A procissão das almas

Dona Maricota era uma senhora viúva que morava no pequeno distrito de Mariana chamado Camargos, estado de Minas Gerais. Em 1962, quem entrasse no distrito pela estrada de terra que o conecta com Mariana, veria a humilde casa desta senhora à esquerda, pintada com as cores típicas da região: Paredes brancas, portas e janelas azuis.

Ela tinha uma vida modesta, e mesmo que fosse durante o dia visitada por familiares e amigas da vizinhança, à noite ficava normalmente sozinha, tricotando em sua cadeira ao lado do fogão caseiro.

Sua rotina consistia em fazer comida para vender à vizinhança, tricotar para os netos e ir à igreja Nossa Senhora da Conceição aos domingos. Era muito beata, sabia diversas orações e tinha muitos crucifixos e santos espalhados pela casa.

No dia 10 de abril, sexta-feira Santa, ela foi à missa noturna acompanhada somente de uma vizinha, senhora bem mais velha do que ela. Depois da missa, elas foram para casa. Maricota notou a estranha tristeza da amiga, e ficou em dúvida se ela estava mesmo triste ou escondia alguma doença.

Em casa, olhou no relógio que marcava dez horas. Pegou o tricô que havia iniciado para um netinho e continuou o trabalho. Estava sentada ao lado do fogão, como de costume. Gostava de dormir tarde para uma senhora da sua idade, e os vizinhos até brincavam com ela já que viam as luzes de sua casa acesas até por volta das três da manhã. Mas tinha muita energia e era bastante ativa.

Passado o tempo, ela desliga o rádio para prestar atenção a um barulho estranho vindo de fora. O cachorro do vizinho mais próximo, a mais ou menos oitenta metros, não parava de latir já fazia um bom tempo. Algo estranho no ar. Assim que desligou o rádio, conseguiu escutar melhor os rumores de fora, estalidos como de paus de madeiras batendo uns aos outros, e um barulho que parecia se misturar ao vento, trazendo vozes humanas, e a cada dez segundos o retumbar abafado de um tambor.

Que estranho, não havia procissão a essas horas.

Foi logo à janela. Longe, perto das matas onde a estrada seguia para Mariana, viu fogos de tochas e uma grande multidão que andava a passos lentos. Vinham em sua direção. A senhora então ficou muito assustada, próxima ao desespero. Desligou todas as luzes ao dar-se conta de que logo passariam em frente à sua casa.

Quando a procissão finalmente se aproximou, a pobre Maricota espiava por baixo da cortina da janela da frente. O cachorro do vizinho latia cada vez mais forte. Na vanguarda da procissão ia um homem vestido de manto preto que cobria todo o seu corpo. Levantava uma cruz preta de mais ou menos seis metros que se inclinava para trás. Duas faixas estavam amarradas nela, em lados opostos. O restante do grupo vestia o mesmo manto só que branco, e estavam todos encapuzados. Carregavam tochas, velas em pires e alguns portavam até mesmo ossos. Cantavam em uma língua estranha, que Maricota julgou ser latim. Notava com pavor as palavras Mortem e Nazarenus em meio ao cântico. O retumbar do tambor fazia ela tremer cada vez mais as pernas. Assustava-se a cada batida.

Não aguentando o pavor, saiu da cortina e foi sentar-se na cadeira da cozinha. Tudo escuro. Os sons pavorosos da procissão, a luz pela cortina, de fogo em tochas, o tocar de sininhos. O que seria isso? Os misteriosos peregrinos pareciam nunca terminar, grandiosos em número. A senhora rezava baixinho segurando um de seus terços que achou sobre a mesa.

Virgem Maria me proteja!

Deu tamanho pulo quando, inesperadamente, escutou alguém batendo violentamente em sua porta. TUM TUM TUM. Três batidas. Fez o sinal da cruz por umas quatro vezes. “O que farei!?” Pensava. TUM TUM, mais duas. Ela, assustada, vai vagarosamente de encontro à sala. “Quem é?” Grita. Nenhuma resposta. O coral de fora parece trocar o ritmo. Agnus Dei, Qui tollis peccata mundi, Miserere nobis. Quando escutou a batida pela terceira vez, abriu decidida a porta da frente. Avistou no pátio um dos homens vestidos de branco. Portava uma vela branca que mal tinha queimado. Em seu rosto, Maricota viu um semblante horrível: Diversas veias negras o perturbavam, espalhando-se pelas bochechas e queixo como sanguessugas; e em seus olhos a íris dominada completamente por uma negritude sem vida. Seu semblante era de melancolia, a cabeça coberta pelo capuz.

