Sótão tão só

As memórias, por mais doces, amargas ou alcalinas que sejam, enterram-se na mente daqueles que um dia sentiram seu sabor, esse refúgio, que permite um entranhamento singelo das mais íntimas lembranças não passa de um empoeirado sótão em uma casa prestes a ser abandonada por aqueles que a habitam. Em mudanças residenciais, o sótão é responsável por eternizar a identidade de seus moradores, o que graças ao mistério antiquado que ele evoca sobre o resto do interior, e por ser encarado como inútil e imutável, independente do que se faça, geralmente suas estatísticas de exploração por olhos curiosos são irrelevantes, um sótão é um sótão, provável é que o primeiro tenha surgido a partir de um cálculo equivocado, os demais: atributos ao charme. Um sótão é um telômero que completa o cromossomo, reiterando legados, é a peça que une o quebra-cabeça de vidas ilógicas. Sótão não é ambiente, sótão é estado de espírito.

Entre o sótão no cume e as catacumbas de um porão, existe um vão substancial, atenuado pela vida cotidiana familiar e por cômodos que durarão uma existência inteira, intervalos escritos pela mobília comum, segredos em vãos de paredes escondidos pela magnitude de um quadro e olhares encruzilhados pelo ar, submissos a uma política doméstica patriarcal circundando o lar anfitrião. Ou seja, destinos traçados em uma carcaça onde visivelmente, nada de especial a preenchia. Assim como uma pesquisa baseada em escavações arqueológicas, para as quais tanto se preza a profundidade cronológica dos valiosos subtérreos, o topo imponente do palacete merecia crédito de notoriedade pelos resquícios de gerações que por ali deixaram seus rastros, saliente era a aptidão que o recinto tinha para memorar um mausoléu de recordações, era uma fenda naquela ideia que civilizacionalmente nomeamos de tempo, certamente quem ali adentrasse, sentiria o efeito catársico provocado pela fronteira de fusão entre uma dimensão real porém carente de significação e outra engenhosa e historicamente imaginativa. Veria-se em um lugar longínquo em cenários e tão próximo dos sentimentos humanos.

E ali estávamos, eu e eu mesma: eu e o sótão, fiz deste último parte de meu ser, juntos, escrevemos uma só história. Retornar a esta gruta terrena, após meio século que passei em muitos outros lugares, desde as pirâmides de Gizé até os templos indianos, era revolver um baú de lembranças, regressar à juventude de um santuário vivo acentuado pelas faces de uma infância ainda reconhecível escondida atrás dos traços que o tempo arranhou em minha pele, vislumbrava agora minha alma refletida pelos raios de sol da manhã que penetravam pela claraboia no recinto escuro pela luz das velas que ninguém acendeu e sebento pelo pó dos instantes fossilizados. Fui destinada à momentos preciosamente mágicos, hoje, por mais ínfimo que essa afirmação pudesse parecer no passado, sou grata àquele chão de madeira, que sustentou o peso de minha criança, agora já metabolicamente digesto nos corpos dos cupins.

A velha estante que alinhava os grossos livros de meu falecido pai, bem como os manuscritos e documentos cabalísticos permanecia intacta ao lado da suntuosa lareira de mármore que aqueceu meu coração nos tempos das ruínas, das eras glaciais, cujo espaldar era mausoléu de fotos antigas, perpetuando guerras, jornadas navais e peregrinações. Uma brisa densa e melancólica pairava sobre minha cabeça, e o cheiro da nostalgia inflava meus alvéolos enquanto era encoberta por sintoniosos devaneios. Repousei meu corpo na poltrona azul almofadada, a mesma que transformei em cama nos primeiros anos de minha sutil existência. Percebia agora, analisando por perspectivas maduras, que a vastidão, característica a partir da qual defini meu átrio de segredos, não continuava se aplicando da mesma forma. Como as medidas de proporcionalidade não manifestam-se em mentes ainda pueris, as medidas do cenário que chamara de meu, eram interpretadas distorcidamente, fato é que elas não modificaram um centímetro desde a última vez que senti o calor da madeira vibrando em meus pés, observava agora que o tamanho do recinto não passava de uma sala vitoriana e meia, sua grandiosidade cabia nos pensamentos daqueles que por ali deixaram pegadas, cabia em mim. O que lhe deu a capacidade de ser colossal, foi a concepção positiva e imortal, esta, efetiva unicamente graças a um ser que a atribuiu. De fato, é impossível entrar duas vezes no mesmo sótão, pois quando nele se entra novamente, não se sente as mesmas inspirações, e o próprio ser já se modificou.

