O Livro da Salvação

“Estereótipo”. Aprendi essa palavra no início desse ano. Acho a definição do dicionário muito ruim. Para ser sincero, nem precisa de muita explicação para entender essa palavra. Basta um sinônimo e você entende o que é; tipo.

Nós somos encaixados em tipos, especialmente no colégio. Você pode ser um popular, nerd, valentão, atleta, artista...

Mas, em minha opinião, isso não passa de uma besteira. Se pensar bem, ninguém tem um único talento. É verdade. Para quê se encaixar em algo assim? Não sei dizer o que sou. Acho que nem adultos sabem se definir, para ser sincero.

Uma das perguntas mais difíceis para eu responder é “qual super-poder você gostaria de ter?” Fico em dúvida, sempre, entre o vôo e a telepatia. Voar bem ao lado de um avião deve ser mágico. Mas, saber exatamente o que se passa dentro da cabeça de alguém? Tão fantástico quanto.

Meu irmão, Danilo, discorda de mim. Ele diz que você não precisa de telepatia para saber o que alguém está pensando. Basta ver a linguagem corporal dela e saberá tudo o que precisa. Nunca entendi muito bem o que isso significa.

Se bem que o poder do Danilo é legal também. Assim como eu, ele não se encaixa completamente num tipo. Ele é alto, gordinho e bom atleta. Como se não bastasse, tem notas altas, uma namorada inteligente e sempre tem compromisso com amigos no final de semana. O superpoder dele não é força, nem beleza ou inteligência. O grande talento do meu irmão era controlar o tempo. Mesmo com todas essas coisas para cuidar, Dani ainda tinha tempo para jogar videogame comigo, a única atividade que tínhamos em comum.

Somos diferentes. Não temos a mesma mãe. Sou mais escuro que ele, além de ser péssimo com qualquer atividade física, não ter muitos amigos e, óbvio, nenhuma namorada. Minhas notas eram boas, exceto em Matemática. Eu até gostava (não tenho ideia para saber o que sinto por ela. Sei que não é raiva) de uma garota tímida lá da sala, a Marcela, mas não tinha coragem de falar com ela.

Estudávamos no mesmo colégio. Danilo estudava de manhã, no segundo ano do Ensino Médio, enquanto eu começava o sexto ano do fundamental. Minhas aulas eram à tarde e ele ainda dava um jeito de me ver.

Os professores sempre diziam:

- Olhem para os alunos do Ensino Médio como exemplos e sigam!

Eu sabia bem que tinha uns que não eram flor que se cheirasse. Mas meu irmão era um cara legal e, por mais que não soubesse o motivo, eu queria ser igual ao Danilo.

No segundo mês das aulas, as Olimpíadas seriam realizadas. Uma semana sem aula. Enquanto eu estava feliz pelo fato de não ter que ir para a escola por uma semana, Danilo iria jogar vôlei e lutar no judô.

Por mim, eu não iria ver o Danilo nos Jogos. Entretanto, meu pai me obrigou a ir para o colégio estudar, já que minhas notas em matemática, para variar, iam de mal a pior.

Resolvi enrolar para estudar. Por isso, às 8h, lá estava eu, encolhido num canto da arquibancada, com frio e tentando ler o meu livro sobre mitologia grega. Era a vez do ano do meu irmão entrar. As torcidas do primeiro e terceiro ano se calaram.

Dizem que, antes de uma tempestade acontecer, o sol brilha mais forte. Nunca entendi aquilo até aquele momento.

Primeiro, uns dois caras seguravam uma espécie de folder com um lobo azul desenhado. Então, correndo, os alunos do segundo ano rasgaram no meio o papel. Meu irmão estava atrás de um menino estupidamente forte, com o rosto pintado e contorcido de fúria. Em cima das suas costas, Renata, a namorada de Danilo, tocava uma “vuvuzela”. Eles gritaram e começaram a puxar o canto de guerra, acompanhado dos restantes, que pintaram o rosto metade branco, metade azul.

