Diabruras III (3ª parte - Final)

Diabruras III

Maria se pôs a chorar e o padre o gritou da porta, mas Bento corria sem direção e secava as lágrimas que escorriam com as costas da mão.

O padre ficou preocupado, o menino era engenhoso e para sua paciência um fardo, mas jamais o vira naquele estado. Acomodou Maria e ligou para o pai dela do orelhão da esquina.

O homem corpulento mal tinha acordado, nem imaginava que Maria não estava no quarto ao lado. Vestiu as calças ao contrário e trocou os botões da camisa. Saiu de casa como um raio, balançando a globosa barriga.

Assim como ele, um pouco longe dali, a mãe de Bento recebia um bilhete pelas mãos de um pau mandado do padre, um tal de Davi. Já tinha feito o café e estava a escolher o feijão. Contudo, mediante a notícia, saiu furiosa com a correia na mão.

- Bento, seu moleque endiabrado. Ai se eu te pego! Vou lhe deixar torto e estrebuchando no chão.

É claro que ela não ia fazer isso! Adorava o menino, apenas dava voz à preocupação. Sabia que ele amava Maria, paixão de criança, mas era grande a devoção. Seu menino estava de coração partido e imaginava como devia ser sua solidão. Ia apressada para a igreja, com passos curtos - era pesada -, mas no caminho imaginava o que teria motivado aquela palhaçada. “Olha só, que vergonha! Como explicarei para o pai da Maria, aquele senhor gentil e afetuoso, que meu filho sequestrou a menina pra casar escondido lá na sacristia?”.

Chegou à igreja e entrou pela lateral. Estava afogueada e com os pés bem inchados, quando encontrou o padre, Maria e o pai dela entabulando uma convença sobre a tentativa do enlace matrimonial. Maria explicava sobre as suspeitas de Bento e que os dois não poderiam mais namorar, caso seus pais contraíssem o casamento. O homem e a mulher ficaram tão vermelhos que o padre constatou que as suspeitas de Bento bem que tinham base para aquele argumento.

Perguntou se o romance era sério, ao que os dois se entreolharam, deram as mãos e disseram que sim. Maria, lá no fundinho, ficou bem feliz e pensou: “- Bem que eu queria uma mãe nova pra mim”.

Em meio à novidade e ares de tamanha alegria, quase se esqueceram do menino fujão e do por que se encontravam na sacristia.

O padre chamou o tal do Davi e mais dois coroinhas que chegavam para a homilia de todos os dias, pedindo que esquecessem por um dia o serviço e ajudasse a procurar o menino pelas cercanias.

Tudo combinado, roteiro traçado e saíram um depois do outro. Apenas o padre ficou, encarregado de tomar conta da menina, pois já passavam das dez horas e perdido o horário da escola. Hoje também não haveria carne. Temporariamente o açougue estaria fechado, até que se resolvesse a celeuma do dia.

As horas iam passando sem nenhuma notícia. Procuraram daqui, procuraram dali e nada de Bento. Sua mãe, com pés inchados e alma abatida, fazia promessas a todos os santos para que o encontrasse bem e sem qualquer avaria. Já lhe bastava o coração machucado pela saudade do pai, falecido há tempos na volta de uma pescaria. Foi daí que lhe saltou a ideia, de que o garoto estava além das redondezas. De certo estaria em um casebre abandonado pelos pescadores depois da perda do amigo de ofício.

O rio era caudaloso e por demais perigoso para um homem sozinho, que dirá para um menino como Bento, esperto, mas muito franzino.

Partilhou de seus temores com os companheiros de busca e foram para o lugar que ficava um pouco distante dali, cerca de meia hora a pé. Com certeza seria pra lá que ele iria se um dia pensasse em sumir.

O coração estava descompassado e a sensação era bem pior que a dos pés inchados, mas uma mãe que se preze desconsidera qualquer obstáculo se seu rebento corre risco imediato. Foi à frente liderando o grupo. O tempo passava arrastado e a tarde caía, em breve estaria escuro.

Não trouxeram lanternas, ninguém pensava que a busca se alongaria e a angustia da chegada, mais e mais o coração da mãe se afligia. O açougueiro, que até então estava calado, se compadeceu da quase noiva e também ficou com o coração apertado. Imaginou se fosse com Maria, afinal, em breve, seriam como que irmãos, então a aflição dela também o afligia.

Percebendo a empatia, vinda do homem que a acompanhava, deu um sorriso discreto e sentiu-se amparada. Com Deus por eles, tudo daria certo e fez a última promessa, que ao fim desse imbróglio, daria uma festa.

A noite caiu e com ela os mosquitos. A mulher só chorava e os homens chamavam por Bento aos gritos. Já as margens do tal rio, avistaram ao longe o lume de uma vela. Seria o casebre? Seria Bento? Chegaram mais perto e olharam pela decadente janela.

