Hoje, depois de tanto tempo em ter o privilégio de ser amigo íntimo do maior detetive da Inglaterra, de ter acompanhado a solução dos mais de setenta estranhos casos através do seu método peculiar de dedução, deparei-me com o impulso de publicar aquele que considero o mais inusitado de todos.

   Sherlock Holmes, apesar do seu exibicionismo intelectual que, às vezes, não lhe assentava muito bem, pediu-me para jamais levar a público esta ocorrência. Temia que os seus desafetos profissionais por pura maledicência pudessem me atribuir descrédito a um possível arroubo de insanidade e, assim sendo, comprometer a veracidade dos relatos de suas outras aventuras detetivescas.

  Não obstante, assegurei-lhe tomar todo o cuidado ao expor o insólito acontecimento, fazendo uso das minhas observâncias sempre muito pontuais, dentro dos princípios da razoabilidade, posto que já houvera outros casos permeados de aspectos incomuns e até próximos do sobrenatural; de modo que os leitores de suas façanhas não ficariam tão estupefatos assim a ponto de me chamarem de louco.

   O referido fato ocorreu em meados de abril, no ano de 1883, pouco depois de Sherlock Homes salvar a vida de Helen Roylott de um ardil nefasto planejado pelo seu padrasto, no caso que ficou conhecido nos jornais como “A Faixa Malhada”. Voltávamos de coche para o apartamento na Baker Street ao fim da tarde, depois de termos assistido um impressionante concerto de violinos. Logo ao descermos da carruagem, vimos a senhora Hudson parada à frente da porta do 221B, com o semblante carregado de preocupação.

   — O que lhe aflige sra. Hudson? – perguntei, enquanto Holmes lhe endereçava um olhar interrogativo.

  — Há um homem muito estranho lá dentro – disse, apontando o polegar por cima do ombro em direção à porta, enquanto olhava para Sherlock. – Ele quer falar imediatamente com o senhor. Estou muito assustada.

   — Por quê? – perguntamos em uníssono.

   — O cavalheiro em questão não se anunciou à entrada, não agendou visita, sequer o vi em algum momento e, inexplicavelmente, mesmo com todas as portas fechadas apareceu na sala de estar. Está lá, junto à janela, olhando pensativo o movimento da Baker Street com as mãos entrelaçadas às costas como se fosse o dono do lugar.

   — Interessante – disse Holmes levando a mão ao queixo.

  — Ora, Sherlock, você diz interessante? Isso não são modos de um cavalheiro de boa índole se comportar. Invadir a residência de alguém sem ser convidado! Você deveria estar tão indignado quanto eu – retruquei ao meu dileto amigo com uma leve ponta de irritação.

   — Depende, Watson. A surpresa é a melhor estratégia de ataque!

  A sra. Hudson levou as mãos à boca alarmada para reprimir um gritinho de espanto, a pobre chegou a dar um pulinho à frente.

   — Será que ele veio praticar algum ato de violência contra o senhor Holmes? – ela exclamou de olhos esbugalhados.

   Sem admoestar meu amigo por assustar ainda mais a pobre criatura, levantei as duas mãos espalmadas à frente e fiz-lhe sinais para tranquilizá-la.

   — Calma, sra. Hudson, Sherlock está apenas fazendo uso de uma expressão comum para indicar alguma prerrogativa intencional do invasor, todavia não se trata de brutalidade.

  — Não, decerto que não. Sabedor do meu voraz apetite por desafios insondáveis, este cavalheiro certamente quer me impressionar com algum enigma ao se apresentar desta singular maneira à minha pessoa. Pretende, assim, obter vantagem provocando-me a aceitar qualquer adversidade a superar que lhe escape à compreensão. De fato, confesso estar muito curioso. É uma estratégia notável!

   Na época, as suposições dedutivas de Holmes tinham o efeito de me causar grande admiração, pois, o caso que ora discorro, tem o seu espaço de tempo nos primeiros dias de minha parceria com ele. Portanto, virei-me intrigado e lhe perguntei:

   — E como você pode saber disso?