Eu estava boquiaberto. Meu irmão parecia um guerreiro espartano um pouco fora de forma que marchava com seus colegas para a batalha final contra o seu inimigo. Aos meus olhos, Danilo estava forte, poderoso, intocável. Resumindo, invencível.

Uma vontade esquisita me fez ficar para assistir o primeiro jogo dele. Seria no vôlei: Segundo x Terceiro. A torcida azul rugia ao ver Danilo sacando. De longe, ele era o melhor jogador da quadra.

No meio do primeiro set, o jogo estava empatado; 14 a 14. A bola dos verdes estourou no bloqueio azul. Meu irmão correu com uma velocidade impressionante e alcançou a bola, jogando de volta para o meio da quadra. Algo prendeu o meu olhar no Danilo, ao invés da jogada.

Tudo aconteceu muito devagar. Dani parou, de costas para a quadra, e colocou as mãos nos joelhos. Então, cuspiu algo que parecia sangue. Meu herói, em seguida, caiu de cara no chão.

...

Não lembro bem o que aconteceu depois. Acho que tentei correr até o meu irmão, mas a multidão não deixou. Ou foram os médicos que não deixaram. Tudo foi tão estranho.

Minha primeira memória depois daquele caos todo era ver minha mãe, chorando, com a cabeça entre as pernas, enquanto papai a abraçava de lado. A namorada do meu irmão andava de um lado para o outro. Eu não entendia o que acontecia, mas sabia que era sério.

Queria ficar até o médico chegar, mas não me deixaram. Eu sempre quis ter uma conversa de adultos. Meu pai disse que aquilo não era lugar para criança ficar. Os pais da Renata me levaram para a casa deles. Comi biscoito, salgado, sorvete, bolo, mas não estavam tão gostosos assim. Peguei no sono no sofá, assistindo desenho.

Na manhã seguinte, visitei meu irmão. Ele estava pálido, fraco. Não parecia nada o herói do dia anterior. Papai e mamãe estavam abatidos.

Tive minha primeira conversa de adulto. Por mim, poderia ter sido a última.

Danilo, com a voz cansada, porém calma, segurou na minha mão e disse:

- Allan, eu estou com Leucemia. Sabe o que é isso?

Sim, sabia o que era. Foi a mesma coisa que matou a mãe do Danilo, a primeira esposa do papai.

...

Nunca desejei tanto ter um poder, especialmente o da cura. Eu sentia uma obrigação de ajudar o meu super-herói favorito, que nem um parceiro, tipo Batman e Robin. Mas, como enfrentar um vilão com um nome tão estranho e que nunca vi?

É, foi duro entender que não podia ajudar. Os médicos falavam de uma quimioterapia, mas eles não descartavam a possibilidade de uma cirurgia que tinha um nome muito complicado de entender. Óbvio que era coisa de adulto. Somente adultos são tão complicados assim.

Fiquei irritado, não vou negar. Quando eu não entendia algo, sempre me zangava.

Eu sentia minhas orelhas queimando o tempo todo e uma vontade incontrolável de gritar, chorar, socar, chutar e arranhar. Geralmente, perto do Danilo, estava tudo tranquilo. Mas com aquele vilão silencioso pairando, o desejo de fazer algo idiota não passava.

Um dia, Danilo me chamou para jogar videogame. Deitei na cama com ele. Meu irmão, que costumava ser tão bom quanto eu, perdia o tempo todo. Algo único acontecia ali; eu o carreguei a partida inteira.

Para mim, aquilo foi a gota d’água. A Leucemia simplesmente não podia ganhar do meu irmão até no videogame.

As lágrimas, que segurei por tanto tempo, escaparam. Tentei esconder, passando a mão nas bochechas e limpando a garganta. Em vão. Notei o quão certo meu irmão esteve. Sim, o corpo entrega o que você está pensando.

- O que houve, Allan?

- Você vai morrer?

