SEMPRE RIO ACIMA

SEMPRE RIO ACIMA

O igarapé amazônico ao qual fora chamado era apenas mais um dos milhares cujas águas se misturavam ao Solimões e vinham dar em Belém. Eu caminhava pela cidade em que havia aterrizado no dia anterior e procurava me acostumar àquela umidade toda. Belém, uma metrópole brasileira com toda a comodidade do século vinte um, me remetia aos seringueiros, que quase cento e cinquenta anos atrás, haviam se embrenhado na Hileia Amazônica sem quase nada de instrumental além de fogo e ferramentas… Nas águas quase sempre serenas da bacia do Amazonas os igarapés eram subidos a remo, em canoas que enfrentavam os meandros labirínticos dos inúmeros braços dos mananciais. A floresta inundada, os igapós, eram d’uma homogeneidade desnorteante sem que nenhum acidente topográfico se distinguisse na paisagem plana. De certa maneira, era a aventura dos seringueiros do passado que eu tinha-de reviver para chegar a Arapixi, na margem esquerda do Alto Purus.

Ali em Belém, todavia, estava ainda num tempo que podia se dizer sincronizado com o de quase todo o mundo. Sim, havia janelas para a aldeia global e o dia a dia era regrado pelo telefone celular. Como em qualquer outro lugar, a metrópole da Amazônia era um lugar de ócios e negócios virtuais. A umidade e a temperatura equatoriais eram vigorosamente combatidas com climatizadores que nos permitiam o absurdo de trabalhar de terno e gravata em plena Amazônia. Não obstante, com a cotação da “brazilian nut” batendo US$ 100.00 a saca nos mercados estado-unidenses, mal podia esperar em encontrá-lo na Boca do Acre ou rio Purus acima: Tínhamos um contrato a cumprir e ele já não dava notícias há semanas. Suas castanhas, não importava como, precisavam chegar ao porto.

Assim que pude, comecei uma viagem complexa mesmo com todos os recursos de hoje em dia: Quatro dias de barco de passageiros até Manaus… Lentamente, com toda a paciência do mundo, eu via, deitado na rede de dormir esticada no convés da embarcação, a paisagem amazônica se estender pela imensidão do Rio-Mar. Manaus tardava a chegar e, quando chegou, foram apenas duas horas de correria atrás de condução para a Boca do Acre.

Sem dinheiro para muita coisa, fui até a rodoviária apenas para ver que não teria ônibus tão cedo. Com as águas, isto é, o início da estação chuvosa, as estradas já estavam intransitáveis. Precisava me virar. Fretei, com três desconhecidos, um carro quarto por quatro para enfrentar a estrada de rodagem sem pavimento que se iniciava passando por balsa o Encontro das Águas Negro-Solimões e centenas de quilômetros mais a frente, também por balsa, o Igapó-Açu… Muitos diziam ser uma estrada boa para os padrões da região, mas era um inferno digno de exploradores do fim do mundo. A rodovia BR 319 era basicamente uma sucessão de lamaçais onde se passava horas sem ver sequer uma mercearia… Caminhões e ônibus atolados eram puxados, a reboques, por tratores de esteira que deveriam manter a via trafegável, mas na verdade pouco podiam contra as chuvas sucessivas. Nalguns trechos, custávamos de quatro a cinco horas para avançar cinquenta quilômetros. Sorte era conseguir chegar n’algum vilarejo ao fim do dia.

À medida em que adentrávamos na Amazônia, o terceiro milênio ficava para trás. A cada cidade; a cada parada, o mundo tecnológico de Belém e Manaus parecia mais distante e o tempo não fazia diferença mais. O celular começava a ficar inútil, saindo de área a maior parte do tempo, enquanto os automóveis e caminhões se mostravam verdadeiras peças de museu, transitando com extrema dificuldade nos lamaçais. O calor, a umidade, os mosquitos e a solidão me abatiam como se fosse sovado à pancada. Com uma frequência absurda nos deparávamos com um trecho ínvio e tínhamos de esperar na sombra que se oferecesse ou dentro do carro sob a chuva. Foram quatro dias na estrada sendo uma noite sem pousada, no meio do mato!…

Quando finalmente chegamos à Boca do Acre, cada um dos companheiros tomou seu rumo e eu fui me virar para conseguir subir o rio Purus. A cidadezinha, imensa para os padrões amazônicos, era famosa por ter dois sítios, um inundável e o outro em terra firme. Penso que os amazônicos sejam um povo que simplesmente não liga para conforto ou comodidade: Tudo é provisório, flutuante, flexível… A impressão geral é de que se há um conflito entre urbanização e natureza, ali a vitória sempre será da Floresta Úmida. Cidade após cidade, estrada afora, eu via menos gente e mais improvisação. Os ajuntamentos urbanos eram acanhados como se pudessem sumir a qualquer momento ou se isolarem em definitivo do resto do mundo como, aliás, sucedia durante a Estação das Águas.