— Boa noite, senhora. A paz do senhor esteja com você! A noite é agradável, a procissão do Miserere segue sua peregrinação até o cemitério. Sabe, senhora lúcida e amiga, não há melhor obra dos vivos e dos mortos do que prezar pela imagem de Deus e louvar nosso senhor Jesus Cristo, que se sacrificou por todos nós. Só assim limparemos nossa alma e seremos brandos como a água. Vemos na lama a sujeira humana, vemos no cerne dos vivos a corrosão da inocência, e é assim que vós chegais às portas do inferno. Somos almas que buscam reconciliação com o nosso senhor e a igreja por havermos tido vidas pecaminosas. Não escutamos ao sábio e não prezamos pela juventude casta. Ei-los! As almas se vão. Peço-te apenas que deixe esta vela ao lado de tua cama até o domingo da ressurreição, quando algum servo do senhor irá até sua porta para a recolher. Adeus! Non timebo mala quoniam tu mecum es.

E assim deu o pires para a senhora e virou as costas juntando-se outra vez ao grupo que se retirava. Maricota ficou na porta por alguns minutos acompanhando o cortejo afastar-se. Estava pálida e ainda nervosa. Voltou para a cama, deixou a vela de lado, e colocou-se a rezar por toda a noite.

No dia seguinte, não viu nenhuma pegada na estrada de terra, apenas rosas e alguns ossos espalhados que confirmavam a história. Ao perguntar aos vizinhos, eles disseram que ouviram tudo durante a noite, mas que não se atreveram a olhar pela janela, pois diz a lenda que quem visse perderia sua alma. Ela, muito assustada, recolheu-se em sua casa e não aceitou nenhuma visita durante o sábado. No domingo, tricoteava novamente em sua cadeira ao lado do fogo quando, às seis da noite, surpreende-se com alguém batendo em sua porta. Era um fim de tarde de nuvens, trovejava e anunciava chuva. As ruas estavam desertas, apenas os cachorros e gatos iam e vinham. Ao abrir a porta, deparou-se com um ser horripilante: Um esqueleto possivelmente de criança, pois media mais ou menos um metro e quarenta, que ficava de pé e fazia gestos. Não se sabe por qual ciência, ao abrir a boca, falava:

— Boa tarde, senhora. Não te assustes, vim apenas pegar a ossada que lhe foi confiada pela peregrinação das almas. Logo estarei em outro lugar, longe daqui, então não te assustes!

A senhora então foi buscar a vela em seu quarto. Para seu espanto, viu que o objeto havia-se transformado em ossos humanos. Pegou-os e meteu-os em um saco. Deu a tal monstruosidade, que saiu estalando os ossos em direção ao cemitério. Ela, apavorada, recolheu-se.

Semanas depois os vizinhos perceberam que ela não estava bem. Ficou doente, de uma doença aguda e rara, que lhe fazia vomitar e a recusar comida. Passava o dia todo rezando, não tinha cabeça para o tricô. A velha vizinha que a havia acompanhado na sexta-feira santa estava lá para cuidá-la dia e noite. Em um momento de delírio e febre, dona Maricota conta à sua amiga toda a história daquela madrugada. A vizinha, com expressões de preocupação e tristeza, ficou muito inquieta com o relato. No dia seguinte, também em uma sexta-feira, dona Maricota foi encontrada morta em sua cama pela amiga, que chorou copiosamente.

— Que Deus te receba de braços abertos, minha querida. E logo estaremos juntas conversando no paraíso.

Mas esta senhora viveu por mais alguns anos. No ano seguinte a morte de sua amiga, na sexta-feira santa, ela escutou as dez e meia da noite uma peregrinação se aproximando do distrito. Arrepiou-se ao lembrar-se da amiga falecida. Ao prestar atenção aos peregrinos, viu aquilo que suspeitava: Em um dos encapuzados distinguiu o semblante da amiga, que carregava uma vela na mão. Assim que passou, disse: “Maricota! Maricota! Estou aqui!” mas ela nem deu atenção para a amiga e continuou cantando tristemente os cânticos em latim.

Quando a comitiva estava prestes a passar por completo, a vizinha ouviu alguém batendo em sua porta, e não teve coragem de abri-la. Depois de alguns minutos, parece que desistiram de fazê-la abrir, e a peregrinação passou e a senhora voltou a dormir, pensando nos mistérios que Deus impõe a nós, simples mortais, e o quão importante é ir à igreja e ter uma vida tranquila nas mãos do divino.

Pasquali
Enviado por Pasquali em 13/05/2025
Código do texto: T8331530
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