Branca

Era quatro ou cinco horas da tarde quando ela chegava. Com passos miúdos e ritmados terminava seu o seu desfile, chacoalhando a cabeça, e roçando-a na porteira de ferro, acompanhada pelo restante do rebanho.

Fascinação eu tinha por aquela novilha. De tão branca parecia tornar-se azul pelas tonalidades diferentes em seu pescoço. Nuvem ambulante. A bichinha não tinha sequer um carrapato pela boa saúde e gordura. Papai contara que branca era mansinha por ser cruzamento de nelore com gado da raça girolando.

Morávamos num sítio, que tinha um matadouro clandestino, onde, apesar da higiene, bons cuidados com os animais e ótimos equipamentos, o patrão não tinha licença para comercializar a carne. papai ordenhava vacas e cuidava do silo, além de auxiliar o patrão no manuseio do gado de corte. Havia a nelore líder que autorizava às outras a ceder à morte, após ficarem exaustas de tantas chicotadas. Uma espingarda winchester era usada nas madrugadas para matá-las.

Um tiro no meio da testa, e o animal caíam trêmulo, soltando apenas uma gota de sangue pela cabeça. Era doído de se ver.

Minha paixão pela novilha só aumentava. De tardezinha lá ia eu abraça-la e trançar os cabelos do rabo da bichinha. Tomava umas leves cabeçadas, e quando o sol começava a esfriar o dia, Branca descia com o bando para recolher-Se. Era uma amizade genuína e pontual, algo que sutilmente surgiu e arraigou-se no meu dia a dia. Mal eu podia saber o desfecho da minha alegria do fim da tarde...

Acordei num belo dia e apoiei-me no muro do matadouro... e para meu desespero a cabeça de Branca estava no diabólico latão azul. Reconheci-a na hora por aquelas gotículas azul neve bem no meio da testa. O patrão, num gesto solene, baixou o rosto e não ousou olhar-me. Deitei na cama e caí no choro. Meu pai ao ver meu estado exclamou:- É nisso que dá pegar amor nas coisas dos outros!

-É nisso que dá pegar amor nas coisas dos outros. Dessas palavras eu jamais esqueci. Depois da morte de Branca, ,passei a olhar os demais bichinhos da fazenda como uma leitura dinâmica.Respeita-os,e evitava ao máximo um apego possível. Apeguei-me a gatinha Nagasaki, batizei-a com este nome porque a mesma tinha cores parecidas com as do exército. Um amarelo com cinza que parecia um verde-militar. Meu apego cresceu com as coisas efêmeras. Com um besouro amigo, que morrendo, coloquei numa caixinha de fósforos e enterrei-o. Os pintinhos, que logo migravam com as mães. Passei a deixar os sentimentos ramificarem por somente aquilo que era meu. Por os demais eu tinha respeito.

A experiência da nelorinha refletiu muito em minha vida adulta. O fato de eu não criar amor demasiado pelo que é alheio me transformou em uma pessoa meio insensível para algumas coisas, e, rotulada como antissocial por muitos. Não foi só pelo caso da bezerra. Foram por muitos. Os meus amigos e familiares são poucos e selecionados, não porque sou melhor que ninguém, mas porque tenho cuidado. Não me apego à vida e as coisas das pessoas, e muito menos gosto de muita curiosidade com as minhas. Demoro, mas quando aconteço sou real e sincera. Encontrei tanto conforto em meu mundo que custo a abandoná-lo. Sou proprietária dele. Em minha porteira de ferro está uma nelore branca, que eu permito poucas pessoas brincarem.

Poeta de Borralho
Enviado por Poeta de Borralho em 06/09/2017
Reeditado em 25/09/2017
Código do texto: T6106259
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