Placenta

Ele não tinha muita coisa. Era domingo, e com ele só acordaram a gata preta e o vazio.

Não havia tomado coragem para sair da cama. Tinha bafo. Planejou inutilmente o que faria após botar os pés no chão gelado.

Antes de qualquer conclusão de si para si, uma boa amiga sua chamou-o para passear, ela gostaria de sua presença junto a dela numa visita a um sítio da boa família de seu marido.

Vendo então uma oportunidade para fugir daquela triste e fria morbidez de domingo, aceitou o convite. Era raro que saísse de casa para algo diferente das típicas idas às agropecuárias quando comprava ração para suas gatas, de fato seria um evento.

Não teria de fazer muito esforço, as gatas se fariam companhia, então não haviam preocupações quanto sua solidão. Além do mais, iria de carona com o casal amigo, não se esforçaria nada para além da simpatia que exercitaria para se ver digno do calor da família do sítio que heroicamente o resgatara do nojento fim do fim de semana.

Lavou porcamente os dentes, passou água na cara e quebrou sua reclusão em direção ao carro que o conduziria junto de seus amigos ao encontro do destino.

O caminho era estranhamente comum, após o passado evento que fora ligar o maldito carro e fazer com que funcionasse direito, haviam árvores, mato, até o centro de detenção provisória da cidade. Não sabia o que estaria mais preso, as raízes do chão ou os detentos na crueldade supostamente reflexiva que supostamente se dava como resposta de suas faltas e delitos supostamente naturais, não fez muita questão de filosofar sobre.

Vendo seu amigo, que sempre estava recluso, num estado pensativo e calado o marido tentou quebrar o clima dizendo-lhe que dentro de pouco estaria convocado para um serviço, que consistiria em segurar as patas de um porco que seria morto naquele dia.

Olhou para os olhos do amigo em resposta e não disse muito, como típico, e só acenou com a cabeça não dizendo nem que aprovava nem que desaprovava.

De fato em seu coração sua verdade era a mesma que mostrava em sua face vazia em primeiro momento, mas logo no decorrer daquele longo caminho praguejado daquelas monótonas e ainda assim conspícuas árvores, o tédio fez valer a reflexão.

Mataria um porco. Em verdade apenas ajudaria, porém, em seu coração outrora justiceiro em dias onde dispunha de muita energia, sabia que era o mesmo que matar ele mesmo o animal.

Aquele pensamento lhe tomaria a calma, aos poucos foi carregado por ele, como que numa correnteza. Tiraria uma vida. Pensou em recusar, mas, em seu íntimo, realmente não queria dispensar a expectativa do amigo, queria, estranhamente, considerando a proporção energética que tomaria o ato, que em natureza naquele dia, como em todos os últimos, lhe faltava, matar o porco.

Rapidamente conformado com seu estranho entusiasmo, passou a fantasiar o momento. Ele sabia que apenas seguraria o animal, mas será que o matariam como ouvira certa vez? Lhe calariam a vida com aço no peito? Lhe rasgariam a garganta e testemunhariam a luta do porco pela vida cujo grito de guerra seria dotado da mais estridente agonia?

Sentia algo estranho com esses pensamentos, ele ficava animado. Suas mãos sutilmente suavam e no seu coração, rápido como uma vespa, lhe passou um pequenino pensamento sobre culpa. Não foi digno de muita atenção para aquele gélido coração, mas como a viagem parecia estar tomando horas de seu ânimo, pôs-se a pensar sobre a vespa.

Não faria verdadeiramente mal ao porco, era datada a sua morte, o que em verdade o invejava, e além de qualquer pormenor, alimentaria alguma família, talvez algumas, supôs ele. Quase que decepcionado com a rápida resolução de sua culpa, via-se agora direcionando seus esforços psíquicos, pais da fantasia, novamente ao assassinato, assim estaria além de entretido, preparado.

Não teve tempo de cultivar seu sonho graças a chegada tão esperada ao sítio. Ele ficou feliz.

Saiu do carro e pouco se importou com as pessoas dentro do casebre da propriedade.