Não havia ninguém lá dentro, só o cotoco da vela acesa sobre um caixote esquecido e a mãe em desespero gritava e chorava:

- O rio levou meu marido e agora também meu mininu!

Entretanto, mais a frente, Davi e os coroinhas gritaram numa só voz:

- Achamos ele, minha gente! Tá na beira do rio!

A mulher agoniada se apressou, estapeando os mosquitos. O açougueiro ia à frente se guiando pelos gritos.

Bento já voltava com Davi e os coroinhas. Tinha ido com uma vara mais ao longe ver se pescava umas piabinhas. Havia horas que tinha comido e o café do padre há muito tinha digerido.

- Como me acharam? Queria ser esquecido!

A mãe pegou sua orelha e deu duas voltas. Seria pouco pelo que havia sofrido. Porém a bronca deu lugar a um abraço e, nesse momento, tudo já estava esquecido. Bento estava em segurança, voltariam para casa e era o suficiente para o que havia pedido.

A volta foi bem mais lenta e todos permaneceram em silêncio. O relógio da matriz marcava dez horas da noite quando se despediram dos coroinhas e de Davi na praça. O açougueiro foi pegar Maria na Igreja e depois acompanhou Bento e sua mãe até em casa.

Bento entrou rápido, não ficou para ver a despedida, afinal eles eram a causa da sua dor. Do lado de fora, a mulher de formas generosas e o açougueiro gentil, trocaram juras de amor. Decidiram resolver logo as coisas, encerrando o episódio com uma festa, onde celebrariam a volta de Bento, a dívida com os santos e o noivado dos dois. A comemoração seria no sítio, lugar com mais espaço em que receberiam os amigos com muita carne pro churrasco, pinga do melhor alambique e mesinhas sobre o pequeno pasto.

No dia seguinte o vilarejo estava em polvorosa. A mais nova diabrura de Bento e o noivado do açougueiro correu como rastilho de pólvora. As beatas cochichavam e os bebuns da bodega também, coisa comum em qualquer cidade pequena, quiçá nas grandes também, mas o cheiro de festa no ar seria coisa mais bem vinda que a primavera ou a chegada do trem.

Bento foi pra escola macambúzio, não queria falar com ninguém e sequer olhou pra Maria. Todos estranharam a atitude e nem a “fessora” sabia ao certo o que havia. Certamente algo ocorrera no dia anterior, e se ligasse corretamente os pontos, concluiria que tinha a ver com a fuga de Bento e o noivado do açougueiro embriagado de amor.

O caso não tinha passado alheio aos olhos de Bento e muito menos da professora, que triste ao ver o jovem em tormento, decidiu chamar os pequenos para uma conversinha apaziguadora.

- Bento e Maria, quero saber o motivo desses olhares tristes e de tamanha apatia. No quê posso eu ajudar para lhes trazer de volta aquela gostosa alegria?

Sentados lado a lado, um não olhava pro outro e nenhuma palavra se ouvia. A imagem da professora era de desgosto e não tinha noção do que faria. No entanto Maria deu um suspiro e balbuciou umas palavras, mas foi tão baixinho que quase nada se entendia, ao que Bento pigarreou e começou a ladainha.

- Pode parar Maria, que a coisa não foi bem assim. Deixe que eu conto pra “fessora” o que aconteceu tim-tim por tim-tim. Sabe não “fessora”, que munido de flor e sentimento, pedi Maria em casamento em frente ao padre, bem na sacristia? Pois bem, ela me recusou, pisou no meu amor e então fugi à revelia. Não fiquei pra ouvir a homilia. O padre juntou o povo pra me caçar igual bandido, mas eu, esperto que sou, dei foi trabalho, me escondi no mato e fui parar na beira do rio. Infelizmente alta noite me acharam e cá estou, desde ontem, tomando pito.

Maria, indignada, cruzou os braços e deu-lhe as costas. A professora, contendo o riso, acenava para as demais crianças para que se mantivessem calmas e compostas.

- Veja bem, caro Bento, você é um menino inteligente e de certo que possui muitos talentos, mas gritar não trará alento e muito menos de Maria o consentimento. Vocês são bons amigos, desde algum tempo, e podemos tentar aqui algum entendimento.

Maria secava uma lágrima quando se voltou para a professora, clamando com seus olhinhos que ela fosse a interventora. A triste expressão da menina lhe tocou o coração e com palavras muito suaves tentou dar a Bento elucidação.

- Bento, és meu preferido, e por isso te chamo ao entendimento. Por mais que tenha afeto por Maria, crianças não contraem casamento. Estou sabendo do envolvimento de seus pais, foi por isso que tu recorreste a essa estratégia para que eles não se casem mais?

Bento, visivelmente chateado, sentiu que foi desmascarado e não havia mais o que esconder. Aproximando-se mais da professora, falou algo em seu ouvido que só ela poderia entender.

