POENTE EM FOGO (O IMORTAL DAS ILUSÕES)

Nenhuma expressão se assemelha àquela que toca as faces de um morto. Os rostos que vislumbramos rotineiramente são dotados de um brilho único. As particularidades que habitam nossa alma e se manifestam em nossa personalidade são espelhadas nos olhares e sorrisos que trocamos dia após dia. Somos, portanto, um mosaico onde cada peça compõe um indivíduo excepcional à sua maneira. Quando a morte encerra a trajetória de determinado indivíduo, essa composição fantástica se quebra, perdendo-se em algum lugar no tempo e no espaço. A feição pétrea que vemos no caixão é mórbida justamente porque tudo que havia ali se foi, e o rosto que relacionamos durante tanto tempo a uma personalidade esplêndida, já não possui ligação alguma com mais nada. É um desenho vazio cujas pálpebras fechadas escondem órbitas perdidas. A morte é fria.

POENTE EM FOGO (O IMORTAL DAS ILUSÕES)

CONTO PERTENCENTE AO UNIVERSO LÚGUBRE ETERNIDADE

A vida é efêmera. Só nos damos conta de sua brevidade no fim da trilha e, quando finalmente abrimos nossos olhos para o que realmente importa, é tarde demais. Naquela tarde chuvosa, Olga não conseguia se perdoar por nunca ter enxergado a verdade tão óbvia que rondava o leito de morte de seu pai no Hospital local: a cada ciclo respiratório que os pulmões do Sr. Dantas completavam, menos ar conseguia passagem e mais próximo da morte estava seu corpo fatigado. Mas Olga era otimista demais para admitir isso. Simplesmente se negava a acreditar que o maço diário de cigarros tragados por seu pai iria mata-lo tão rapidamente quanto ele os consumira ao longo da vida.

Ela frequentava a faculdade de Medicina e seu programa de residência acontecia justamente no Hospital local. Mal vestira seu jaleco quando se deparou com a expressão alarmada de seu pai no corredor da ala de emergência. As enfermeiras lutavam para controlar a crise de tosse do Sr. Dantas, mas o esforço não parecia surtir efeito algum. O som áspero que a garganta do fumante compulsivo emitia era terrível a ponto de fazer parecer que as cordas vocais seriam rasgadas a qualquer momento. A cena ganhava um toque de dramaturgia graças ao corpo do homem se contorcendo enquanto o sangue era expelido de sua boca. Ele estava agitado, parecendo não querer acompanhar aqueles que tentavam ajuda-lo, mas no momento exato em que seus olhos encontraram os de sua filha, que já se aproximava as pressas, ele se aquietou: tarde demais, ela já o tinha visto e não o deixaria até que seu quadro se estabilizasse - algo que nunca mais aconteceria.

Do momento em que seu pai dera entrada no hospital com um avançado câncer de laringe ao momento em que foi beijado pela morte e seus olhos se fecharam para sempre, mil anos pareceram se passar. E apesar do tempo congelado, excessivamente longo, Olga não conseguiu dizer as simples palavras que seu coração guardava a sete chaves desde que saíra de casa, aos 17 anos: “Eu te amo, pai!”.

A necessidade dessas palavras surgiu após uma briga ente os dois que terminou com um dos dedos da garota quebrado. O Sr. Dantas, por sua vez, teve de aprender a conviver com a amargura da solidão e com seu vício impregnado tão profundamente dentro de si que era simplesmente impossível reverter a situação, não importando quantos grupos de apoio ou medicamentos procurasse. A frustração e o abandono fizeram dele um alcoólatra que parecia ansiar pela morte a cada incontida tragada do cigarro. E como se não bastasse tamanha derrota, um câncer implacável se alastrava em seu interior, criando tumores silenciosos que só começaram a dar sinais de vida após as incessantes crises de tosse. Olga tinha absoluta certeza de que carregava a maior parcela da culpa. As coisas teriam chegado a esse ponto se ela continuasse vivendo com seu pai? Achava que não. E estava certa.