Permaneci por um tempo considerável, inerte de corpo e enérgica em sinapses, analisei cada detalhe que havia abandonado, as paredes escondiam-se em tapeçaria persa, sentia as metáforas de Hafiz pulsando em minhas veias. A pequena escrivaninha de mogno sob a janela embranquecida, revelava um cemitério de parafina. Inúmeros pergaminhos e relatos mistificados pelos códigos orientais e adornada por símbolos espalhavam-se. Voluptuosa em seu centro, erguia-se uma primitiva máquina de escrever, graças a qual me despedi da legião de analfabetos e mergulhei em um dos oceanos mais fabulosas da vida, que apaixonadamente na apneia, nunca mais me deixou retornar à superfície: escrever. E é a partir dela, que vocês estão sendo constantemente transportados para o presente de minhas memórias.

Impulsionada pela emoção próxima que me consumia e pelo anseio que instigava minha bucólica natureza a explorar todas as extremidades daquele relicário, levantei-me de súbito. Em um canto, um milenar relógio cuco, cuja engenhosidade não gorjeia a séculos, elevava-se soberano, mantinha sua magnitude dos tempos em que fora útil. Estatuetas barrocas e diabólicas, esculturas divinas e anjos de porcelana via-se em cada prateleira. Caso mirássemos o olhar na direção dos céus, nos depararíamos com uma abóbada envidraçada, seduzida por musgos que petulantemente, consumiam os raios do neto de Gaia. Deparei-me com uma pequena boneca pelo caminho, a maresia destoava minha visão antes mesmo de eu perceber suas cores desbotadas e a flacidez devido a escassez de enchimento, a dor que senti ao rever Jurema foi excruciante, afaguei-a em meus braços, e fi-la banhar-se na chuva torrencial de meu rosto. Instintivamente fui atraída até uma das extremidades do recinto, dirigi-me até uma portinhola familiar que camuflava-se na parede, tratava-se da passagem de emergência que se unia ao sótão da casa vizinha, a ânsia de abri-la era arrebatadora, incomparável à racionalidade do perigo. Desimpedida da lucidez emanada de faculdades cognitivas, a abri. Da mesma e impetuosa forma que se abre uma garrafa contendo um manuscrito no mar, abri uma pequena caixa branca envolta em um papel estampado por passarinhos, nela continham pequenas pedras da sorte, pétalas de rosas secas e inúmeras cartas que eu não lembrava de ter colocado ali, jamais havia visto a caixinha e seus objetos. No momento que li as primeiras palavras da primeira carta, caí ao chão, meu coração palpitava, lágrimas jorravam, e eu entendi tudo: acabava de desembrulhar o presente que meu primeiro amor, o garotinho da casa ao lado, carinhosamente fizera para mim, a passagem entre as casas era nossa fenda secreta, criamos um mundo inteiro a partir da força de nossas imaginações, ele sempre habitou minha mente. Enquanto lia, pensava: é quase verídico que o garotinho, enclausurado em meu passado, não retornava à fenda, a julgar pelo estado de conservação do presente que me deixara, contudo, não avistei nenhum ninho de corujas ou morcego, nem mesmo aranhas ou formigas no sótão. Como era possível? A de haver que alguém o tenha pulverizado por todos esses anos... Quando retirei a última carta, um objeto reluziu no fundo da caixa, era um anel de diamante. À partir daquele momento, quando o coloquei em meu dedo, minhas mãos ficariam cintilando o cristal alotrópico africano até que meus ossos se esfarelassem debaixo da terra. Nenhuma sentença me marcou mais que a última frase da última carta que li, a que resumia minha vida inteira: “Somos anfitriões do mundo, ele só conhece nossas casas, entretanto, nossos mais profundos tesouros são enterrados no sótão, o qual compartilhamos apenas com os excepcionais. Tudo o que somos é um sótão vagando pelo mundo à procura de vãos secretos entre duas casas e conexões infinitas que sobrevivam ao tempo.”

Escuto passos se aproximando pela fenda…

Flora Fernweh
Enviado por Flora Fernweh em 09/02/2020
Reeditado em 31/10/2021
Código do texto: T6862006
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