Conto de Natal: Véspera

Conto de Natal: Véspera

Sei que é por cobrança da Sociedade que estou sendo julgado às vésperas do Natal. Nem mesmo assim, recebi tratamento especial.

Estou aqui por que temendo levar a pior, dei cabo da vida de um justiceiro, mas não qualquer e sim, um policial tido como honesto, cumpridor da Lei e de seus deveres. Mas quem mora na rua sabe bem que ele era e sob quais métodos mantinha a Lei e a Ordem.

A despeito de tudo e de todos, eis aqui o traste, a aberração social que exterminou com um tiro certeiro o peito de um nobre cidadão.

A arma fria, que nunca vira antes, passou a pertencer a mim, já que na luta que aconteceu ali, no corpo a corpo, ela disparou acidentalmente matando o cidadão de moral ilibada.

Não interessa aos senhores jurados os fatos, nenhuma consideração é feita, nenhuma suposição pode ser lançada sobre as verdades absolutas colhidas durante as investigações que ocorreram de forma tão rápida, dada à comoção nacional.

Não interessa a ninguém quem sou e o que fiz e como vim parar na rua. Afinal sou apenas mais um ex-menor abandonado, um trombadinha a mais a rondar dia e noite a segurança de pessoas honestas.

Não interessa que hoje e já faz alguns dias, minha fome tem me deixado fraco e até a visão embaça e não posso divisar o semblante do juiz, de aparência tão minha conhecida.

Não pensam nas noites em que fui surrado por imbecis filhos deles mesmos, que hoje me julgam e tentam acabar com a única coisa que tenho: a Liberdade.

Não pensam nos natais que esperei ganhar nem que fosse um carrinho velho para arrastar pelas ruas nas noites frias, que era quando eu podia ser criança.

Não pensam que os únicos panetones que comi, vinham embalados em papel de banheiro, que só conheço peru e pernil azedos, que as frutas que consegui comer vinham nos sacos de lixos que muitos destes jurados e de outras pessoas desta cidade, lançavam fora depois de fartos.

Mesmo agora, enquanto muitas testemunhas me difamam e levantam todo tipo de calúnia, vejo-me ainda pequeno, descobrindo que minha mãe morrera e agora eu teria que desocupar a casa onde viveu seus últimos dias.

Tudo passa lentamente na minha mente, os primeiros dias de rua, tendo por companhia apenas a fome, que já era então minha velha conhecida.

Sabe o que me ira mais? Não são as acusações, as dores que me foram infligidas para que eu mudasse meu depoimento, nem mesmo a solidão da cela escura, apertada e solitária onde passei 15 dias de pé, sem poder ao menos mexer meu corpo dolorido e magro, sem espaço até para eu fazer minhas necessidades mais básicas.

O que dói mesmo é conhecer só hoje o responsável pela minha vida. O homem que um dia, por algumas míseras notas imundas a pagar por um instante de prazer, descarregou em minha mãe sua semente maldita. Que não pensou nas conseqüências de seus atos libidinosos com a pobre e bela desconhecida que encontrou na esquina e que para comer, vendeu-lhe seu corpo, prostituiu sua alma romântica.

Só hoje vejo o que era que ela queria dizer quando me olhava e dizia que pelo menos eu herdara todos os traços de meu pai, já que não lhe herdaria seu dinheiro.

Seu modo de balançar a cabeça, de levantar o ombro direito, de olhar por cima dos olhos, como se usasse óculos imaginários.

Vejo tudo agora e me reconheço naquele que um dia deitou-se num quarto imundo e frio com minha doce mamãezinha e nem perguntou seu nome.

Sei que minha condenação me levará a morte dentro da cadeia, pois se até hoje consegui fugir da marginalidade e dos vícios, mesmo vivendo nas ruas, ao adentrar aqueles portões e ali ser trancado, não terei outra opção a não ser um novo bandido. Marginal eu já sou, afinal vivo a margem desta Sociedade horrenda, que não quer a verdade dos fatos, quer apenas aplacar sua ira e se fazer segura com minha prisão. E esta morte, que não será física e sim moral, me deixara cada dia mais distante dos sonhos que um dia acalentei.

Ninguém nota minha forma de expressar, meus modos contidos, nada disto. Não sabem que aprendi ler sozinho, fuçando os lixos dos ricos, que é por isto que sei falar tão bem, quando me deixam, claro. Não sabem que mesmo morando aqui na rua aprendi a falar duas outras línguas, de tanto ajudar turistas a se moverem pela cidade. Tudo isto é desconhecido pela Sociedade que cobra pulso firme da Justiça. Que exige que eu seja punido de forma outros não se atrevam a matar homens honrados como dizem eles era o policia que eu matei.

Ali, na verdade, matei de vez meus sonhos. Minhas últimas esperanças foram enterradas junto com o corpo frio, do homem gélido, que matou muitos de meus companheiros de rua por longos dez anos e que nunca foi punido por abortar sonhos infantis. Sonhos singelos.

Esta sentença tão esperada pela Sociedade, será a única herança que meu pai me dará. Afinal, sendo quem é, um juiz tão justo, só poderá mesmo me lançar nas garras de um agente prisional e claro, se puder, jogar a chave fora, abandonando-me como um dia, quando ainda era um estudantezinho de Direito, abandonou aquela que abrigava em seu ventre seu filho.

Espero que um dia ele tenha consciência do que fez naquele dia, que também era véspera de Natal.

Elisabeth Lorena Alves
Enviado por Elisabeth Lorena Alves em 26/12/2009
Código do texto: T1996470
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