O ATAQUE DA AVE GIGANTE DA AMAZÔNIA

O ATAQUE DA AVE GIGANTE DA AMAZÔNIA

Autor: Moyses Laredo

Lendas Amazônicas

Ao raiar do século XX, por volta de 1902, aconteceu um caso muito curioso e interessante, que ganhou destaque na imprensa local por muito tempo. O principal Diário do Amazonas, na época, fez bastante estardalhaço a respeito de uma notícia que arrebatou por semanas a população amazonense, a mesma que havia há pouco tempo, se entretida com o desenrolar do rumoroso caso do “pau do Tarumã”, (tema de um artigo no Recanto das Letras do mesmo autor) esse agora veio somar-se a mais uma das lendas urbanas. O novo fato, causou espanto e muita curiosidade em todos que dele tomaram conhecimento.

De acordo com o tal noticiário, que estampava em suas primeiras páginas, em letras garrafais, a frase “AVISTADO UM MONSTRO VOADOR”, narrava diretamente com as mesmas palavras contadas, por quem fora atacado pela misteriosa ave, aliás diga-se, além de misteriosa, era também monstruosa. Pela descrição detalhada e minuciosa, feita pela própria testemunha ocular, durante horas a fio de interrogatório, inquirido também por pesquisadores de universidades brasileiras e estrangeiras, que ao mesmo tempo, faziam desenhos, como aqueles retratos falado de casos policiais. A todo instante a descrição da ave era corrigida nos menores detalhes, e assim, pode ser identificada e classificada por paleontólogos do Departamento de Geologia e Paleontologia do Museu Nacional, o mais antigo do Brasil, com seus mais de 170 anos de história dedicados a Geologia e Paleontologia, como sendo uma das aves remanescentes da pré-história, do mais recente período da Idade dos Metais. Foi considerado extinta há mais de 4.000 anos.

A vítima considerada, era um caboclo de hábitos simples, humilde, conhecido como “Miminha”, uma corruptela de “mainha” como alguns nordestinos, moradores vizinhos, se referem às suas mães, pois bem, ele morava do outro lado do majestoso rio Negro, numa das “varagens” para o grande Lago de Janauari, já no rio Solimões, ali vivia com sua mãe. A véia Venância que já rondava os seus 90 e uns anos, só mesmo com a técnica do carbono, para detectar sua idade exata, porém, ainda muito ativa, era quem cuidava da casa, fazia comida, lavava roupas, estendia varal, cuidava da horta e da caieira, alimentava as criações (porcos, patos e galinhas), ainda lhe sobrava tempo à noite, para benzer crianças de mal olhado, quebranto e titela caída (espinhela caída, deslocamento do osso do centro do tórax, entre o estomago e o coração, é um osso muito flexível cartilaginoso que se entorta com frequência em bebês). À boquinha da noite, a fila já se formava diante do barraco deles, que tinha uma puxada ao lado, com uns banquinhos compridos como de igreja, vinham pessoas dos lugares mais distantes em busca da rezadeira véia Venância, que gostava de ser chamada de dona Vevé, não cobrava nada, recebia o que quisessem dar de coração, os presentes iam de galinha, pato, farinha, pirarucu seco, lata de mixira, enfim, qualquer coisa. Já o serviço de Miminha, era só o de arrumar comida pra dentro de casa, o resto era com ela.

A casinha de madeira, onde moravam, coberta de alumínio do fino, até que já andava precisando de reparos, mas, o dinheiro que lhe sobrava, era curto que nem coice de porco; a dita morada ficava bem na beirada do barranco. Dona Vevé, tinha medo de uma tal de “terras caídas” que de vez em quando derrubava casas, assim como a dela, nas beiradas das barrancas. Terras Caídas é o fenômeno que vez por outra acontece ainda nos dias atuais, nos beiradões da Amazônia, ocorre quando as águas dos rios se chocam sobre as margens, causando enormes erosões, e silenciosamente escava extensas “cavernas subterrâneas”, que se prolongam desagregando solos moles (são solos sedimentares com baixa resistência à penetração) que num dado momento abre uma ruptura e provoca a queda de barrancos engolindo grandes extensões do terreno, que imediatamente some nas águas, mas que segundo dona Vevé, tudo isso acontecia quando a cobra grande se movia, mas a cobra grande de lá, debaixo do barranco da casa dela, era mantida quieta, na base de muita reza, assim se gabava!