Agora, diante do caixão que acomodava o corpo inerte do pai, Olga chorava. Estava simplesmente inconsciente em relação a tudo que acontecia na sala da funerária. Nenhum amigo, nenhum familiar, e nem mesmo a própria mãe - que fora viver seu sonho estrangeiro em Chicago, deixando para trás filha e marido – fora capaz de tirar a promissora médica do estado entorpecido em que se encontrava. Seus olhos não focavam em nada mais além do cadáver, e sua mente não parava de enfatizar o quanto estava arrependida por não ter se desculpado com o pai. O desejo de todos aqueles que de fato passam pelo luto se manifestava em Olga, pois ela tinha vontade de voltar no tempo e fazer diferente. Esta linha de raciocínio, no entanto, era tão inútil quanto todo aquele circo que se armava em volta do caixão.

A chuva despencava incessantemente lá fora, e a nebulosidade daquela tarde era um amplificador para os sentimentos depressivos de Olga. Durante quatro horas a peça se manteve: alguém chegava, lhe demonstrava falsa empatia, transmitia suas condolências e se afastava, agradecendo a Deus por não estar na pele daquela pobre coitada. Depois este mesmo alguém ia até o caixão, contemplava o morto por um minuto ou dois e ia se servir de café na sala ao lado. Quando os ouvidos da estudante captaram risadinhas se formando naquele espaço, ela explodiu.

Olga se levantou. Gritou a plenos pulmões e nem parecia estar a 48 horas sem dormir:

- Basta! – Um silêncio imediato se instaurou - Por que vocês se deram ao trabalho de sair de casa? Para quê atravessaram a cidade? Para insultar a memória de meu pai, contando piadas e tomando café enquanto marcam encontros para o próximo domingo?

A isto ninguém respondeu. Lorran, primo imediato de Olga, se aproximou e pousou suas mãos sobre os ombros trêmulos da garota. O gesto foi repelido por um arisco “Me solte!” entoado por ela. Seu protesto continuou.

- De nada me servem suas belas palavras e lamentações. São todos falsos. Escondem seus olhos secos atrás de óculos escuros e não sentem nada além de pena pela filha do bêbado... Pela filha do viciado – Choque. Bocas abertas e olhos arregalados a encaravam. Formou-se uma pequena plateia envolta pelo silêncio que só era quebrado pelas duras palavras de Olga – Porque simplesmente não vão embora? Todos vocês! Vão embora e deixem-me com minha dor! Vocês não precisam fazer isto. Onde estavam quando ele preci...

Ela interrompeu seu apelo abruptamente. Foi golpeada pela frase que não pôde concluir, percebendo o absurdo da mesma. “Onde estavam quando ele precisou de vocês?”, era como pretendia terminar. Mas com que direito falava deles? Onde ela mesma esteve quando seu pai mais precisou? As lágrimas irromperam quando seu próprio julgamento a arrebatou. E elas tomaram ainda mais vigor quando a hora do enterro foi anunciada por um dos falsos parentes, como tentativa desesperada de descarregar a atmosfera pesada da sala. Evidentemente, isto só serviu para piorar as coisas.

- Não! Não o levem ainda, eu preciso... – As mãos de Lorran foram firmes desta vez, e tinham de ser. Olga se recusava a soltar a alça do caixão, agarrando-se a ela com toda a força que lhe restava. Sob seu ponto de vista, a penitência não deveria ter fim, mas era fato que o corpo já estava exposto a tempo demais. Além disso, a equipe responsável pelo enterro não esperaria por toda uma vida – Me solte! Você não tem o direito! Ele era meu pai!

O murmúrio alto das pessoas tomou conta do ambiente. Verdade seja dita, esse tipo de espetáculo é comum em funerais. Nós nunca estamos preparados para deixar os entes queridos partirem. Olga certamente não estava, e seus gritos de histeria atestavam isto. Mas um estranho chegou ao recinto bem a tempo de presenciar o show que ali acontecia. Quando seus sapatos tipo social estalaram no piso de mármore – respingando água da chuva que castigava o mundo lá fora - a cena ganhou um novo protagonista. Todos os olhos, inclusive os de Olga, inchados de tanto chorar, se voltaram para a sublime figura agora parada diante da porta de vidro.

