Uma noite em claro

Miranda e eu nos mudamos para a casa nova quando Carlos fez seis meses de idade. Aliás, "nova" apenas em relação ao fato de que era a primeira vez que morávamos ali; a construção, de tijolos vermelhos, tinha mais de 80 anos e era geminada como suas congêneres, numa rua tranquila da antiga vila operária da fábrica de tecidos desativada, agora convertida num centro comercial e área de lazer, com parque, gramados, e até mesmo uma lagoa com patos. Um local realmente idílico, e nós o amamos quando vimos. Parecíamos ter tirado a sorte grande, e foi exatamente isso o que nosso senhorio nos disse, quando fomos pegar nossa via do contrato de um ano de locação.

- Vocês vão morar num local privilegiado, bem no meio da vila, e apenas 10 minutos distante da entrada principal do centro comercial... imaginem, poder ir e voltar do cinema à pé, mesmo tarde da noite, sem precisar preocupar-se com estacionamento ou a violência urbana...

Reconhecemos que era mesmo uma grande coisa.

- Como vocês sabem, - prosseguiu ele - a vila foi totalmente remodelada pela prefeitura, que depois a vendeu para investidores - como eu - e todas as unidades estão em estado de novas, inclusive quanto a parte elétrica e hidráulica.

Miranda tentou antecipar o que viria a seguir.

- Não se preocupe, sr. Robledo... tomaremos todo o cuidado para manter o seu imóvel em perfeito estado.

- Estou certo de que o farão - retrucou ele - mas o que eu queria saber é se são supersticiosos...

Eu e Miranda nos entreolhamos.

- Bem... não mais do que a média - respondi.

- Algum problema com a casa, sr. Robledo? - Indagou Miranda, preocupada. Afinal, estávamos com um bebê de colo.

O senhorio nos encarou, muito sério.

- Tenho que lhes advertir que correm boatos na vila de que esta casa... é assombrada.

- Sério? - Inquiri.

- É o que dizem... - declarou em tom evasivo. - Pessoalmente, eu nunca vi nem ouvi nada.

Pensei em perguntar quantas vezes ele dormira na casa, mas me contive. Provavelmente, nenhuma vez, seria a resposta.

- Mas... aconteceu alguma coisa grave no local... um assassinato... crime bárbaro... ou coisa parecida? - Questionou Miranda.

- Não... nada disso - tranquilizou-nos Robledo. - A casa era de uma família de operários, cujos últimos membros se mudaram daqui mais de 10 anos antes da fábrica fechar. Talvez um ou dois membros da família tenham morrido lá, mas de causas naturais. Não precisam ficar assustados.

- Mas alguém viu ou ouviu alguma coisa? - Insistiu Miranda.

- Tive um casal de inquilinos, alguns meses atrás, que disseram ter ouvido barulhos estranhos à noite. Nada conclusivo. As casas são geminadas e bem poderia ter sido algo no vizinho do lado...

- Assim sendo... - ponderou Miranda.

- Vamos ter que pagar pra ver - gracejei, para descontrair o ambiente tenso.

- É o que vocês estão fazendo - aquiesceu Robledo.

* * *

A casa era pequena: dois quartos contíguos, sala, cozinha, banheiro único, um pequeno corredor, área de serviço e um quintal de não mais de 30 m², dominado por uma mangueira. Era nosso primeiro dia ali após a mudança, e ao anoitecer, enquanto estávamos lanchando na sala, a conversa recaiu naturalmente sobre as afirmações de Robledo.

- Você acha que ele falou sério? - Questionou Miranda, segurando Carlos no colo.

- Parecia querer livrar-se da responsabilidade... - ponderei. - Para o caso de ouvirmos algo... incomum.

- Ouvirmos ou vermos... - Miranda girou a cabeça pela sala, que havíamos decorado com móveis rústicos, de forma acolhedora. - Ainda bem que a casa é pequena, tudo é muito perto...

- Sim... a porta do banheiro fica exatamente de frente para o nosso quarto, o quarto do Carlos está ao lado do nosso... e a cozinha fica no fim do corredor, com a área de serviço colada ao banheiro. Aproveitaram bem o espaço do terreno.

