro dele.

O irmão era psicólogo e sugeriu que ele tirasse um momento de férias, mas longe de tudo, até mesmo longe da própria natureza. Pensou várias vezes e não achou nenhum lugar.

Um certo dia, o celular toca dentro da sala onde lecionava. Não atendeu no momento, mas a insistência era muita que ele pediu licença para atender. Do outro lado da linha estava a ex-sogra, que chorando comunicava o falecimento da filha, que fora casada nem um mês. Ficou triste e via-se as lágrimas rolarem nos olhos. Perdeu o sentido do que falava e foi amparado pela aluna, da qual, há cinco minutos antes, teve mais uma refutação. Triste e desolado, sentou-se perto da aluna e ela veio ampará-lo, juntamente com os demais alunos. A aula acabou e ele foi imediatamente para o velório da falecida na cidade vizinha.

No velório encontrou com várias pessoas conhecidas, com antigos professores, antigos alunos e um deles foi proclamado bispo e veio celebrar a missa. Até que desta vez ele respeitou todos os presentes. Não criou nenhuma polêmica, mas arregalou os olhos quando o bispo disse algumas palavras que não se relacionavam bem com a matéria Filosofia, mas a cunhada falou aos ouvidos dele para não dizer nada, pois sabia que ele iria com tudo e todas as técnicas ao bispo. Foi difícil, mas foi contido.

Após o velório, Dr. Júlio ficou por mais tempo no cemitério. Não queria sair e ficou perto do túmulo da esposa, com que ficou casado nem mesmo um mês. Ele a amava muito. O temperamento dele é que lhe atrapalhava. Era autor de vários livros, palestrante em várias conferências, um exemplo de professor, mas tinha o atilho muito curto. Queria mudar, mas não conseguia.

Triste da vida, no outro dia, pediu licença na faculdade por quinze dias. Estava desolado em perder o amor da vida. Mesmo estando separados, ela o consolava pelo telefone e muitas vezes ele foi visto conversando com ela na praça e até mesmo na casa dela. Não estavam casados, mas eram a mesma coisa de um casal. Ela era a melhor amiga e a pessoa que ele mais confiava.

Em todos os dias ele ficava no cemitério. Levou uma cadeira, uma pequena mesa e o computador pessoal. Ali, pelo menos nos quinze dias que ficou afastado, ele escrevia mais livros, mais artigos e pensava melhor a vida.

Estava fazendo muito frio neste dia e ele não estava se sentindo bem. Ficou lá até mais tarde e pediu para o coveiro que naquela noite ficaria ali. Gostaria muito de ver a noite dentro de um cemitério, de contemplar a vida após a morte e ainda não se contentava com a morte prematura da esposa. O coveiro concordou e ainda lhe trouxe um cobertor e um travesseiro, pois a noite prometia ser fria. O tempo foi passando. As estrelas apareceram no céu e uma paz reinava ali, dentro daquele cemitério. Era uma sexta-feira e não tinha mais ninguém para ser velado. Dia de folga do coveiro, mas Dr. Júlio anotou o telefone do coveiro e prometeu que vigiaria o cemitério naquela noite.

Dr. Júlio andou no cemitério por parte da noite. Parava perto de um túmulo, perto do outro. Apreciava a arte de construção, as flores, as luzes que refletiam sobre eles. Notou que todos eles tinham uma cruz, um símbolo que os cristãos diziam ser a força da fé, a arma da salvação e o modo com que definiam a vida e a travessia para a morte. Ele não concordava muito com isto. Era um grande professor e conhecia fielmente a ciência com que ele tinha sempre o prazer em ensinar a quem quisesse aprender. Era muito incompreensível em entender o que pensavam as pessoas. Para ele, o importante era o conceito filosófico do ser enquanto vida, do ser que era um dos precursores das ciências: a Filosofia.

Sentia frio e pensava, pensava mais uma vez, refletia sobre a vida, sobre o mundo e sobre as pessoas. Pensava em mudar a maneira de viver. Ponderava sobre as pessoas e o respeito que ele teria que ter sobre elas. Dizia consigo mesmo que precisava mudar de vida. Não tinha amigos, mas detinha o mundo cheios de inimigos. Adormeceu sobre o túmulo da esposa.

Após meia hora de sono, sonhou os mais belos sonhos. Sonhou que estava sendo tragado para um negro buraco e sem fim. Não tinha ninguém a seu lado. Os livros, as palestras e os diplomas não mais existiam. Eram tudo falsidade, eram conquistas das pessoas mundanas. Acordou meio atordoado e pensou a falta que a esposa fazia. Disse em voz baixa que queria ser abraçado por ela, que sentia falta dos beijos e das carícias, enfim, disse e suplicou perdão. Adormeceu novamente.

Acordou novamente e sentiu que o cobertor estava sendo puxado para baixo. Ele fazia força para colocá-lo novamente sobre ele, mas a força era tanta que os braços doíam e o perdia a cada momento. Sentiu algo sobre ele. Um enorme peso vindo por cima dele e um frio, alguma coisa mais fria que gelo afagando o rosto. Queria gritar, mas a voz era tragada por algo tentando beijá-lo e tocar o corpo.

Após muito esforço, livrou-se daquilo e saiu correndo pelo cemitério. Sentia que algo o seguia a ponto de agarrar-lhe, mas sua força e o pensamento em dizer em voz bem alta que mudaria após sair dali, deram-lhe velocidade e a forma de escapar. Pulou o muro do cemitério e nunca mais voltou ali.

Retornou à faculdade e mudou completamente a vida. Ficou mais calmo e nas polêmicas sempre procurava ouvir, analisar e dar a opinião. Os amigos voltaram. A vida teve mais brilho e mais amor. Voltou a acreditar em si mesmo e sempre lembrava da esposa como o remédio de cura para si mesmo. Não quis mais nenhum relacionamento com ninguém. Vinte anos após o acontecido, falece ele de acidente de veículo e foi enterrado no mesmo túmulo onde a esposa estava. O mesmo coveiro o enterrou e disse que o falecido fora aluno dele.

JOSÉ CARLOS DE BOM SUCESSO
Enviado por JOSÉ CARLOS DE BOM SUCESSO em 14/07/2019
Código do texto: T6695753
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