SINOS DE NATAL

SINOS DE NATAL

Miguel Carqueija


Avistar um céu de verdade, após tantos anos, era algo de comovente. Apoiado ao gradil de um dos jardins da praça, Fitzwillie Bell fitou longamente aquela Lua que, cheia, esparzia sua imensa luz sobre o mundo. O firmamento estava cravejado de estrelas e Fitzwillie lamentava, tardiamente, não ter aprendido Astronomia para poder reconhecer as constelações.
“Se eles forem minimamente humanos, saberão onde me procurar. Mas o sistema já deixou de ser humano, e os esbirros também não o são.”
Apesar desse raciocínio, Fitzwillie sabia que tudo estava contra ele. Ocasiões existem em que o homem se sente mais só do que nunca, sozinho no universo. E, ainda por cima, um universo hostil.
Fitzwillie sabia que o tempo voa e que não podia se demorar em contemplações. Pôs-se a caminhar no frio da noite, com as mãos nos bolsos do casaco e exalando vapor pelos lábios. Sabia da existência de um ponto de táxi, no lado oposto da imensa praça. Mas isto fôra há anos. Existiria ainda? Os olhos azuis de Fitzwillie, sob suas grossas sobrancelhas, olharam em volta precavidamente. Seria o cúmulo do azar esbarrar agora com assaltantes noturnos, pois não poderia recorrer á polícia.
Olhando um instante para cima, vislumbrou uma estrelinha móvel que não era senão a Terra 5, isto é, a Penitenciária Espacial, de onde ele viera. Com certeza já havia todo um aparato à sua procura, mas o bote espacial espatifara-se a centenas de quilômetros e, a não ser por uma grande sorte, eles não poderiam saber em que ponto do trajeto o fugitivo saltara de pára-quedas.
Fitzwillie fitou por alguns instantes a comprida árvore de Natal que, do interior da praça, distribuía a sua luz piscante, proveniente de milhares de lâmpadas coloridas. O espetáculo era em si deslumbrante, mas Bell não nutria grande entusiasmo por tais decorações.
Ele avistou finalmente o ponto de táxis. Àquela hora só havia alguns poucos de plantão, e Bell estugou os passos. Não poderia perder tempo.
Não estranhou muito em deparar com uma chinesa ou coreana como taxista da vez. Táxi já não era uma profissão tão perigosa, mesmo para mulheres, por causa do monitoramento dos veículos pelo GPS. Aproximou-se e a mulher se destacou dos colegas e veio até ele.
— Boa noite — disse Fitzwillie. — Preciso ir ao Roseiral.
— É um pouco longe — disse ela, algo admirada.
— É por isso mesmo que eu vou de táxi — e Fitzwillie sorriu, tentando ser simpático. — Se fosse perto eu iria a pé.
Ela também sorriu e entrou no aparelho. Aquele era um ponto de táxis terrestres. Aliás, naquela cidade ainda eram poucos os aerotáxis.
Bell acomodou-se no banco de trás, após informar a rua. Embora houvesse um sistema de comunicação através da vidraça, ele não pretendia manter conversação e esperava que a taxista não fosse loquaz.
Por felicidade, ela não era.
Roseiral era um bairro pobre e mal cuidado, uma prova de quanto estavam equivocadas as velhas utopias de futuros imaculados, tipo Jetsons, onde tudo funcionaria às mil maravilhas. Mas, naquele momento, o raciocínio de Bell encontrava-se muito distante do filosofar. Ele pagou a corrida diante de uma casa sórdida, caindo aos pedaços, de uma rua esburacada e suja. Àquela hora a via estava deserta salvo, na esquina, alguns melancólicos cheiradores de ilusionol.
Bell estava preocupado. Não tivera como avisar de sua chegada; aliás nem tinha certeza que elas ainda moravam lá.
Aproximou-se do portão e buscou a campainha. Ao pressioná-la, porém, percebeu que estava desligada. De fato, muita gente fazia isso à noite para evitar trotes e visitas indesejáveis.
