O Gato do Fim da Ponte

Eu me olho nos espelhos dos tempos e me perco nas memórias das contestações. Sou um ente participante dessa locomotiva desgovernada chamada vida urbana, uma besta vomitando chamas pelas narinas e tostando os costados dos peles vermelhas incrustrados nos prédios-caixão e arranha-céus dessa tribo civilizadamente hostil. Metido num paletó-estufa, num micro-ondas habitacional infestado de silvícolas, desnudo a vizinha no elevador e brinco com seu mais novo sem arredar meus olhos dos seios dela e da sua boca. Que me sorri, num sem-vergonhismo estrábico. Sabia-a separada. Antecipando prazeres devastadores, acompanho-a com o olhar quando ela entra no carro, deixando à mostra um par de pernas endoidecedores. Dia promete.

Motorista me espera. Carro brilhando, tudo muito limpo. Dia amarelo, sol nos vidros dos edifícios refletindo o ligeirismo dos caracteres das pessoas, manhã com cara de sono ainda. Meu escritório de advocacia no quarto andar de um edifício vetusto, mas uma sala imensa, que abriga meu gabinete e minha secretária que fala três idiomas e os estagiários e o restante causídico da folha de pagamento e ar central e um magote de Apple encimando as mesas luxuosas. Fruto parido perfeito de um sistema capitalista, estou há meses debruçado sobre um caso de corrupção de um auxiliar do governador, meu cliente, e que me intimara a defender seu protegido por uma fortuna e com um bônus rechonchudo se o livrasse da cadeia. Meus clientes todos eram bem fornidos de pecúnia e me bajulavam e erigiam pedestal pra mim nos convites pra inaugurações e essa coisas que odeio, mas às quais vou sempre, imaginem.

Sinto-me um homem anoitecido, meus limites clamando por amanheceres poéticos arrebatadores, as guelras da solidão aflando meus pensamentos tergiversentos e egoístas. Enquanto filosofo com o silêncio, dou-me conta de que já são dezoito horas e trinta minutos. E me dou conta de que há um silêncio de eternidade me rodeando. Tempo voou, nem lembro se almocei ou lanchei... O perfume da secretária flechava o ar e eu gostava. Mas, e aquele silêncio... Para onde tinham ido todos? Desliguei o Apple, pus o paletó, ela sempre me perguntava se poderia ir, se eu precisava de alguma coisa, essas coisas... Dirigi-me ao elevador, apertei térreo e ele chegou, vazio e esquisito. O vetusto prédio estava qual túmulo. Era eu que estava vazio e querelando com o tempo e a razão seria uma visão castrada do tal arrebatamento de que falam os crentes, aqueles tresloucados e fanáticos seres? Desde cedo optara por descrer em tudo, e virara um incréu rabugento.

Chego ao térreo e saio à rua, avenida. Silêncio, vazio, que nem um filme de Fritz Lang, as ruas e os prédios escuros me assustam. A ponte que liga uma avenida à outra também está escura, apenas o poste do meio aceso. Há uma viatura no lado norte de meu prédio. Passos apressados, conto três policiais, todos de preto, - um dentro da viatura -, que também é preta. Quer saber, acho que não dormi bem, ainda estou dormindo, isso tudo é um pesadelo gótico, preciso despertar. Boa noite. Que faz o senhor a estas horas por aqui? Cabra era um gigante. Que faço? O que está acontecendo, alguém pode me dizer? Tenho de explicar nada, o senhor que tem de explicar por que ainda está nas ruas. O outro se aproximou e o que estava dentro da viatura foi saindo com as mãos na cintura. Coisa tava ficando perigosa... Como todo mundo, eu trabalho. Sou advogado e meu escritório fica naquele prédio ali... Documentos, por favor. Tive vontade de dar ordem de prisão àquele ciclope, mas o bom senso me beliscou. Mostrei a carteira da OAB. Mostrou aos outros com desdém. “Adevogado” e desconhece as leis? Então não está sabendo do edito que nosso supremo presidente decretou há uns dois anos? Dois anos? O que diabos estava acontecendo, afinal? Minhas aulas de defesa pessoal e de boxe quase me levam a estapear a cara do insolente. Tou sabendo não, pode me dizer? Desafiei-o encarando-o nos olhos escondidos pelo capacete que lembrava um capacete nazista.

Nosso amado líder decretou que todas as atividades, incluindo aí educação, indústrias, comércio, comércio informal, estatais e que tais, devem para de funcionar, todos os dias, às dezesseis horas em ponto, para que todos fiquem em casa em atitude de oração, de vigília, de quietude plena, aguardando o grande dia do arrebatamento, que se dará em breve. Como nós não sabemos o dia, devemos nos preparar, assim estabeleceu nosso líder. O cabra mal acabou de falar e eu dei uma gargalhada que ecoou pelos prédios e pontes e rios escuros. Tentei me controlar mas não consegui. Tive espasmos. Levei uma chave de braços e ouvi o barulho de algemas se fechando. Jogaram-me que nem um boneco de pano e ligaram a sirene. As luzes da sirene eram brancas e iluminaram a ponte. Ainda sob os estertores do riso, vi os olhos de um gato, com focinho de cachorro, do tamanho de um tigre, os dentes à mostra, como que rindo daquilo tudo.

Matuto Versejador
Enviado por Matuto Versejador em 02/05/2019
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