FLOR DE AÇO (O CONCERTO DA MUSA)

Nostalgia: nove letras capazes de revelar o real significado da memória. Embora possuam diversas finalidades práticas e humanas, as recordações não passam de sofrimento tardio. A saudade é a derivação mais consistente e tangível dessa terrível verdade. Ora, quem de nós nunca desejou voltar no tempo para abraçar um ente querido que se foi? Quantas coisas deixaram de ser ditas unicamente porque achamos que teríamos outra oportunidade? Diante do inexorável poder do tempo, só nos restam momentos dos quais se deve extrair toda a alegria e a paixão.

O momento seguinte pode ser um pesadelo.

FLOR DE AÇO (O CONCERTO DA MUSA)

CONTO PERTENCENTE AO UNIVERSO LÚGUBRE ETERNIDADE

O bar está vazio. Três ou quatro errantes estão brincando de beber - dois deles alcançaram o estágio mais elevado do alcoolismo e permanecem caídos sobre as mesas de carvalho antigo. Atrás do balcão, o proprietário lê seu jornal diário, mantendo a rotina dos últimos cinquenta anos. E eu estou aqui, na mesa do canto esquerdo. Embora o cheiro da cachaça empesteie minhas narinas, não sinto vontade de tomar nada.

O palco escuro está corroído pelas erosões do tempo. A madeira está podre em vários pontos e as molduras já não servem mais para decorar o ambiente. A iluminação precária faz com que o salão esteja mergulhado em um nostálgico jogo de luz e sombras.

Minha musa, a senhora do meu coração e de meus pensamentos, repousa neste espaço carregado de angústia, amargura e abandono. Um verdadeiro jasmim plantado em terras devastadas. Ela está sentada em um banco alto, no centro do palco. Suas mãos enrugadas se apoiam no cabo metálico do microfone. Ela está usando um vestido de cetim estampado com flores vermelhas – tão vermelhas quanto o batom que tinge seus finos lábios opacos – e os cabelos dela, agora grisalhos, estão presos em um coque no alto da cabeça. Ela canta até os dias de hoje, e isso ainda me fascina. Quando a ouço, sinto vontade de chorar, mas não existem lágrimas para serem derramadas.

A voz dela, embora esteja rouca e fraca, ainda me parece suave como o canto do mais belo pássaro. Seus olhos perdidos vez ou outra se encontram com os meus, e quando isso acontece posso sentir a euforia tomando posse de mim. Ela está cantando a mesma música que cantou quando a vi pela primeira vez – a mesma música que tem cantado desde então: Noites de um Verão Solitário.

A acústica é ruim: o bar está caindo aos pedaços e as caixas de som não alcançam mais os decibéis que foram projetadas para emitir. Existe um piano no canto do palco, mas ninguém está tocando. O repertório vem de um disco que roda em uma vitrola antiga. Tudo parece muito velho agora, mas nem sempre fora assim. Eu fecho os olhos e posso me recordar das noites de glória no Bar Faenza.

AS NOITES DE GLÓRIA

Ainda me lembro do brilho de minha musa. Eu era algumas décadas mais jovem (não que minha idade tenha alguma relevância nesta história) e entrei no estabelecimento que ficava na esquina entre a Rua dos Macarantins e a Rua Faenza. Eu tinha sede, e queria um drink mais jovial naquela noite. Evidentemente, o bar estava lotado. As luzes brilhavam sob o forro de madeira e iluminavam a algazarra que era feita pelos jovens alcoólatras. Conversas e gargalhadas ecoavam pelo ambiente, e eu procurei não chamar atenção. Simplesmente entrei e me sentei em uma das mesas do canto esquerdo.

Algumas mulheres se aproximaram e tentaram conversar. Não lhes rendi muito assunto, mas permiti que se sentassem ao meu lado. Quando o garçom ofereceu Rum, aceitei de bom grado e pedi copos extras para minhas jovens acompanhantes. Eu não beberia aquilo. Jamais apreciei o gosto amargo das bebidas que trazem a perdição e o descontrole. Contudo, se quisesse permanecer sentado ali deveria consumir alguma coisa – ou pagar para pelo consumo de alguém. Assim o fiz.

Tudo parecia normal. Aquela noite não era diferente das anteriores: só mais uma caçada como outra qualquer. Mas então aconteceu algo que mudaria completamente o curso dos meus dias pelos anos seguintes. A cortina do palco se abriu. Pude ver um adolescente batendo suavemente nas teclas do piano de calda, e ele tocava muito bem, pois a melodia era formidável. Depois de um minuto ou dois de profunda apreciação sonora, ela surgiu nos fundos do palco.

Vestido de cetim vermelho em estampa floral. Cabelos loiros puxados para trás em um coque elegante. Lábios rubros tingidos de batom. Pele clara e sem marcas. Jovem e linda. A dama mais bela que já vira em toda minha existência. Ela parecia desfilar ao som do piano, e quando chegou ao centro do palco, segurou o microfone, fechou os olhos e cantou. A voz era tão agradável que os bêbados deixaram a farra de lado e se puseram a escutar a moça que se apresentava.