   Daquele jeito cínico dele que aprendi a apreciar com o tempo, disse-me, de modo negligente, como se estivesse a falar com um reles transeunte qualquer na rua:

  — Elementar, Watson. Sou um detetive e todo bom profissional nesta área precisa ter boa capacidade analítica, evitar pensamentos simplistas, precisa ter fome por resolver charadas. Este homem parece conhecer o ponto fraco de qualquer investigador de excelência, que é a atração irresistível por um quebra-cabeça de difícil solução. Qual o melhor modo de chamar atenção de um detetive de reconhecida capacidade intelectual e analítica, como é o meu caso, apresentando-se de forma tão enigmática?

   Holmes era incorrigível quando se tratava de tecer elogios à sua própria capacidade especulativa, mas tenho certeza que não o fazia por leviandade, porquanto tais comentários eram-lhe espontâneos, sinceros, sem disposição de ofender ou humilhar seus interlocutores.

  — Não percamos mais tempo, vamos conhecer este cavalheiro. Sra. Hudson, peço relevar a descortesia do nosso potencial cliente; acenda o fogo da lareira e nos prepare um chá. Não se preocupe com a aparição questionável do desconhecido, estamos aqui e nada de ruim irá lhe acontecer – disse meu amigo à proprietária da casa, arrendadora do nosso apartamento, como se fosse sua empregada. Espanta-me, até hoje, como ela tomara para si as atribuições de secretária de Sherlock sem reclamar.

   De fato, quando entramos na sala nos deparamos com um indivíduo absorto em olhar à rua pela janela. Holmes pigarreou duas vezes. Foi o bastante para despertar o sujeito de suas abstrações e virar-se para nós com a fisionomia mais exultante que já vira em um primeiro contato visual entre desconhecidos.

   — Ohhhhhh... vocês dois, finalmente, apareceram – disse o ignoto a ostentar um sotaque incomum, abrindo os braços como se quisesse abarcar toda a sala, trazendo no rosto um amplo sorriso de incontida felicidade. - Vossas senhorias não têm a menor noção do quanto isso me alegra, o quanto orgulhoso estou por conhecê-los pessoalmente. Permitam-me, por um breve momento, dispensar as formalidades vitorianas desta gramática pomposa no falar... que coisa, olha só, vocês são top, são muito porretas, viu?

   — Holmes, o que é ser porreta? – perguntei ao meu dileto amigo, em um sussurro discreto, sem tirar os olhos do outro.

  — Desconheço a semântica da palavra de qual léxico foi retirada, Watson, no entanto presumo que a mesma deva expressar uma característica positiva a nosso respeito, disso não há a menor dúvida – respondeu-me, também, em sussurros tão surpreso quanto eu, todavia sem perder a fleuma costumeira.

   O tal sujeito era todo sorrisos, tinha o rosto queimado de sol sem o menor vestígio de bigode ou costeletas, olhos brilhantes a transmitir verdadeira euforia, parecendo até uma criança que acabara de ver o coelhinho da páscoa. As feições, sem traços de nacionalidade anglo-saxã, e seu corpo esquálido aparentavam ser de um homem na casa dos trinta anos, entretanto aquela alegria contagiante dava-lhe um aspecto de ser mais jovem. As roupas, embora dentro do que havia de melhor em termos de moda, não lhe caíam muito bem. Ele parecia deslocado dentro delas.

   — Meu nome é Sherlock Holmes. Este é o Dr. Watson, meu amigo íntimo de quem o senhor não precisa ter melindres de expor as suas intenções. Pode falar livremente conosco. Por favor, queira sentar-se ali próximo à lareira, pois logo a sra. Hudson irá pôr fogo para espantar o frio e trazer-nos chávenas de chá.

   — Eita, que coisa mais chique. Tô passado, viu? Cara, eu sou fã de vocês!

    — Fã? – estranhei a diminuta palavra.

  — Sim, Watson, vem do latim “fanaticus” e significa entusiasta em demasia. Fanático seria o mais apropriado. Fã é o encurtamento deste termo. Nosso visitante parece ter grande apreço por nós – explicou-me meu amigo sempre didático quando queria impressionar alguém.