- Tenho medo da mudança, não sei se o pai dela é de confiança, para com minha mãe se casar. Caso se casem, vou ter uma família, a memória do meu pai será esquecida e com Maria não poderei namorar mais.

A professora sentiu que o imbróglio era profundo e, por todas as causas do mundo as crianças mereciam maior atenção. Demonstrou para Bento solidariedade e compreensão e prometeu que agiria com diligência em seu tormento para por um fim nessa situação. Antes, porém, promoveu que fizessem as pazes, pois não cabia o desenlace de amigos tão fiéis e companheiros até então. Bento e Maria decidiram no recreio ter uma conversa definitiva para selar a amizade ou acabarem de vez com o namoro perante a infantil sociedade.

Enquanto isso acontecia, a professora foi à diretoria para convocar os pais das crianças e o padre. Tinha a ideia de, naquela estranha confraria, estabelecer a calmaria com a ajuda da escola, de Deus e dos pais.

A sábia professora não poderia ter tomado atitude mais do que pertinente, pois os adultos, em seus arroubos, costumam tomar atitudes inconsequentes, quando desconsideram os sentimentos de seus pequenos inocentes, tratando-os como se não merecessem qualquer explicação. Esse tipo de coisa, no campo ou na cidade, costuma causar por dentro tanta infelicidade, que pode abalar a família e toda uma geração. Um pouco de conversa e consideração nunca fizeram mal a ninguém e podia poupar muito aborrecimento e decepção.

Rapidamente os visitantes chegaram e ficaram a par do acontecido. Depois de inspirados discursos, a professora e o padre ficaram satisfeitos e intuíram que a ignorância dos eleitos era apenas falta de aconselhamento e que tudo ia entrar nos eixos.

Chamaram as crianças e, entre outras coisas, explicaram que seriam uma grande e unida família. Bento teria um novo pai e Maria uma nova mãe e que o tal namoro nada mais era que um grande afeto de irmão com irmã, tendo em vista que nem sabiam o que era namorar além de andar de mãos dadas e o lanche um do outro carregar.

Ainda meio ressentido e tendo coisas a pensar, Bento fez as pazes com Maria e voltaram a conversar. Ambos se protegiam, as lições juntos faziam e tinham planos de onde queriam morar. Bento aprenderia cortar carne e Maria coisinhas de moça, quem sabe até cozinhar.

Duas semanas se passaram e o vilarejo agitado começou a se preparar. A fofoca era grande e o comércio ficou atento: costureiras cozendo, sapateiros lustrando, florista enfeitando e os alambiques a todo vapor para o que ia ser uma das maiores festas de casamento. A igreja decorada, praça enfeitada e coreto com banda vinda da capital pro arrasta-pé animar. A coisa cresceu por demais e a festinha no sítio estava esquecida lá atrás.

O dia havia chegado e todos, sem exceção, estavam por demais alvoroçados. Após os ritos, festejos, fogos e banda, muita carne e até pães de queijo, chegou a hora de jogar o bouquet e partir o bolo pro desfecho. As mais jovens postas à frente e as solteironas dando muxoxo mais atrás.

Foi um pega pra capá. Jovens e velhas rolando ao chão e das flores sequer restou o botão pra um pretendente avistar.

Enquanto isso Bento, todo empertigado em seu terninho, aguardava a um canto, mais quieto que um santo, observando a celeuma desenrolar. Na verdade estava ansioso, esperando a hora do bolo e no que isso ia dar.

O casal pediu aos presentes que atentassem para o momento solene e com isso a briga acabar. Os convidados se ajeitaram, tiraram a poeira dos sapatos, os vestido alisaram para o discurso aguardar.

Bento pulava d’um pé pro outro e Maria sentia que ali tinha coisa, mas estava tão linda de daminha, que preferiu ficar bem longe dele, junto à segurança das madrinhas e das outras moças.

Os nubentes de mãos unidas pegaram a espátula, e de baixo para cima, como convinha, deram a esperada cortada. Foi então que uma bombinha explodiu. Estava escondida no arranjo do bolo - de sete andares - e o estrago foi algo que jamais se viu. Voou pedaço pra todo lado e os bonequinhos de cima foram parar na tuba do trombone no coreto enfeitado. Os noivos ficaram todos emplastados: cabelos, sapatos, perucas, silicones, nada havia escapado, nem a charrete do casal, nem as tias velhas supostamente protegidas debaixo de um ombrelone.

Só um ser, em todo o vilarejo, podia ter armado tal façanha. Sim, Bento, que àquelas alturas estava fazendo seu testamento. Tinha se escafedido depois da explosão. Ninguém ficou ferido, mas a mãe tinha perdido o vestido e seu novo pai a compostura, no entanto a felicidade era tanta que valeu essa última diabrura.

Fim.

Rose Paz
Enviado por Rose Paz em 18/11/2018
Código do texto: T6505299
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