O Miminha trabalhava todos os dias na roça de sol a sol, cultivava legumes e verduras, que vendia regularmente na feira da praia em frente do Mercado Municipal Adolfo Lisboa, do outro lado do rio. Certa feita, ao cair da noite, olhando as condições do tempo, pois nunca se aventurava a atravessar aquele riozão, em tempos de chuvas, sabia que sua canoa afundaria com certeza, não era páreo para a potência de um simples temporal no meião do rio Negro. Começou a embarcar seus produtos para vendê-los na dita feira, incluiu um enorme pirarucu de uns 60 quilos já limpinho, que teve que estendê-lo na taboa do assento da popa, por não haver espaço no fundo da canoa. Pediu a bênção de sua mãe que gritou de longe, - “Leve o terçado, curumim!” nunca havia falado isso, também não sabia o porquê, mas obedeceu. Mesmo estando com a noite em cima, só com o luar, mas ainda muito escura, isso não o intimidou, conhecia esse trajeto na palma da mão, já o fazia há muito tempo, assim sendo, arrumou tudo direitinho, agrupando em feixes os tipos de legumes e separando as verduras por um engradado que construiu para essa finalidade; no final, cobriu com uma velha lona verde, toda furada, que achara no lixo do mercado, mesmo assim, de muita serventia pra ele, porque às vezes, as ondas batiam tão forte que molhava tudo, carregavam as verduras, por serem plantas comestíveis em forma de folhas ou flores, eram facilmente arrebatadas pela ventania do meio do rio Negro.

Acendeu um candeeiro com manga de vidro, na popa e outro na proa, dizia que era para alumiar o caminho, amarrava bem os dois, protegia-os com uma grande folha de bananeira do lado que o vento mais batia para não os derrubarem, como também, para sinalizar outras embarcações de que ali estava. Acomodou-se na proa, botou o remo n’água e puxou com força, marcando o ritmo da viagem, era coisa de meia noite. De tão minúsculo diante da imensidão do rio, que quase ninguém o notava, ali solitário naquele “Mar de la Dulce” (como batizou, o Rio Amazonas em 1500, Vicente Yáñez Pinzón). Apesar de usar apenas o remo como tração, a travessia para cruzar o rio do ponto de onde saíra, do tronco da beirada da sua casa, dava no muito, umas cinco horas puxadas de remo, descontada a correnteza, dava certinho, já chegava no clarear do dia.

Miminha era um caboco forte, tinha uns vinte e poucos anos, ele não contava o tempo, como fazia o povo da cidade, porque ali não existiam feriados e nem dias santos, tudo era dia de lida, como dizia ele, que começava a roçar antes mesmo do sol nascer, “e que não era ômi de sol nenhum, pegar ele ainda em cima da rede”. O trecho da viagem se tornava mais difícil quando chegava no “Furo do Paracuúba”. O dito Furo, está localizado nas proximidades de Manaus, ainda no município de Iranduba – AM, liga o rio Solimões ao rio Negro encurtando em 22 km a distância, de quem vai pelo rio Solimões e quer alcançar o rio Negro para chegar a Manaus, o furo funciona como um vaso comunicante, o mesmo das leis da hidráulica, quer dizer, regula as diferenças das alturas entre os dois grandes rios. Se o Negro estiver com o nível mais alto, suas águas escuras correm pelo Furo do Paracuúba em direção ao Solimões, o mesmo acontecendo quando o rio Solimões está mais alto, as águas do Furo se invertem, passam a ser amareladas. Isso fazia a correnteza do Furo mudar de direção. Mas acontece que, nesse trecho a forte correnteza travava até grandes embarcações que precisam de motores potentes e muita habilidade dos seus mestres arrais, para não se deixarem arrastar. No caso do Miminha, ele conhecia a dinâmicas das águas daquele trecho, procurava seguir pelas margens, onde as velocidades são menores e muitas vezes até andam ao seu favor, empurrado pelos redemoinhos das margens dependendo de que lado se queira ir.