Consegui alugar uma voadora e subi cerca de oitenta quilômetros Purus acima até a foz do igarapé Capana, já na reserva extrativista Arapixi. A lancha me deixou na sede da reserva onde eu teria-de contratar uma canoa para subir a remo o igarapé. Ali, a vida era a mesma dos seringueiros de cem anos atrás: Os trapiches de sacas de castanha e as casinhas de tábuas, ora estruturadas em palafitas; ora erguidas em terra firme. Inúteis os celulares e tudo o mais, visto que, os geradores de energia só mantinham a iluminação básica. Havia rádios, mas por incrível que pareça eles apenas punham em evidência o isolamento e o atraso daquele lugar. Arapixi parecia tão longe de tudo que o mundo lhe era indiferente. Pouco importava àqueles extrativistas quem era o presidente ou o que se fazia no Rio de Janeiro ou em São Paulo. A hora local atrasava em duas horas o fuso de Brasília, mas não fazia diferença, pois, nada que eu quisesse comunicar a quem quer que fosse seria possível senão por rádio amador… Se em Belém eu estava no ano dois mil e vinte, em Arapixi eu provavelmente me encontrava em mil novecentos e oitenta ou antes! Mas ainda era preciso remar igarapé acima…

Meu destino seria uma base da Funai de contato com os indígenas apurinãs, o povo Popükaré. Eles viviam isolados. Despedi-me dos canoeiros e fiquei no alojamento de visitantes do posto. Não poderia entrar em contato com os nativos. Precisava esperar. Foram dias e noites no posto apenas olhando o igarapé descer rumo a Arapixi, Boca do Acre, Manaus, Belém e o resto do mundo… As águas do igarapé desciam para engrossar o Purus com uma calma indiferente que me comovia. Eu estava ali, no meio da maior floresta tropical do mundo, e havia viajado no tempo e no espaço para um lugar que era atemporal. Sim, entre os amazônicos, o tempo deixava de existir. Ali também eu, senhor de meu tempo, deixava de estar no mundo.

Alguns dias na reserva extrativa, porém, aquele que me havia chamado em Belém não aparecia. Sempre lhe havia dito do desejo de ir ao seu encontro nos estirões da margem esquerda do Purus onde morava já uns cinco anos, coletando castanha-do-Pará e látex de seringa, num estilo de vida que pouco diferia dos seringueiros. O contato com o povo Poükaré era proibido, embora acontecesse de meu amigo lhes deixar facões e enxadas na mata enquanto recebia deles sacos de castanha. Tudo às escuras!

Ele me chamara em Belém para encontrá-lo ali na Base da Funai para nos embrenharmos na mata, juntos, à procura de castanhais e ranchos abandonados. Até o final da estação seca, suas canoas carregadas de sacas de castanha deveriam descer para a Boca do Acre para dali ganharem mundo. Esse era o plano. Como ele não aparecia, só me restava esperar. Os dias passavam e a estação das águas se aproximava, inexorável. Seriam seis meses absolutamente isolado na planície do rio Purus a não ser pelo rádio da Base da Funai. Era uma terra vazia no período: Os indígenas isolados na floresta úmida e os amazônicos entocados nas vilas ribeirinhas… Ninguém viajava, nem pelos rios. As estradas viravam brejos inundados e os rios se dividiam em igarapés perigosos que viravam labirintos nos igapós. Mesmo soldados treinados, com G.P.S. e telefonia por satélite, perdiam-se n’aquelas paragens. Os meandros do Purus, por outro lado, triplicavam o percurso já extenso dos temerários que se lançassem rio abaixo sem saber se teriam onde pernoitar. As águas eram um tempo de paciência.