Terminamos de lanchar, e, como estávamos cansados, fui colocar Carlos para dormir em seu berço. Por volta das 21 h, nos recolhemos e fechei a porta do quarto - sem trancá-la. Havíamos instalado uma babá eletrônica junto ao berço, e o receptor ficava na mesinha de cabeceira do meu lado da cama. Adormecemos quase de imediato.

* * *

Acordei no escuro, com a sensação de que algo me despertara. Automaticamente, virei-me para a mesinha de cabeceira e olhei para o relógio digital: 3 da manhã. Estava tudo muito quieto, mas o LED indicador de ruído do receptor da babá estava aceso: Carlos havia despertado, com certeza. Levantei-me cautelosamente, calcei os chinelos, e pé ante pé, para não acordar Miranda, abri a porta do quarto. Ali havia um pouco de luz, que se filtrava pelo corredor através da janela da sala na extremidade oposta. À minha frente, a cozinha estava um breu, e eu precisava ir até lá e esquentar a mamadeira, que minha esposa deixara pronta na geladeira. Eram apenas uns poucos metros, e quando dei dois passos e passei em frente a porta do quarto de Carlos - que estava apenas encostada - ouvi um barulho familiar, mas que me gelou quase que instantaneamente o sangue: alguém estava usando a cadeira de amamentação, que possuía um balanço e fazia um suave rangido, amplificado pelo silêncio da madrugada. Nos meus ouvidos, também podia ouvir meu coração bater descompassado.

Num gesto que parece ter demorado horas para se concretizar, estendi a mão para a maçaneta de latão da porta e a empurrei vagarosamente. As folhas internas da janela, por trás do berço, estavam abertas, e a luz da rua entrava por ali, amortecida pelas cortinas de voil branco. Na penumbra reinante, para meu alívio, nada vi de anormal. Não havia ninguém sentado na poltrona de amamentação, e Carlos dormia placidamente em seu berço. Respirei fundo e voltei sobre meus passos, encostando a porta novamente e seguindo para a cozinha, onde finalmente, acendi a luz e fui esquentar a mamadeira. Com a luz da cozinha acesa, mamadeira na mão, rumei para o quarto de Carlos... e parei em frente a porta, um arrepio me subindo pela espinha: o rangido da poltrona de amamentação havia retornado.

Desta vez, não abri a porta. Saí correndo para o meu quarto e sacudi Miranda, que acordou assustada.

- O que foi? O que foi?

- Tem... tem alguma coisa... no quarto do Carlos... - gaguejei.

- Tem alguma coisa no quarto do Carlos e você deixou ele sozinho? - Foi a resposta irritada que ela me deu, tomando a mamadeira da minha mão e pulando em suas pantufas.

Saiu na frente e eu fui atrás dela, receoso. Miranda abriu a porta do quarto do bebê... e deu um grito. Mais do que depressa, apertei o interruptor, e ela estava ali, parada, tremendo de medo no meio do quarto. Carlos acordou com a luz incômoda, e imediatamente, começou a chorar.

Não havia ninguém na poltrona de amamentação.

- O que foi que você viu? - Perguntei, pegando o bebê no colo e sentindo a coragem retornar lentamente ao meu corpo.

- Tinha uma senhora de óculos... - sussurrou Miranda por fim, muito pálida - sentada na poltrona. Ela olhou pra mim quando abri a porta... e sorriu. Depois, desapareceu!

E começou a tremer. Abracei-a com o braço livre.

- Vamos pra cozinha - sugeri.

Fomos os três para lá e ela acendeu a luz. Sentamo-nos à mesa e eu comecei a dar a mamadeira de Carlos, que acabou se calando. Quando ele dormiu novamente, Miranda virou-se para mim e declarou:

- O Carlos não fica mais sozinho naquele quarto.

- O que vamos fazer? - Perguntei.

- À noite, você coloca o berço no nosso quarto.

Como isso iria dar muito trabalho, o bebê acabou mesmo dormindo conosco na cama de casal durante alguns dias. Pelo menos, até que eu comprasse um berço menor e desmontável, para que ele pudesse ficar ao lado da nossa cama.

Nunca mais nenhum de nós dormiu no quarto ao lado, e à noite, eu o trancava à chave.

Nenhum ruído ou aparição estranhos foram vistos, durante todo o restante da nossa estadia.

Ficamos até o fim do contrato de locação de um ano.

- [27-05-2018]