GOLFINHO

Era uma vez, um robusto golfinho que vivia feliz e saltitante pelos longíncuos mares, indo além dos desconhecidos oceanos vastos. Dava rodopios e piruetas no ar denso da manhã até vir a noite fria. Quantos homens sonham um dia, quem sabe, experimentar desta energia elementar que faz todo o corpo agitar com o forte desejo de voar. A vida do golfinho é de uma intensa emoção, pois, para ele, o sentido de tudo é que nada tem sentido algum. Sendo assim, não se abatia facilmente ao nadar contra a corrente.

Nadava sempre sozinho. Era seu particular momento de equilíbrio, quando se sentia enfim tranquilo. Certo dia, admirava, boquiaberto, magníficos corais coloridos. Distraído com a beleza da natureza, esbarrou em uma áspera rede de pesca imensa. E ali ficou. E ali pensou. E de lá desejou sumir. Não se surpreendeu mais porque já sabia quem eram os culpados. E agora, estava lá totalmente enclausurado naquela velha rede pesqueira. Não havia meios para fugir dali com vida. Por isso, não encontrara os seus bons amigos em nenhuma parte. Eles foram pegos com a mesma estratégia covarde. Que bela arte selvagem! Não sumiram, nem me abandonaram. Nada disso. Malditos assassinos!

Agitou-se como uma serpente depois de dar o bote, fugitiva e ofensiva. A rede ameçava subir, paulatinamente. A hora da agonia havia de chegar. E estava próximo o bastante para poder sentir. Ele sabia disso. De alguma forma inexplicável compreendia. Mas, seu instinto de liberdade grunhia e ele implorava para sair dali. Ser privado de ser livre nunca seria um bom sinal e o pior certamente ainda estava por vir. Debatia-se, então, freneticamente em cima de cardumes empilhados. Ele e centenas de peixes amarrotados. A rede subia, subia... sem parar. Enfim, suspensos. Grosseiramente sufocados até o fim. Baixou, repentinamente, uma triste atmosfera assustadora, que crescia para todos os lados. Já não havia a flexível salgada água fria do mar que lhes fornecia oxigênio para respirar.

Aproximaram-se homens do navio mercante, comemorando a pesca como um feito épico. A rede completamente cheia, transbordava. Um dia de verdadeiro progresso econômico. Muito dinheiro no bolso. Que maravilha! E o olhar embaçado do boto assustado conseguia distinguir imagens ainda, distinguir os sorrisos sem vida. Essas pessoas não sentiam fome. Não estavam famintas. Não! Vidas seriam arrancadas em vão. Quer dizer, nada é em vão. De tudo se pode obter lucro. Tinham tanta ganância por dinheiro, que viam, mas continuavam cegos. Ah, o dinheiro! Esse verme traiçoeiro é uma invenção detestável. Responsável pela segregação entre as espécies. Responsável por trazer revoltas e repudio às diferenças. Com ele, todos nós assumimos a condição de inúteis homens-objetos. Caso algum problema seja detectado, pode-se ir ao mercado e trocar. Isto mesmo: simplesmente nos substituir. Pois sim, desde que nós- as pessoas civilizadas- fomos dispostos em organizadas prateleiras bem calculadas com vitrines padronizadas. Alguns são escravizados, outras traficados em pleno século XXI. Não é mais possível distinguir ninguém pois somos extremamente parecidos. As roupas ou os rostos podem mudar, mas na raiz de suas mentes está um tipo de engrenagem. Cabeças estreitamente fechadas impedem a fuga do espiríto em tempos embebidos de conhecimento e amor. Os sentimentos do mundo e os nossos valores são bobeiras infundáveis, que não dão lucro nem promoção no fim do mês. Sim, o golfinho entendia muito bem disso. Ele vislumbrou mais fundos horizontes impenetráveis da alma humana que qualquer outro ser jamais se propôs a ver. Tiraram-no daquela rede radiante, que para o golfinho era insignificante. Vários níqueis lhes renderiam. Quem sabe uma sopa de barbatanas para o Oriente ele serviria. Lançaram-no brutalmente ao cais. Como uma mera mercadoria. Sem o direito de permanecer vivendo, sem alma cá dentro ardendo. Sorriram-lhe uns rostos criminosos. Impregnados de um comum prazer por fazer alguém sofrer. Dois altos homens barbudos se aproximaram, um a um. Desembainharam facões pontudos e, com toda a força de um impulso, investiram contra o animal. O vermelho sangue hipinotizante respingou nos alvos uniformes importados. Reclamaram, porém continuaram. Mutilaram-no impetuosamente. Depois, lançaram ao mar o que não mais serviria. Enfim, não houve tempo sequer de ver o céu pela última vez. Sim, queridos, eu sei. Isso deveria ser mais uma linda historinha de cunho infantil. Eu tentei, juro. Uma fábula encantadora com invenções mil. Eu sei bem disso. O mundo das crianças é repleto de infinitos tons coloridos e divertidos que todos nele desejam se aprofundar. Bem quis que assim fosse. Mas não foi. Viver é como essa pequena história. É constantemente estar diante de infinitos obstáculos. São várias pedras no meio do caminho, que sempre vão querer apagar nosso brilho, nossa luz visível e invisível. Pois é isto que nós somos: luz. Cientificamente falando, somos resto de poeira de estrela, oriundos de nebulosas gigantescas. Por isso, é imprescindível manter-nos firmes. Enfrentar os medos é um passo fundamental, pois somente assim conseguiremos viver felizes e saltitantes como o nosso amigo golfinho, mesmo diante do caos. Estamos aqui, neste vago momento raro, no intuito de entender o porquê das coisas. Somos apenas grandes crianças curiosas. Por que cargas d'água coexistimos em um misterioso universo perdido no meio do nada ? Por que nós vivemos? Existirá mesmo um Deus ou será pura imaginação? Para que a vida orbita em um pequeno planeta entre estrelas luminosas e cometas, no espaço sideral? Por que se cultua, desde o princípio dos tempos, guerras e revoltas tais? Não há explicação mais clara ou direta. Nunca saberemos, meu caro. Enquanto nos foge o tempo certeiro ao vento, tentemos então compreender a nós mesmos. Acredito que não seja um desafio impossível. Buscar conhecer um pouco do universo que há em cada um de nós é entusiasmante. O ilimitado inconsciente de mentes mortais. Precisamos entender mais e mais, a cada dia. Faz parte da nossa natureza. Eis aí uma certeza considerável. Quando o nosso mundo interior está em harmonia com o meio, tudo o que nos rodeia transforma-se igualmente. A vida, caro leitor, é tão bela e singela, que mal percebemos. É preciso renunciar a seu próprio ego para tentar entender a essência do mundo. Que engenhosa criação, não é?! Não há fórmulas ou receitas prontas que nos ensinem a melhor maneira de viver na Terra. É como se tivéssemos sido lançados aleatoriamente em um único lugar. Mesmo assim, acredito que nesses bilhões e bilhões de anos, é toda essa magnífica imensidão que nos move. Um surpreendente enigma indecifrável mantém acesa a chama da esperança. Afinal, muitos de nós somos livres e felizes, só não percebemos ainda.

Isis do Vale
Enviado por Isis do Vale em 17/11/2017
Reeditado em 15/04/2018
Código do texto: T6174494
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