Era um homem alto, esguio. Tinha a pele tão clara quanto as velas cujas chamas crepitavam em homenagem ao morto. As roupas pretas, em evidente contraste com a tonalidade do estranho, lhe caiam tão perfeitamente bem que só podiam ter sido feitas sob medida: usava um terno liso, sem nenhuma estampa ou listra. Abaixo do elegante paletó, uma camisa tão vermelha quanto seus lábios carmim podia ser vista. Estava com os primeiros botões – se consideramos a ordem de cima para baixo – abertos e a cavidade das clavículas evidenciava um corpo magro que, apesar disso, era muito atraente. Tanto que, por um momento, todos os presentes pareceram não se dar conta de que estavam em um velório, e não em um desfile de alguma grife famosa de ternos luxuosos.

Olga foi aquela quem quebrou seu encanto. Embora também tenha sido momentaneamente absorvida pela aura envolvente que cercava aquele homem, tinha cravada no coração a adaga do arrependimento, que parecia ser feita de gelo. Estava machucada demais para admirar qualquer outra pessoa que não seu falecido pai. Após um momento contemplando o ilustre recém-chegado, voltou a cair em prantos diante do caixão.

Quando a mãe de Olga se aproximou para abrandar o desespero da filha, tentando ajudar Lorran a afastá-la do cadáver, a garota pareceu protestar ainda mais. Seus gritos ecoaram pelo salão e pela primeira vez o pálido jovem que entrara se manifestou.

- Perdão, senhores, mas creio que não conseguirão nada forçando-a a se levantar. Nota-se que não está pronta, e seus atos só servirão para frustrá-la ainda mais.

A voz grave certamente tinha força. A filha do morto chorava mais discretamente agora, ainda sem erguer a cabeça. Sua mãe e seu primo pareceram congelar após voltarem seus olhos ao estranho. A princípio ninguém o respondeu. Foi Rogério, irmão do Sr. Dantas e pai de Lorran, quem interveio.

- Perdão senhor...? – O tom indagador sugeria que o desconhecido precisava se apresentar. Ele certamente não precisava. Mas o fez de bom grado.

- Quanta grosseria a minha! Sou Elias. Vvenho prestar meus sentimentos a família de meu querido amigo falecido, que Deus o tenha.

Certamente cordial. Mas o sorriso sutil estampado em seu rosto não demonstrava pesar algum.

- Tanto faz – Áspero, como habitualmente era, Rogério não sentia empatia pelo recém-chegado – Minha sobrinha está desolada. Entendemos isto. Mas o corpo precisa ser enterrado. E a vida segue. Todos têm coisas a fazer e...

A interrupção foi ainda em tom cordial. A voz de Elias era imponente, imperativa.

- Ora, se todos possuem tantos afazeres que não podem prestar mais meia hora de luto em memória de nosso amigo, por que não partem e permitem que a garota se despeça devidamente?

- Meu caro, você não está enten...

- Entendo muito bem – Entoou Elias, que agora deixava a soleira da porta e se aproximava de Olga – Por favor, companheiros, será que não daremos a filha do falecido alguns minutos? Será que ninguém sentirá compaixão além de mim?

Ninguém se opôs e, diante disso, Rogério engoliu seu orgulho. Lorran e a mãe desnaturada de Olga se afastaram quando Elias se curvou, passou seu braço ao redor dos ombros da estudante e a ajudou a se levantar.

- Venha, minha querida. Por que não se senta um pouco?

Ela estremeceu ante ao toque gelado daqueles dedos compridos, mas não recusou ao chamado do rapaz (como poderia?). Foram se sentar lado a lado no canto do salão e não trocaram uma só palavra, os braços dele ainda contornando os ombros dela. Os outros encaravam Elias com fascínio enquanto Olga parecia se acalmar cada vez mais.

- Como conheceu meu pai? – Olga perguntou, começando a sentir-se cansada demais. Estranhamente, o sono voltara a castigar seus olhos. Quando foi a última vez em que conseguira dormir por toda uma noite? Não se lembrava, mas estava consciente de que nos últimos dois dias fora privada até mesmo de um simples cochilo. Seu pai em fase terminal dava indícios de sua morte a cada cinco malditos minutos.

- Creio que isto não tenha importância – Elias respondeu jovialmente - Ficaria surpresa se dissesse que não o conheço? Acho que sim! De qualquer forma, está ouvindo o Sr. Dantas agora?