Em determinado momento, ela abriu os olhos e me encarou. Um formigamento instantâneo tomou conta de mim, e tive a impressão de estar corando (como se isso fosse possível!). Ela ganhou meu coração no momento em que sorriu e acenou em minha direção. Quando a música terminou, os boêmios militares e comerciantes que bebiam no local voltaram a gargalhar e a gritar. A jovem desceu do palco, coroada por longas salvas de palmas, e foi até o balcão para trocar algumas palavras com o proprietário do bar.

Me dirigi até o balcão. Eu ofereci uma bebida a ela e nós palestramos longamente. Seus olhos verdes pareciam esmeraldas lapidadas, e através de tais joias eu pude sentir que ela gostava de mim. Ante a essa forte atração eu quis beijá-la, mas seu perfume era tão inebriante que seria simplesmente impossível me conter. Se eu me aproximasse demais, acabaria com a beleza mais sublime que conheci na vida, e eu não queria isso. Percebendo a contradição eminente – querer e não poder, ter e não ter – resolvi me afastar.

Aquela mulher deveria ter sido minha presa naquela ocasião. Mas eu não queria destruir a musa. Nada, se não ela, havia despertado tamanho fascínio em mim. Então eu sabia que seria apenas um telespectador em sua vida.

O tempo passou, como sempre passa, e meu amor platônico (obviamente retribuído) se manteve intacto. Eu visitei o Bar Faenza todos os fins de semana desde então, porque sabia que ela estaria lá, e ela cantou a mesma música quase todas as vezes, porque sabia que eu estaria ouvindo. Em diversas ocasiões nós conversávamos, e a cada palavra trocada me sentia ainda mais apaixonado.

Eu vi as rugas nascerem e se tornarem mais evidentes no rosto daquela mulher. Assisti sua pele cedendo, sua juventude partindo e sua beleza se esvaindo. Seus olhos perdiam o brilho pouco a pouco, mas ela continuava lá, cantando para mim. Ela persistia como uma flor de aço em um jardim infértil. Confrontada com o espelho, ela me perguntou certa vez: “Porque você é tão jovem? Por Deus! Você parece nunca envelhecer!”. Eu não precisei responder. No fundo ela sabia a verdade, e sabia porque estávamos proibidos um para o outro.

DERRADEIRA ADMIRAÇÃO

Eu abro os olhos e me deparo com o local desbotado e escuro. Hoje não existe magia aqui. Os assentos estão vazios e ninguém faz algazarras ou pratica jogos de azar. Em tempos de outrora, a musa começava a cantar e, no auge de sua glória, contava com uma numerosa plateia de jovens bêbados e errantes. Mas não hoje. Só eu venho para ouvir a velha senhora do vestido de cetim.

Ela ainda me observa com olhos febris, e eu vejo dor em sua expressão. Eu nunca permiti que ela construísse uma história, porque simplesmente destruí todos os seus pretendentes. Não abri mão de minha donzela, mesmo sem poder tê-la para mim. Em meu martírio sádico e noturno, deixei o tempo destruir sua juventude e impedi que ela fosse verdadeiramente feliz. Impedi que ela envelhecesse ao lado de alguém que pudesse tocá-la sem lhe causar danos mortais. E mesmo agora, diante desse quadro de profunda desolação, sou egoísta o bastante para não me arrepender do que fiz, porque ela é minha senhora. Minha musa.

Mas ela está cansada. Sua face é a de alguém que viu a fama se perder no tempo e no espaço. Sua alegria – cantar – se extinguiu, e ninguém espera por ela no fim da noite além de mim, um mero admirador limitado a observação contida. Eu a transformei em um quadro, em uma moldura animada. A privei de tudo e de todos em nome de meu ego e de minha satisfação, e é hora de encerrar essa tortura.

Com profundo pesar, assisto a última performance da mulher que amo. Seguro seus braços pela primeira vez e a conduzo até o casebre onde ela vive sozinha. Consigo ler seus olhos turvos até os dias atuais, então percebo que ela está verdadeiramente grata. Ela sabe que o momento chegou, e certamente está feliz por deixar esta vida para trás.

Eu a repouso na velha cama. Trago um copo d’água, mas ela não tem sede. Eu também não tenho, mas preciso dar fim a dor daquela pobre alma. Meus lábios – eternamente jovens – tocam sua boca ressecada. Ela me encara pela última vez. Depois acena levemente com a cabeça, sorri e fecha os olhos para sempre. Eu me permito uma derradeira admiração por ela, mas não me detenho a dor em meu peito.

Minhas presas se projetam, afiadas e mortais. Eu me inclino, cravo os dentes no pescoço de minha dama – sinto a pele dela sendo perfurada – e roubo sua vida. Acho que pela primeira vez em muitas décadas agi em nome de algo maior que meu egoísmo. Sinto vontade de chorar, mas não existem lágrimas para serem derramadas.