Meu irmão sorriu. Não sei como um herói solta um sorriso enquanto o vilão o derrota, lentamente. Acho que é coragem. Ou loucura. Talvez seja deboche.

- Não se você me ajudar.

- Como eu posso te ajudar? – Por que ele não falou aquilo antes? Quem, em nome do todo poderoso Batman, demora três semanas para falar que tem uma salvação, um antídoto?

- Quero que você me faça um livro.

- Livro?

- Sim. Escreva um livro para mim.

- Mas, como isso vai te ajudar?

Meu irmão olhou para os lados, como se a Leucemia estivesse por perto. Depois, ele se aproximou de mim. Estava cansado, sem dúvidas.

- Qual o meu super poder, Allan?

- Ora, você controla o tempo. Se quiser, pode viajar para o passado ou para o futuro.

- Quê mais?

- Claramente, você pode frear a passagem do tempo, até parar. Ou acelerar se quiser.

- Bom. Allan, enquanto você escreve o livro, eu irei frear o tempo, sim?

- Mas, Dani, você está fraco! Você não pode gastar muita energia.

- Maninho, eu prometo que serei forte suficiente. E você?

- Eu também prometo.

Estiquei a mão e Danilo apertou. A promessa estava selada.

De imediato, meu irmão se concentrou. Fechou os olhos, abriu o sorriso, e perguntou:

- Está sentindo?

Não consegui responder. O tempo diminuiu consideravelmente. Somente uma palavra podia descrever aquilo:

- DE-MAIS!

...

Uma rotina se instalou em minha vida. Todo dia, eu acordava cedo, fazia o mais rapidamente possível meus deveres de casa. Então, pegava um caderno antigo que nunca usei para escrever a história. Por volta do almoço, parava para ir ao Colégio.

Na escola, eu também escrevia. Os horários mais fáceis para fazer isso eram Artes, Inglês, História e o recreio. Nas vezes que tentei em outras aulas, os professores acabavam me pegando e dando bronca.

O projeto acabou me afastando mais ainda dos meus colegas. Uns idiotas da minha sala, liderados pelo Lucas, começaram a pegar no meu pé. Davam tapinhas na minha cabeça, me chamavam de “autista”, “retardado” ou “esquisitão”. Odiava isso, mas eu tinha que ignorar. Era um sacrifício necessário para salvar meu irmão.

Fingir que não acontecia nada parecia ser uma especialidade dos outros. Ninguém se levantava para me apoiar. E, por um tempo, eu desenvolvi essa habilidade. Respirava fundo, contava até dez e, pronto, Lucas e seus trogloditas me esqueciam. Dava certo e melhor que revidar.

Até que um dia, não deu certo. Senti algo gelado no topo da minha cabeça. A água escorreu e caiu no meu caderno, onde eu escrevia o livro do meu irmão. Me virei e vi os idiotas rindo.

- Olhem, nem molhou o cabelo! – Lucas apontou para mim, rindo.

Antes que me segurasse, corri na direção deles e soltei toda a minha raiva. Se eu fosse o Hulk, os cinco estariam esmagados. Mas, não. Eu sou apenas o Allan. Fui derrubado e espancado facilmente.

Claro que alguém chegou para apartar a briga. Meus lábios estavam inchados e meu olho estava roxo. Meu pai olhava feio para mim, mas isso nem me constrangia, para ser sincero. O pior era ver os cinco intactos e saírem impunes.

Quando voltei para casa, notei que esqueci o caderno no colégio. A frustração e o desespero me abraçaram. Pela primeira vez, senti que meu irmão não estava diminuindo o tempo como antes. A situação começava a ficar critica.

No dia seguinte, procurei por todo o lado, mas não achei. Pedia aos céus pelo meu caderno. Estava prestes a desistir, quando senti uma mão no meu ombro. Quando me virei, vi que era a Marcela, a garota nerd e tímida da minha sala.

Ela não disse nada. Agradeci, aliviado, com um abraço.

- Você não sabe o quanto eu preciso dele.

