Amor temos de sobra

Quando o Sr. e a Sra. W. entraram em meu consultório, pude perceber como estavam tensos; não os culpo: eu também estaria, se tivesse que tomar uma decisão difícil como a deles.

- Bem, doutor... - principiou a falar o Sr. W., um jovem bem-apessoado na faixa dos 25 anos, terno de tweed cinza - viemos lhe trazer o resultado da análise do nosso genoma.

Dito isto, depositou dois envelopes brancos lacrados sobre a mesa.

- Vocês viram o laudo? - Indaguei, mãos cruzadas, sem tocar nos envelopes.

- Não, doutor. Não tivemos coragem - admitiu a Sra. W., talvez quatro ou cinco anos mais velha do que o marido, cabelo castanho cortado à altura dos ombros, vestido discreto verde-musgo.

Abri as mãos, encarando ora um, ora outro.

- Como lhes disse da primeira vez em que aqui estiveram, fazer a análise do genoma era mera formalidade. Ambas as famílias mantém um registro detalhado de suas árvores genealógicas, e a conclusão mais óbvia é que vocês estarão se arriscando se pretenderem ter filhos.

O Sr. W. encarou a esposa com doçura, e segurou a mão enluvada dela.

- Sempre foi nossa intenção termos filhos... apesar do nosso retrospecto genético desfavorável.

- Sim, doutor. Queremos muito ter nossos próprios filhos - afirmou a Sra. W. com convicção.

- Muito bem, que seja - afirmei, apanhando os envelopes e abrindo-os com uma espátula de aço. Coloquei os laudos abertos sobre a mesa, lado a lado, e fui direto para a conclusão. Ergui os olhos para os W., exibindo os papéis.

- Conforme havia lhes adiantado, a probabilidade de que ambos possuíssem o gene recessivo era maior do que 50%. Infelizmente, no caso da Sra. W., ambos os genes são recessivos... ou seja, para que não se manifestasse na descendência, o Sr. W. precisaria ter ao menos um dos dois pares de genes como dominante...

A Sra. W. baixou a cabeça, como se ouvir aquilo lhe pesasse fisicamente. O Sr. W., ainda segurando a mão dela, estava pálido.

- Felizmente, - prossegui - o Sr. W. possui um dos genes como dominante. Não é o melhor dos mundos, mas vocês têm 50% de probabilidade de gerar um filho sem... complicações.

A Sra. W. voltou a erguer a cabeça, como se uma sentença de morte houvesse sido comutada. Em seu rosto afilado passaram muitos sentimentos, que talvez não conseguisse expressar em palavras. O Sr. W. estava sorrindo, aliviado.

- Vocês sempre poderão realizar exames genéticos durante a gravidez, para verificar a probabilidade da criança ser recessiva - sugeri. - Atualmente, estes testes não são invasivos e podem ser realizados apenas com uma amostra de sangue da mãe. Se o feto for 100% recessivo, vocês terão a possibilidade de interromper a gravidez.

- Não - disse a Sra. W. com firmeza. - É bom saber que o teste existe, e eu o farei no momento certo, até para que nos preparemos para o inevitável, no caso da criança ser 100% recessiva. Mas não importa como venha, ela será sempre bem-vinda.

O Sr. W. balançou a cabeça afirmativamente.

- Eu e minha esposa conversamos muito sobre isso, doutor, antes mesmo de nos casarmos. Não haverá interrupção da gravidez, mesmo no caso de um exame genético desfavorável.

Guardei os laudos nos envelopes abertos.

- Quero parabenizá-los pela coragem, - declarei, devolvendo os envelopes ao Sr. W. - já que nem todos os que apresentam o seu histórico familiar decidem levar a gravidez de um recessivo a termo. Mas certamente já sabem que mesmo no pior dos casos, a criança nascerá inteiramente normal; ninguém se transforma em lobisomem antes da puberdade.

- [31-03-2019]