Cumprimentou apenas o cachorro caçador que estava amarrado num toco ao lado de carne crua. Feita a saudação a quem via como um dos poucos seres dignos de sua atenção presentes no momento, foi procurar o porco como se procurasse água quando se tem sede.

Seu amigo lhe mostrou o caminho e ele com o peito palpitando então se deparou com o animal, lindo, grande, gordo, rico, porém não muito mais que já morto. Chegaram atrasados para o assassínio.

Curiosamente não ficou decepcionado, aceitou o fato muito bem considerado aquele coração fedido e amargo, afinal poderia ainda assim ver os homens estranhos, os quais se prestavam fiel e pacientemente ao serviço, limparem o animal.

Deixou de lado o ódio da frustração e observou o interessante e divertido momento para aqueles homens. Contavam anedotas e apostavam o peso do porco enquanto tiravam a pele do bicho escaldando-o com água esquentada numa fogueira no chão.

A fumaça lhe faria sentir o fedor nas roupas, então foi observar o trabalho árduo dos homens por detrás da fogueira na direção contrária da fumaça. Convenientemente aquela locomoção lhe tirou da visão dos olhos mortos do porco, todavia levou-o à parte traseira da agora descoberta porca. Era uma fêmea.

Dada a enrolação da depilação da porca, foi visitar os filhotes do cão caçador. Eram pequenos, quase poderiam ser considerados uma graça, mas ele não considerava nada uma graça. Tinham as patas grandes, seriam monstros assim como o pai, mas enquanto simpáticos como ele e favoráveis aos pouco ensaiados afagos daquelas mãos magras e longas, cumprimentou-os por uns momentos.

Talvez tenha se perdido em algum pensamento, pois logo dali pouco tempo acabavam os homens a depilação e a manicure da porca. Lhe chamaram para ver e quiçá participar do derramamento das tripas da porca.

Se locomoveu relativamente rápido em direção ao cadáver, considerando seu ritmo quase insuportavelmente lento do cotidiano.

No local da mesa, que se apresentava como uma de autópsia, com o corpo morto da porca, começaria a limpeza agora dos miúdos ensacados naquela carne. A fogueira estava apagada, o único cheiro no ar era o das galinhas, excremento de galinha, provavelmente das mesmas que bicavam as unhas arrancadas da porca que foram desprezadas pelos homens e largadas no chão.

Um dos homens pegou então uma das melhores facas, amedrontava com aquele tamanho que possuía, era um homem forte, e então com a delicadeza muita para um açougueiro e pouca para um cirurgião fez a primeira incisão.

Começou lentamente por entre as patas dianteiras e puxava a faca em direção a si cortando o couro até o queixo do corpo. Passava repetidas vezes a faca amolada na grossa camada de gordura. O homem grande tirou então a língua e a garganta, os primeiros pedaços mortos fora do corpo que mostraria a todos. Ele estava atento como criança.

Começava então a abertura da barriga da porca. Com extremo cuidado, segundo o homem grande para não furar as tripas da porca. Alisava com o fio da faca aquela carne dura e ainda quente agora na direção contrária da primeira operação porém ainda seguindo sua trilha.

Aquele pedaço de ferro dançava entre as muitas, infinitas, tetas da porca até chegar no que seria a virilha se se tratasse de um humano.

Então veio um susto, pulava do corte o que ele achou que fossem tripas, já que não entendia muito de anatomia de porcas afinal.

Se pareciam com tripas realmente, eram azuladas e estavam na barriga, só poderiam ser tripas. Até que algo duro nesse segmento quente começou a aparecer. Numa passada experiência vira um rato nas tripas de uma cobra, parecia com aquilo. Mas porcos não comem ratos. Era uma dureza estranha que ele mesmo experimentou nas mãos, parecia cartilagem. Percebeu então que, nas vísceras expostas e quentes da porca que lhe tomavam as mãos, eram leitões.

A porca estava prenha, e agora ele sentia seus fetos mortos naquele saco quente e alongado.