- O que disse? Eu não entendo o que...

Não conseguiu concluir. De repente estava fraca, a voz apenas um sussurro baixo. Algo havia mudado naquele espaço, e cada célula do corpo de Olga gritava em alerta. O que sentia naquele exato momento não era apenas resultado de noites insones. Desde o momento em que Elias entrara no salão o corpo da garota fora arrebatado por uma sensação de entorpecimento que ficava cada vez mais forte. Sentia os olhos pesados, mas estava mais inclinada a acreditar que fosse alguma espécie de transe que sono propriamente dito. A sala começou a girar e as palavras que pensara em emitir foram roubadas de seus lábios. “Não o conhece?”, ela mentalizou, “Como pode? Por que veio então?”. Não conseguiu dar voz ao questionamento, mas achou ter sido respondida. Ouviu a voz de Elias alta e clara.

- Ainda não o ouve? – Ele parecia não dar importância a confusão que assolava a mente de Olga – Devo admitir que você resiste mais que a maioria das pessoas. Mas como eu disse, não importa. Quer mesmo prosseguir com esta conversa inútil? Interessa mesmo se conheço ou não o Sr. Dantas? Você vai mesmo recusar a última chance de lhe dizer as palavras?

“Eu me importo mesmo?” Ela perguntava a si própria, sentindo-se aérea e quase delirante. “Acho que não. Realmente não. De que me servem essas preocupações a esta altura do campeonato? Que se dane! Ele já se foi e...” Então a exaustão chegou a um ponto crítico. Olga já não sabia mais o que dizia. Ou pensava? Também não sabia se era uma coisa ou outra. Mas o estranho parecia ouvir. Então ela deduziu que balbuciara as palavras. Ainda se agarrando aos últimos vestígios de racionalidade, pensou: “Apenas me acorde quando for a hora de sepultá-lo, está bem?”

- Se é isto que lhe preocupa, esqueça. Creio que algum desses idiotas poderá avisar quando for a hora – De novo, a voz dele foi clara, em contraste com o embaraço mental de Olga – Apenas se entregue, minha querida! Seu pai te espera, e está quase partindo de vez.

Tudo bem, ela só poderia estar mesmo delirando. Seu pai jazia morto naquela sala. Já havia partido há muito tempo. Mas ela decidiu que sua eminente insanidade não era algo relevante. Simplesmente se entregou ao sono (transe) e deixou os olhos se fecharem. O mundo parecia distante. As outras pessoas conversavam baixo, mas suas vozes eram distorcidas, apenas murmúrios trêmulos que não chegavam a formar palavras. Quando achou que finalmente seria varrida pela inconsciência, a voz límpida de seu pai falou em um tom amável, que ela acreditava jamais ter ouvido dele antes.

- Olga, Você demorou! Porque não abre os olhos? O dia está quase acabando, querida! Veja que pôr-do-sol incrível!

Como resposta a isto, seu coração disparou no peito. De imediato pensou estar sonhando. Certamente estava. Mas quando sentiu o calor do sol (não poderia ser outra coisa!) tocar-lhe as faces, não teve mais certeza de nada. “Não estava chovendo? Engraçado, o ar estava mesmo gelado agora há pouco!”. A brisa suave que percorria seu corpo contradizia qualquer impressão climática daquela tarde. Estava realmente agradável ali. Então ela abriu os olhos. Deixou as pálpebras superiores se desprenderem das inferiores e julgou nunca ter visto algo tão belo em toda a sua vida.

- Este sempre foi meu fenômeno natural preferido! – O Sr. Dantas parecia não estar consciente de sua morte – Sabe, isto acontece todo miserável dia, e mesmo assim não me canso de ver o sol baixando até sumir no infinito!