Já era bem tarde da noite, ainda na sua compassada batida de remo, absorto nos pensamentos, longe da realidade, com um porronca aceso no beiço, se distraía matutando no que faria na volta pra casa; começando a travessia do rio Negro, ainda remando pelas margens na saída do Furo, nessa noite com a rala luz da lua iluminando seu caminho, diante da imensidão do rio, que se descortinava à sua frente e que tinha que enfrentar. Quando do nada, sentiu uma forte revoada acompanhado de batidas de asas e um bafo de fedor medonho de carniça, vindo do alto, levantou a vista e nada viu, estava muito escuro, depois do susto, percebeu que uma coisa bem grande passava por sua cabeça, foi aí que achou que tinha alguma coisa estranha, provavelmente uma ave qualquer, que rondava insistentemente sua canoa, pensou no pirarucu na popa, lamentou por colocá-lo ali, achou que fosse uma águia, quase o esbarrando, depois conseguiu ver bem, pelo contraste, quando o vulto de passagem, cobriu a lua. Se ajeitou para enxergar melhor, ele remava sempre da proa, foi então que deu pra vislumbrar que se tratava de uma ave gigantesca totalmente desconhecida, não se parecia com nenhuma águia, e que estava a fim de lhe atacar, a ave ficou dando rasantes querendo alcança-lo com as imensas garras. – “Que diabos será isso? O que está procurando? Valei-me São Judas” (Santo dos aflitos). Foram muitas as perguntas, calculou no olho, como fazia com os porcos quando queria vendê-los, no interior não há esse negócio de balança, é no olho mesmo, o erro é muito pequeno, que a coisa devia ter de quatorze a quinze arrobas (uma arroba=15 quilos). A imensa ave preta de tamanho descomunal e aparência desconhecida, surgiu de vez pra ele, parecia muito com o urubu-de-cabeça-preta (Coragyps atratus) desses comuns, contudo, tinha pelo menos umas vinte vezes seu tamanho, sem errar na comparação, passou a chamar aquilo de uiraçú (uirá = ave, açu = grande), tinha os olhos avermelhados, bico longo e curvo, em formato de abridor de conserva, daquelas que vem sem a chave de rodar; nunca tinha ouvido falar naquilo ali e muito menos visto algo parecido, a “coisa” depois de muitas voltas, conseguiu pousar na popa de sua canoa, se equilibrando com fortes abanadas das enormes asas, já tinha até derrubado o candeeiro da popa na primeira varrida de asa, ficava procurando posição quando se movimentava e a cada mudança do pé de apoio, para se ajeitar e melhor cravar as garras no pirarucu, fazia a frágil canoa tombar de um lado pro outro, o caboco na proa, tentava a todo custo não deixar a canoa virar, contrabalanceava os movimentos da uiraçú, com o peso do seu corpo, como fazem os iatistas, para o barquinho à vela não afundar. A popa, onde a criatura pousou, baixou até um pouco além da linha d’água, imagine o desespero dele, vendo a canoa encher d’água e ao mesmo tempo, lutando com aquilo dentro da canoa, no meio do Rio Negro, cuidando para não perder sua valiosa carga de uma semana suada de trabalho, coitado.

Com o outro candeeiro, focou melhor na coisa e pôde ver que ela já estava com uma das garras cravadas na cabeça do pirarucu, tinha predado para si o enorme peixe, que do alto certamente o avistara estendido na popa, finalmente tinha decidido escolher pegar o pirarucu, mas com certeza, teve o Miminha na sua escolha. O tronco das canelas da ave, eram mais grossos do que as suas próprias, as enormes garras, deixaram grandes aranhões na taboa da popa, grunhia alto e abria o bico ferozmente para o assustado Miminha, que de pouco podia fazer, tentou espantar com o remo, mas temeu perdê-lo, aí a coisa ficaria mais feia pra ele sem o único meio de se deslocar naquela imensidão de água. Optou por rezar alto, como via sua velha mãe fazer nos temporais, que para tudo tinha uma reza pronta, porém, viu que não surtiu nenhum efeito, ficou a imaginar se quando a cobra grande do barranco resolvesse se mexer, será que a reza dela ia dar conta?... da proa onde estava, procurou gravar na mente todos os detalhes da enorme e desconhecida ave, queria poder contar para os outros, se vivo dali saísse, viu que as asas da criatura, quando abertas, cobriam completamente a visão do rio, a luz do candeeiro que ele movimentava, fez a ave se assustar, foi então que ela se virou para alçar voo, levando o pirarucu, deu um impulso que outra vez quase a canoa afundou, passou por cima da sua cabeça deixando uma inhaca no ambiente que empestou sua roupa e até a lona. O pobre homem estava tremendo e em choque diante do que acabou de sofrer.

