Perdera a conta das horas insones que acumulava. Já não sabia muito bem o que era dia, noite, madrugada. Há muito isto não fazia diferença. Tarjas negras à cabeceira da cama deixavam bem clara a escuridão de suas noites em claro. Num canto do quarto, a poltrona intocável. Sempre ali, naquele canto, com almofadas e uma boneca. Que ninguém mexesse. Coisa incompreensível. Principalmente para aquele a quem acostumara a chamar de marido.
Não compreendia o que havia naquela poltrona e naquela boneca, que mais pareciam objetos sagrados de adoração. E menos ainda, a razão pela qual a mulher passava longas horas olhando naquela direção. Algumas vezes teve a impressão de ouvi-la falando sozinha no quarto. Perguntava-se se estaria enlouquecendo de vez. Talvez aquela enorme quantidade de remédios para dormir. Melhor que tomasse os remédios, pensava. Pelo menos assim, havia sexo naquela casa. Depois dos remédios, quase desmaiada, ela não se recusava..
Para ela, apenas a sensação estranha de que algo acontecera pouco antes de desmaiar pelo efeito dos remédios. E os vestígios líquidos do acontecido no dia anterior. Não tinha coragem para dizer algo ou fazer perguntas. Sequer gostava de falar no assunto. Não queria ter certeza daquilo. Melhor pensar que tinha sonhado, apesar das provas materiais. Não queria ter certeza de muita coisa. Nem mesmo de estar viva. Suas poucas memórias felizes eram apenas uma vaga lembrança agora, e viravam fumaça, desapareciam numa neblina confusa e constante. E no canto do quarto, a menina na poltrona a olhava, agarrada à boneca e chorava. Nenhuma palavra. Só as lágrimas.
Mais de uma vez tentara abraçá-la e dar-lhe algum conforto. Também não conseguia e limitava-se a chorar junto. Quando chegava a hora de dormir, a dor no rosto da menina ficava ainda mais evidente. O som dos passos dele no corredor imprimiam um ar aterrorizado na menina. E ela percebia que, assim como aquela criança, dentro dela crescia um medo imenso e sem explicação. Apressava-se em engolir os remédios. A tarja preta escurecia tudo em seguida e ela se escondia na escuridão daquele sono que era quase uma morte.
De novo e sempre, a sensação de algo ter acontecido entre eles na noite anterior. E o choro incontido. Das duas.
Não sabia quanto tempo já durava isso. O medo era algo inexplicável, mas companheiro constante. Principalmente na presença dele. Em algum momento, soube que não conseguiria continuar. Contou a ele do medo que sentia e do desespero de não poder continuar. Pediu que se fosse. Que não voltasse mais. Ele ouviu, entre incrédulo e confuso. Não conseguia entender o que tinha demais naquelas noites. Coisas de casal, nada mais. O normal, o que se espera e ponto. Também não podia entender o medo que ela sentia dele. Ela estava visivelmente destruída. Mas irredutível. Que se fosse. Ele bateu a porta atrás de si, como se jamais fosse entender aquilo.
A mulher quedou-se parada e com o olhar fixo no nada por um longo tempo. Procurou a menina. Ela apenas sorriu, acenou e sumiu no meio de uma névoa distante.
Levantou-se, tirou a poltrona do quarto, abriu as janelas e vestiu um vestido florido, antigo, esquecido em algum lugar das memórias e desceu para ver as crianças.