Pelo que pôde perceber, Olga estava sentada em um banco de madeira. O lugar era velho. Sob o assoalho, também de madeira, havia uma fina camada de poeira. Acima, uma cobertura simples e metálica se estendia até os limites daquele espaço, e Olga percebeu que o piso acabava logo após uma faixa amarela que percorria todo o comprimento da plataforma. Estavam em uma estação de trem. Constatou isto quando viu os trilhos seguindo por uma rota sinuosa à direita. Vales intermináveis se estendiam diante dos olhos de Olga, imediatamente a sua frente. A estação era voltada para o oeste, pois também a sua frente o sol se punha majestoso no horizonte. O céu já tinha adquirido aquele tom alaranjado típico dos fins de tarde. A seu lado estava o dono da voz que fizera seu coração dar um pulo de ansiedade.

- Pai! Porque estamos aqui? Quero dizer... – Lutou com as palavras e foi derrotada. Aquela não era a primeira vez que perdia esta batalha – Não esperava por isso.

- Eu também não. Mas não vejo problema em um conversa de despedida, você vê? Logo o trem chegará e você não precisará se preocupar com um velho viciado que não conseguiu parar de se matar, dia após dia.

Isto doeu aos ouvidos de Olga. “Você vai mesmo recusar a última chance de lhe dizer as palavras?” Ouviu a voz de Elias revirando na memória e soube o que precisava fazer. Soube por que contemplava o pôr-do-sol ao lado de seu pai falecido.

- Eu te amo, pai – As palavras saíram tão facilmente que ela mal podia acreditar no que seus ouvidos escutavam – Sempre amei. Sabe disto, não é?

- É estranho perceber que as palavras são insuficientes, não acha? – Um sorriso se insinuou nos lábios do morto - O homem desenvolveu a comunicação verbal e a fez evoluir de várias maneiras. Ainda assim, mesmo que este mecanismo nos coloque a frente de outras espécies, somos incapazes de dizer fielmente o que sentimos usando apenas palavras. Por mais próximas que estejam de descrever a verdade, elas nunca serão suficientes.

- Eu tentei dizer, pai. Eu tentei. Eu só não sabia como começar e...

- Você tentou dizer, isso é verdade – a interrupção não foi grosseira de forma alguma – Mas nunca estaremos preparados para nada, Olga. Você queria dizer, mas buscava uma forma adequada para isto, como se falar “Eu te amo” requeresse algum treinamento especial!

O sorriso no rosto de seu pai ampliou-se um pouco mais. Olga não suportou a veracidade daquelas palavras e voltou os olhos mais uma vez para as longínquas montanhas à frente. Ali o sol incendiava o céu avermelhado e já quase tocava a linha que indicava o fim do campo visual.

- O que estou querendo dizer é que nem sempre teremos uma segunda chance. Eu certamente busquei uma no fim do caminho, mas era tarde demais. O que me entristece é que eu sabia que estava mais próximo da morte a cada cigarro consumido. Ainda assim, prossegui tragando um após o outro. Você acha que isto é alguma forma de suicídio?

A sabedoria daquele senhor pareceu vacilar um pouco. Pela primeira vez estava realmente em dúvida.

- Não, pai. Você só não teve apoio – Ela começou a expor a culpa que a corroía – Não teve alguém que lutasse por você. Eu realmente gostaria de voltar atrás. Queria ter ficado em casa e ter salvado sua vida. Fui fraca.

Como que para enfatizar seu pesar, a emoção floresceu uma vez mais. Lágrimas começaram a descer pelos cantos dos olhos de Olga. Naquele fim de tarde iluminado, o brilho do horizonte em brasa fez cada gota lacrimal parecer rubis escorregando pela face úmida da garota.

- Não perca tempo se culpando, minha doce menina – O tom acolhedor abrandou o sofrimento dela – Isto não te levará a nada. O que está feito está feito, e ninguém é culpado senão eu. – De repente, ele pareceu alarmado. Quase gritou - Oh! Veja! Veja, Olga!

Ela seguiu o dedo que apontava. O sol tinha encontrado o contorno dos vales escarpados. Do lado oposto, a noite começava a tecer seu véu e o céu tornava-se primeiro púrpuro, para depois escurecer gradualmente.

- Creio que não tenhamos muito mais tempo agora. Logo cairá a noite – Ele prosseguiu, parecendo maravilhado com o espetáculo do poente – Indo direto ao ponto, você deveria saber que o arrependimento será parte importante na sua jornada. Não podemos treinar a vida antes de praticá-la, então cada ação significa um risco novo, que pode resultar em infinitas possibilidades. Se arrepender é apenas uma das respostas que obtemos – Procurando consolar a filha, ele disse – Sei que você se arrependeu de sua decisão no momento em que pôs os pés para fora de casa. Esteja em paz quanto a isto. Entendo bem, porque também carrego meus pesares.