Bell olhou em volta e, não avistando ninguém a não ser os inofensivos toxicômanos esparramados na esquina, tratou de pular o muro. A casa toda estava ás escuras; já deviam estar dormindo. Chino, o cachorro, não apareceu; provavelmente já teria morrido.
Pé ante pé, chegou à encardida e velha porta e bateu discretamente. Esperou na friagem, em vão, durante minutos; afinal, resolveu bater com mais força. Elas iriam se assustar, mas que mais ele poderia fazer? Não dispunha de comunicador.
Por fim, acendeu-se uma luz na frente da casa, no andar de cima. Apareceu um rosto mal vislumbrado:
— O que é? Como entrou aqui?
— Eugênia — gritou ele em sussurro.
A luz de uma lanterna atingiu o seu rosto.
— Fitz! É você! Meu Deus!
— Sim, sou eu mesmo!
— Espere um pouco!
Eugênia não se fez esperar; desceu rapidamente a escadaria interna e abriu a porta, atirando-se nos braços do irmão mais novo.
— Que milagre o trouxe aqui, na véspera do Natal?
— E a mãe?
— Ela dorme. Está muito enfraquecida, já vê... mas o que houve? Deram-lhe liberdade condicional?
— Não — foi a triste resposta. — Eu fugi.
Ela pareceu muito assustada:
— Mas você não pode fazer isso, Fitz! Virão atrás de você!
— É por isso que eu preciso ver logo a minha mãe. Não quero que ela morra sem me ver mais uma vez.
— O sistema é tão cruel... entre, por favor.
Eugênia fechou a porta, passando a chave e o trinco.
— E o Chino? — lembrou-se Fitz de indagar.
— Está lá em cima, também, ferrado no sono. Está tão velhinho... nós não o deixamos mais no quintal. Ficou perigoso por aqui.
— Eu entendo. Vocês deviam se mudar daqui.
— Se tivéssemos feito você não nos encontraria.
Era verdade. Pessoas como Eugênia e Cibelle não sabiam usar o correio cósmico e o contato com Fitzwillie se interrompera havia anos. A Bell desgostava o anacronismo da mãe e da irmã, bem como as dificuldades que o sistema carcerário impunha. Nunca lhe permitiriam descer à Terra para visitar a mãe idosa e doente, por causa dos custos das viagens espaciais. Dessa maneira, parentes e amigos nunca mais se viam, porque o preço de uma chamada visofônica era também astronômico.
No vestíbulo, antes de subirem, Fitz levantou uma importante questão:
— Eugênia... o que você vai fazer de sua vida quando mamãe falecer? Vai ficar inteiramente sozinha?
Eugênia, viúva e sem filhos, observou com melancolia:
— Nosso tronco secou, não é mesmo? Também tenho pensado muito nisso. Talvez eu me case de novo, ou talvez adote uma criança. Agora não posso pensar nem numa coisa nem noutra.
Ao subirem a velha e rangente escada de madeira, com seu corrimão carunchado, Eugênia perguntou, esperançosa:
— E você, Fitz? Ainda faltam cinco anos, não é? Não pode conseguir uma redução de pena? Para ajudar a cuidar de nossa mãe!
— Isto seria justo; afinal eu não matei ninguém, fui condenado por prática de vigarice. Vendi asteróides antes que chegássemos neles, mas de fato prejudiquei muita gente. Eu me arrependi do que fiz, mas tardiamente.
— Mas, pode ou não?
— Poderia, se tivesse um advogado que preste.
Entraram no quarto. O velho e enrugado Chino veio quase se arrastando, mas abanando o rabo, numa tranqüila festa a Fitzwillie.
— Ele me reconheceu — disse o ex-escroque, deixando que o cachorro de raça chinesa lhe lambesse as mãos.
— Cães são muito inteligentes e sensíveis — admitiu ela.
— É, eu sei. A mãe está dormindo...
— Ela terá de acordar para te ver.
Realmente, na cama modesta uma senhora idosa e magra ressonava, de rosto para cima. Seus cabelos eram brancos e ralos e seu aspecto, mesmo no sono, bastante sofrido.
— O que você fará? — sussurrou Eugênia.
— O que eu farei?
— Depois de falar com mamãe. Quer passar a noite aqui?
— Acha que eu deveria? Sou um fugitivo e vocês estariam encrencadas...