Ao se ver livre da ave, Miminha botou força no remo, queria sair dali o mais rápido que pudesse, o vento da noite espalhava a catinga que aquele bicho desgraçado deixou, aumentava seu medo de que ele poderia voltar. Mas, para seu espanto e desespero, a coisa reapareceu e passou a persegui-lo. Dessa vez, voltou mais agressiva, voando por cima da canoa e passava a dar várias bicadas na frágil embarcação com a nítida finalidade de afundá-la, parecia uma luta dela com a canoa, talvez achasse que debaixo da lona ainda houvesse outro pirarucu, só podia ser isso, ou, queria mesmo era pegar o pobre assustado Miminha. Foi ai no desespero, que se lembrou do terçado que sua mãe recomendou levar, deu com a mão nele por baixo da lona e aguardou novo ataque do pássaro, que desta vez veio decidido a pegá-lo, mas, ao se aproximar em voo rasante, para o iminente ataque, Miminha se livrou das garras, com uma gingada de corpo, e desfechou-lhe uma vigorosa terçadada, que de tão certeira, decepou-lhe uma das garras, caindo dentro da canoa, pense num terçado amolado, a ave sangrando e aos gritos, tomou rumo e sumiu, “levou a merenda dela”, como disse baixinho o assustado Miminha.

Ferido e cansado, ainda se recuperando do susto, Miminha conseguiu ajeitar as coisas que se desarrumaram com a “briga”, avaliou os estragos na canoa, viu a pata decepada e a guardou como prova, mais tarde, notou sangue escorrendo nas costas, sentiu que tinha levado um talho feio, uma das garras havia passado riscando seu corpo, mesmo assim, conseguiu com muito sacrifício, chegar ao porto de Manaus já com o sol alto, remou direto a noite toda sem pausa e a cada instante se virava, olhando o céu em busca daquela assombração. Ao encostar a canoa na praia da feira, não conseguia dar mais um passo, com esforço se deitou de barriga pra cima na areia, estava exausto demais. Os amigos feirantes que o conheciam, o acudiram, ao vê-lo meio cambaleando sair da canoa, mas não conseguiram que ele dissesse nada, deram-lhe um pouco d’água de uma de suas bilhas, depois de uns vinte minutos, aquele ômi que orgulhosamente não deixava o sol o pegar na rede, desatou no choro, isso deixou ainda mais os amigos aflitos, pois não tinham a menor ideia do que se havia passado com ele.

Depois de se restabelecer, ainda debilitado e assustado, foi até a redação do jornal "A Federação ", onde foi bem acolhido e contou todo o ocorrido aos redatores. Um farmacêutico foi chamado e cuidou dos seus ferimentos, alguns eram apenas superficiais, tinha cortado a camisa e riscado a pele, já outros, foram mais profundos, teve que levar alguns pontos. E para provar que não estava mentindo, trouxe a garra do pássaro (sujo de sangue) que tinha levado consigo, lá foi medida, só as unhas das garras tinham seus 16 cm e o troco da pata cortada, mais uns 35 cm de circunferência. A notícia se espalhou em Manaus e, no outro dia, várias pessoas foram na redação do jornal para ver aquela prova que ele trouxera. O Jornal a colocou em exposição, numa caixa de vidro improvisada mandado fazer. O caboclo também mostrou, para outros curiosos, as marcas e buracos das bicadas do animal na canoa, como também as marcas dos ferimentos nas suas costas, fazendo crer a todos, que não se tratava de história de pescador.

Miminha teve que fazer essa viagem outras vezes, mas passou a ter a companhia de um vizinho e a velha espingarda chumbeira, que ele próprio enchia os cartuchos, botava mais pólvoras, e usava palanquetas (fundia os caroços para fazer uma bola única). Graças que nunca mais teve notícias do pássaro gigante.

Molar
Enviado por Molar em 05/05/2021
Código do texto: T7249043
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