   — Sim, sim. Tenho mesmo muito apreço pelos dois. Meu nome é Acácio Raimundo de Pompeu, seu criado – disse o invasor fazendo leve reverência como se fôssemos membros da família real britânica.

   Em seguida, o sujeito tomou o lugar indicado por Sherlock, junto à lareira. Holmes sentou no sofá vermelho defronte do nosso conviva e eu me acomodei na poltrona, junto à escrivaninha, de onde podia ter uma boa visão de ambos a fim de realizar minhas futuras anotações.

   — Acácio é um nome deveras excêntrico, não? De onde o senhor vem? – quis saber, a propósito de cortesia, para dar tempo de Sherlock analisar o estranho.

   — Oh, eu sou do Brasil, de uma cidadezinha muito bacana do Nordeste daquele país.

   Holmes, já de posse do seu inseparável cachimbo, depois de dar duas baforadas, cruzou uma perna por sobre o joelho da outra, pigarreou como, às vezes, costumava fazer para ir direto ao assunto do seu interesse.

  — Senhor Acácio, permita-me saber o que o traz com urgência à minha presença.

  — Pois é, eu estou numa situação bem complicada, seu Sherlock. Tô lascado mesmo, sabe? Eu preciso do senhor pra me ajudar a descobrir como eu vim parar aqui, viu? – disse o brasileiro abrindo as mãos a gesticular o ambiente à sua volta.

   — Sei, o senhor está perdido. Quando diz aqui... refere-se aonde? Inglaterra, este distrito... o meu apartamento...

   — Refiro-me ao mundo fictício que compõe este livro, na verdade este conto – respondeu o jovem novamente gesticulando as suas mãos em seu entorno.

   Não precisei olhar à fisionomia de Sherlock para saber que uma de suas sobrancelhas havia se contraído. O cacoete, geralmente, ocorria quando ele tinha dificuldades de integrar uma informação relevante no seu fluxo de raciocínio lógico. De minha parte, não cheguei nem a tentar. Não tinha a menor ideia do que o sujeito tencionava dizer.

   — Perdão... o senhor disse livro, e refere-se através de gestos este ambiente como sendo fictício. Não entendi onde o senhor quer chegar!

   — Pois aí está a questão, sr. Holmes – disse Acácio inclinando-se um pouco à frente ao apoiar os cotovelos nas próprias pernas; levou os dois indicadores unidos ao queixo e encarou o meu amigo – sei da sua espantosa habilidade analítica de dedução. Sim, o senhor é o cara! Mas o que vou lhe contar poderá pôr em risco tudo o que acredita, pode abalar as bases do seu raciocínio lógico, contradizer as suas convicções.

  — É mesmo? Tente, sr. Acácio – desafiou Sherlock sem mover um músculo do rosto.

   O brasileiro assentiu, respirou fundo, e jogou para fora o comentário mais desarrazoado, sem cabimento, que jamais voltei a ouvir em toda a minha vida.

   — Você, sr. Holmes, o Dr. Watson – olhou para mim de relance – os seus casos de mistérios, este apartamento, enfim, a sua realidade não passa de pura ficção. Não é real. O famoso Sherlock Homes nada mais é do que um personagem dos livros e contos criados pelo escritor inglês Sir Arthur Conan Doyle!

   Após tal despropósito, averiguei a fisionomia de Holmes e constatei a mais profunda decepção. Conclui logo que tal desgosto tinha a ver com a alta expectativa do meu amigo estar diante de um homem que julgava possuir qualidades excepcionais, de um igual a lhe oferecer um intrincado mistério à altura de sua competência quando, na verdade, estávamos diante de um doido varrido. Perdíamos o nosso precioso tempo a dar conversa a um mentecapto.

 
Link da Parte 2, clique AQUI
 
Este conto foi escrito para participar de um Desafio Literário do qual a premissa básica, a fim de comemorar o dia do livro, dia 23/04, era colocar um personagem dentro do seu livro favorito.
Affonso Luiz Pereira
Enviado por Affonso Luiz Pereira em 26/04/2021
Reeditado em 30/04/2021
Código do texto: T7241682
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2021. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.