Não achei que ela fosse responder. Não vou negar, me surpreendi ao ouvir a voz fininha dela:

- Gostei da história. – Não sabia o que responder. Marcela continuou falando. – Acho que você precisa revisar, para não deixar erros.

- Eu não sou tão bom em português.

- Se quiser, posso te ajudar.

...

Fizemos um trato. Eu escrevia a história enquanto Marcela revisava e digitava. Quando minha nova amiga soube que era para o meu irmão doente, dobrou os seus esforços; começou a trazer, toda semana, o nosso trabalho digitado. Não sei o porquê e nem como, mas ela acreditou na minha história.

Nos fins de semana, geralmente no sábado, nos reuníamos para uma revisão mais apurada. Agora eu já estava melhor em perceber os erros.

...

Os meses passaram e o livro foi ficando pronto. Infelizmente, Danilo estava ficando mais fraco a cada dia. A tal da quimio não fazia tanto efeito. Ele precisava de uma cirurgia. A sorte é que meu irmão aproximava-se, cada vez mais, do transplante de médula.

Um dia, cheguei da escola e minha mãe me disse que o Danilo havia sido internado, já que não tinha mais condições de ficar em casa. A batalha final chegava.

...

Foram sete meses escrevendo. Se não fosse Danilo, Marcela e eu não teríamos nem dois meses. O esforço deixou meu irmão magro, careca e pálido. Mas ele ainda estava vivo.

Quando minha amiga chegou na quinta-feira, com aquele pacote em mãos, senti que a luta valeu a pena.

- Abre, Allan.

- E se o Lucas...?

- Ele não vai tocar nisso. Eu te protejo.

Sorri, totalmente agradecido. Somente um amigo de verdade faria o que a Marcela fez por mim.

Com cuidado, abri o pacote e, lá estava; o Livro da Salvação. Minha amiga até desenhou uma capa. Do lado esquerdo, nosso herói partia em direção ao cetro , que estava no centro do desenho e salvaria a vila das garras do inimigo, com a lança azul em punhos. O vilão vermelho e verde imitava o movimento do herói. Parecia um choque de Titãs.

...

Danilo, mesmo cansado, cobrou o livro. A cirurgia estava marcada para o dia seguinte. Meus pais já haviam falado com Dani. Deixaríamos ele com a Renata. Depois, voltariam para não deixar meu irmão sozinho.

Entreguei o livro. A boca dele se abriu, emitindo um “UAU!” fraco.

- Vou ler hoje para ele. – A namorada do meu irmão pegou o livro e me deu um abraço.

- Cumpra sua parte, Dani. – Respondi.

Meu irmão esticou a mão e disse, fracamente:

- Vou cumprir.

...

A batalha final durou mais do que esperado. Pensei que sábado à noite eu iria ver o meu irmão, mas ele ainda estava lutando. Não sei o porquê, mas resolvi reler o meu livro, no computador, mesmo sabendo a história de cor e salteado. Acho que eu estava esperando papai e mamãe anunciarem o vencedor.

Pelas 3h da manhã, terminei o livro. O herói triunfou, assim como o sono me venceu.

...

Assim como no primeiro dia de preparação para esse confronto, não me lembrei quando e nem como cheguei no hospital. Sei que eu estava lá.

Usei, mais uma vez, os ensinamentos do meu irmão. A voz de Danilo ressoava na minha cabeça: “O seu corpo diz tudo!”

Papai chorava, mas era de alivio. Renata e mamãe se abraçavam, de comemoração.

Algumas horas depois, encontrei Danilo.

- Foi seu livro, irmão.

- Foi seu esforço. – Respondi, abraçando o meu irmão com todas as minhas forças.

- Gostou do final?

- Claro. Quem diria Olinad e a vila seriam salvos pelo Nalla? – Eu ri. – Sabe qual o seu poder, Allan?

A imaginação.

Givago Thimoti
Enviado por Givago Thimoti em 04/01/2019
Código do texto: T6543117
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