Dito isto, ele se levantou. Olga permaneceu sentada por mais um momento, mas quando ouviu o apito do trem que se aproximava e vislumbrou a fumaça escura que se levantava além das árvores próximas, à esquerda da estação, também ficou de pé. Não acreditou quando o Sr. Dantas retirou do bolso um maço de cigarros e acendeu um deles, tragando profundamente e soltando a nuvem branca pelas narinas. Os dois se encararam por um instante e então começaram a rir. O som da alegria suavizou a dor enterrada no peito dela.

- Algumas coisas não mudam! É verdade! – a isto, mais uma onda de gargalhadas se seguiu.

Logo depois o barulho do trem aumentou consideravelmente. A máquina que puxava os vagões de passageiros apontou na extremidade esquerda da estação. Visto isso, Olga se aproximou do pai, olhou-o fixamente nos olhos, e lhe deu o mais caloroso abraço de que conseguia se lembrar. Foi acolhida nos braços firmes dele e as lágrimas irromperam novamente.

- Eu te amo, pai – a voz era trêmula, mas havia certeza no que dizia.

- Eu te amo, Olga!

Os dois corpos se soltaram. O Sr. Dantas caminhou até a porta do vagão que parara à sua frente e adentrou sem olhar para trás nenhuma única vez. A porta se fechou, e o trem da morte arrancou. Olga se sentou novamente, devastada por dentro. Assistiu os vagões percorrerem os trilhos sinuosos até perdê-los de vista e, quando isto aconteceu, voltou a admirar o poente em fogo. As brasas arderam no céu até a auréola solar ser tragada no horizonte e, após o púrpuro brilho celeste, a escuridão se fez presente. O silêncio absoluto a fez refletir na mais bela experiência de sua vida. Não muito tempo depois, a sonolência voltou e seus olhos fraquejaram.

- Acho que todos nós aprendemos uma lição esta tarde, não foi? – A voz de Elias, primeiro distante, depois próxima o bastante para Olga sentir seu hálito tocar-lhe a orelha direita.

- O que você fez? – Ela perguntou, abrindo vagarosamente os olhos. Achou que não teria forças sequer para erguê-los.

- Olga, está na hora. Temos de ir ou perderemos o sepultamento.

Ao ouvir a voz de Lorran, ela se levantou rapidamente. Estava deitada em um dos bancos do salão funerário. Sentiu uma breve vertigem ao se colocar de pé, olhando alarmada ao redor enquanto procurava por ele.

- Onde está Elias? Ele estava aqui neste exato momento e...

Olhou para fora. A noite já se manifestava através da chuva. Quanto tempo havia se passado desde que sonhara com seu pai vivo? Ainda podia sentir as faces aquecidas pelo sol, mas o luto prolongado e o sono privado podiam muito bem distorcer a realidade.

- Quem? Desculpe Olga, não o conheço. Mas podemos procurar por ele após o enterro, seja ele quem for.

- Mas... – Começara a protestar, mas já não tinha certeza se houve mesmo alguém com este nome naquela tarde. A confusão nos olhos de Lorran indicava que não houvera mesmo – Esquece. Vamos então.

Olhou pela última voz o rosto sem vida do pai. “Esteja em paz quanto a isto” ele dissera. Ela estava em paz agora. Sorria quando o caixão foi tapado, lacrando para sempre o corpo do Sr. Dantas ali dentro.

- Adeus! – Seus lábios bramiram num tom baixo.

Lá fora, um predador espreitava. Ele não sabia se sua boa ação fora uma cortesia – afinal, odiava a banalização da vida (e da morte) - ou se apenas brincava com aqueles a quem deveria predar. Ele virou as costas e foi em direção à caça daquela noite. Já não se importava com a garota a quem prestara um favor usando seus dons fantásticos, e se recusava terminantemente a acreditar que aquilo era reflexo da humanidade que um dia habitou seu coração.