— Você crê que nossa mãe, com 84 anos, pode ficar encrencada com a policia? E eu, que cuido dela... a Lei me garante esse direito.
Cibelle Bell começou a dar sinal de vida. A sua respiração entrecortou um pouco e, por fim, ela abriu os olhos, fixando-os no visitante.
—Mamãe — murmurou ele, e adiantou-se. A enferma, num assomo de energia, ergueu-se do leito e pôs-se de pé antes mesmo que o filho a alcançasse. Os dois se abraçaram como há anos não podiam fazer.
— Meu filho. Eu sabia que você voltaria para me ver.
Ela segurou-se nele, trêmula, e ele, quase tão trêmulo, mal conseguiu falar:
— Mamãe, me perdoe. É Natal, e não te trouxe uma única lembrança...
— E para que isso, Fitz? Você é o meu presente de Natal.
Ela arquejou e estremeceu nos braços dele.
— O que foi, mãe?
As lagrimas escorriam pelo rosto da velhinha.
— Eu pedi muito a Deus que só me levasse depois que pudesse vê-lo e me despedir de você. Eu vou morrer feliz, Fitz. Eu esperarei vocês dois do outro lado.
— Mas o que é isso, mãe? Não vai acontecer nada disso!
— Isso é o que todos dizem, não é, Eugênia? As pessoas convivem diariamente com a morte e passam a vida fingindo que a morte não existe e até tentando convencer disso os doentes terminais. Mas olhem para ele.
Assim dizendo, ela apontou o cachorro. Cibelle, aliás, passada a energia inicial, só se mantinha de pé porque Fitzwillie a amparava.
— O velho e bom Chino sabe que vai morrer em breve. E eu também sei. O sacerdote já esteve aqui, foi minha penúltima visita, a antepenúltima foi o médico, e você é a última, meu filho. Agora, morrerei entre meus dois filhos. O que mais posso desejar?
Levaram-na de volta para a cama. Logo, a anciã entrava na agonia mortal.
— Temos de chamar um médico — Bell estava aflitíssimo, mas Eugênia manteve a calma:
— O que ele poderá fazer? O Dr. Mirabeau já esteve aqui hoje, já lhe deu um cordial mas explicou-me que a sua vida está por um fio. Levá-la para o hospital serviria apenas para que ela sofresse mais.
Fitzwillie pôs a mão na testa, tentando represar o desespero:
— Mas o que ela tem?
— Insuficiência cardíaca, falência dos órgãos vitais. Acho melhor ficarmos com ela até o fim, era o que eu ia fazer.
Eugênia deitou o cachorrinho, já choroso, como se compreendesse tudo (e quem pode garantir que não compreendia?) junto à agonizante, e sentou perto do rosto da mãe, segurando-lhe uma das mãos. Fitzwillie fez o mesmo do outro lado, angustiado e imerso em pensamentos:
“O que vale para o Homem aventurar-se pelos espaços siderais, conquistar o universo, se continua sujeito ao grande mistério que é a morte? Ou estão certas pessoas como mamãe e minha irmã, que acreditam num Deus de bondade que aguarda os bons no pórtico do Além?”
Já não pensava, naquele momento, no que iria fazer da sua vida; só pensava naquela vida tão querida que se extinguia a olhos vistos. E então, ante as lágrimas que ele e Eugênia derramavam, e como se fosse uma resposta às suas dúvidas, três coisas aconteceram quase simultaneamente:
Cibelle deu um grande suspiro e expirou serenamente.
O cachorrinho ganiu dolorosamente.
E os sinos da igreja próxima badalaram majestosamente, chamando para a Missa do Galo.

 

 

Comentários: Edimilson Celso, Joyce Sameitat, Regina Madeira, Ilmar, AnnaLuciaGadelha, Angeluar, Isabelle Mara, Francisco Carlos Amado, Bebel Lima, (...), Fábio Brandão, Araken Brasileiro, Lucia Silva, Maria de Fátima Delfina de Moraes, Joyce Lima, Judd Marrriot Mendes, Jô Pessanha, Beatriz Nahas



 

Miguel Carqueija
Enviado por Miguel Carqueija em 08/12/2013
Reeditado em 30/12/2021
Código do texto: T4604095
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