Com o que ele conseguiu resgatar de compaixão e energia, impediu o homem grande de descartar todo aquele segmento aos urubus, onde dormiam os bebês.

Juntou a compaixão com a coragem, pegou uma faca com uma mão enquanto com a outra examinava e apalpava o manto azul visceral que os envolvia.

Era quente, por mais que a porca já estivesse morta. Se os bebês estivessem vivos eles saberiam tanto quanto ele o quão quente era o ventre de sua mãe, agora morta, estirada diante de homens estranhos.

Seguindo por todo órgão localizou onde havia perdido o primeiro contato com o corpo em formação e com a faca cortou todo tecido que o envolvia e o retirou da bolsa d’água, viera então prematuramente o primeiro leitão ao mundo.

Era preto igual a mãe quando viva, que agora ficara branca como couro cru de suíno cachaço, morta, assim como ele.

Com as mãos estranhamente firmes, cortou o cordão umbilical do leitão e repetiu a operação mais outras seis vezes.

Cortava aquilo que achava serem tripas, chegava à bolsa d’água e a estourava para chegar ao filhote, as vezes tendo que introduzir a mão toda no segmento que sentia como uma fina camada de tecido liso e mole como um véu. A água sempre era quente. E então cortava o cordão que sangrava com gosto, em montes, se pusesse a proporção ao pequeno corpo ao qual estava ligado.

Eram sete filhotes, quatro pretos, dois brancos e um manchado. Todos mortos como a mãe, como a faca, como a espingarda que atirou na cabeça da porca e em seu coração para sangrar. Ele fez questão de enterra-los.

Seu amigo simpatizou com a ideia e lhe fez o favor de cavar a cova.

Quando ele foi pegar os fetos numa procissão mortuária, só encontrou seis. Um dos homens estranhos havia sequestrado um deles.

Ele foi procurá-lo com uma pressa sem razão, como se estivesse indo salvar alguma vida em risco, vida essa que já estava há muito perdida e calada. Apesar da pressa, quando o encontrou era tarde demais para qualquer coisa. O homem estranho presenteou os filhotes do cão caçador como se desse um brinquedo novo.

Na boca deles o leitão parecia de pano, seu corpo morto era puxado de um lado para outro por animais não muito maiores que ele em meio a latidos agudos que vinham como comemoração e alegria por parte daqueles que o devorariam sem deixar sobrar nada. Absolutamente nada.

Os cães, bem dizer, eram tão cães quanto aquele leitão era porco, rasgaram aquele corpinho no meio com ajuda nenhuma senão de seus próprios instintos e compartilharam o banquete. Tão novos e teriam a experiência de se alimentarem de um porco inteiro

Não sentiu muito mais que uma leve decepção por não ter chego a tempo e ainda se deparar com a cena do banquete. Vira muitas vezes suas gatas matando e brincando com corpos de filhotes de pássaros e de calangos, além do mais, sabia que não poderia mudar a cabeça do homem estranho, não tinha força dialética pra isso. Então voltou para os irmãos do banquete.

Estavam tão mortos quanto antes, quanto sua mãe, mas agora nem tanto quanto seu irmão, que viveria nos cães para quanto tempo eles também vivessem.

Nesse ponto, quase como se tivessem se apossado do corpo dele e corrido pela cidade gastando toda e qualquer força de vontade que ainda lhe restava, ele recobrou seu estado frio.

Apagara a chama da compaixão, que teria virado uma das muitas pulgas atrás de sua orelha, iguais as dos cães que comeram o banquete, e voltaria a assombra-lo apenas dali alguns dias, era costumeiro.

Como se estivesse pagando uma dívida há muito agregada, enterrou finalmente os fetos para que voltassem ao solo.

Não conseguiu por muito tempo filosofar sobre sua nova experiência, pois sabia que metáfora nenhuma e esforço reflexivo nenhum poderiam traduzir aquelas imagens como ele achava que deveriam.

Crispim Brancatti
Enviado por Crispim Brancatti em 22/06/2020
Reeditado em 22/06/2020
Código do texto: T6984857
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