Como ele não aparecesse, comecei a me preparar para quando invernasse. Levantei o estrado do piso do rancho de tábuas que me arranjaram quando saí do alojamento da Base da Funai e comprei sacas de arroz e farinha de mandioca para os meses que viriam. O mais seria peixe e fruta. Montei um fogão a lenha, modestíssimo, com chaminé de lata e reservei bastante lenha seca para manter o fogo aceso. Observava a chuva grossa (os inacreditáveis 2.500mm anuais…) encher os riachos e inundar tudo ao redor. Ficava dias sem ver o sol, n’uma invernada sem fim. Vez em quando, saía do meu rancho e dava uma volta de canoa pelas casas da Base da Funai. Ouvia as notícias no rádio e verificava as iscas dos anzóis que havia espalhado. Isso era o dia em que a chuva amainava. Era muito solitário e angustiante na maior parte do tempo.

Meu amigo não aparecia e os meses passavam. Indígenas doentes vinham da reserva e eram tratados na enfermaria da Base. Não traziam notícias d’ele. Isso não era incomum n’aquela zona: Pessoas iam e vinham; dificilmente ficavam… Eu esperava a seca seguinte para subir o igarapé Capana e procurá-lo.

Assim que deu, deixei a Base. Ninguém sabia nada dele. Tinha uma rotina de remar uma a duas horas pela manhã; preparar o almoço e sestear; depois remar mais uma a duas horar até parar para preparar acampamento na beira do igarapé. A voadora ali seria inútil após alguns dias sem ter onde reabastecer. Por isso, d’essa rotina de avanço lento e seguro. Após algumas semanas, já não via vivalma em parte alguma. Levava farinha de mandioca e preparava pirão com o que pescasse. Já havia me acostumado ao desconforto ao longo da viagem e, de vez em quando, pernoitava em qualquer pesqueiro que encontrasse. Ou senão, na canoa mesmo…. Cada novo igarapé que encontrava eu marcava no mapa hidrográfico que haviam me passado na Base da Funai, subindo e descendo os córregos à medida que varria o território em busca de meu amigo. Por via de regra, voltava ao igarapé principal, o Capana, sem qualquer pista.

Depois dalgumas semanas, baqueei com outra malaria. Não era a primeira vez que pegava a doença e sabia o que fazer. Mesmo assim, passar os ciclos da terçã — calor, frio e suadeira… — foi a coisa mais difícil que atravessei na vida. Sozinho, no meio do nada, aquilo era o meu limite. Já havia tido malária antes, mas fora cuidado, de modo que, em duas noites e dois dias, o pior passava. Ali, contudo, não conseguia comer e a fraqueza extrema me fazia ter alucinações nos picos febris. Era como se eu fosse apenas meu cérebro e este se perdesse num pensamento obstinado que jamais avançava. Uma espécie de verificação cíclica de dados que fazia o delírio da febre sempre voltar ao pensamento inicial e de novo; e de novo; e de novo… Tomava quinino e antitérmicos. Quando a temperatura passava de 38°, eu me jogava no igarapé para baixar a febre. À noite, tudo piorava muito. Muito fraco, não consegui fazer acampamento na margem e ficava deitado o tempo todo na canoa, entre sonhos e pesadelos. Ouvia apenas os repuxos do igarapé enquanto a escuridão da mata fechada vinha apenas silêncio ameaçador. Eu me abandonava àquele caos interior enquanto rezava para o dia amanhecer logo.

Aquela terçã era de derrubar qualquer caboclo!…

Na terceira manhã, já sem febre, eu consegui acordar dum sono convulso. Tinha fome e fiquei feliz em sentir meu corpo sem dor. Preparei um café e comi biscoitos enquanto olhava o igarapé descendo. Resolvi subir o quanto desse e tentar achar um paradeiro para descansar. Naquela reserva extrativa sempre era possível encontrar um castanhal. Meu amigo poderia estar em qualquer lugar, mas eu com certeza estava em lugar nenhum! Eu precisava reunir o resto das minhas forças para chegar a alguma vila ou acampamento de extrativistas.

Subi o igarapé mais cinco dias e não topei com ninguém. Devia ser o lugar mais isolado do planeta! Eram igapós sem fim, intransitáveis. Impossível caminhar pela mata… Somente na canoa eu conseguia avançar. Após alguns dias percebia que o igarapé no qual remava não era um córrego, sim um braço do Capana ou mesmo um estirão do Purus. O mapa hidrográfico já não fazia sentido e a única orientação possível era o caminho do sol e a direção das águas. Não tinha a menor ideia de onde estava… Então, como convite insuspeito àquele desastre, lembrei-me do chamado de meu amigo, meses antes em Belém: “Não tem erro: Sempre rio acima!”. O sol se levantava na neblina clara.

Eu pus a canoa no igarapé e voltei a remar.

Betim — 25 02 2020