Gran Circo de Las Américas

Apesar do nome pomposo, de grande o velho circo só tinha uma impagável dívida.

Antes de chegar ao nosso bairro, estivera armado na Baixada Fluminense, em Caxias, ocasião em que por descuido do tratador e falta de habilidade do motorista do caminhão para vencer os profundos buracos da estrada, fez com que a jaula fosse projetada ao chão, dando oportunidade ao casal de onças fugirem.

Ao ver a porta aberta, o macho espreguiçou-se e estendeu as garras, escancarou a boca e deu um belo urro de vitória pressentindo a liberdade, botou a cabeça para fora da jaula, olhou para um lado e o outro, deu um belo salto e saiu, sendo prontamente seguido por sua fiel companheira. Não é difícil de visualizar o pânico da população daquele subúrbio.

Na verdade, não se tratava de criaturas ferozes. Sempre viveram em cativeiro, foram treinadas para servirem de atração do circo. Aliás, era com grande orgulho que Manolo, o proprietário do Gran Circo, comentava da proeza de ter em cena os únicos animais adestrados, pois não era comum uma onça se deixar levar e ser transformada em criatura totalmente submissa aos estalos dos chicotes do domador, fazendo com que o casal, em total sincronia, pulasse, dançasse e atravessasse arcos incandescentes. Leões e tigres já eram quase banais em qualquer apresentação circense, agora, onça não era de ser encontrada em qualquer lugar - se gabava Manolo - mas ali, no seu circo, era a grande atração, a que mais chamava a atenção do público, muito aplaudida.

Mas por fatalidade, o macho em sua fuga atropelou uma mulher que ao cair ficou ferida, a bem da verdade, não pelo animal e sim pelo tombo. Fato esse, mal interpretado que levou o povo supor tratar-se de perigoso animal e saírem à caça do terrível predador, sendo tal grupo liderado por um bêbado que ao encurralar o animal à porta de uma casa, tentou pegá-lo à unha. A tragédia só não foi maior graças à pronta interferência do corpo de bombeiros, sendo ambos agarrados à força. Sendo o ébrio herói conduzido para longe do local e o estressado animal, agora com fama de feroz, para o Jardim Zoológico da cidade, o que causou uma grande perda no já desfalcado elenco do circo e imensa tristeza na fêmea, que veio a amargar solitários dias, após ter sido capturada. Perdera irremediavelmente seu companheiro de infortúnio, caindo em profunda depressão. Já não se alimentava, recusava-se a entrar em cena e rosnava ameaçadora para quem se aproximasse.

Como grande atração do decadente circo só restava agora o palhaço Picolé.

Nos velhos tempos era só o espetáculo começar e a platéia em delírio aplaudia, gargalhava das piadas, fazendo-o sentir-se feliz. Eram seus momentos de glória. Dava piruetas, cambalhotas. Hoje, desmotivado principalmente pelo pequeno público e também pelos anos que começava a pesar em seus ombros, já não era tão preciso em seus saltos mortais e suas piadas já não fluíam com facilidade.

Como no mundo da arte só há motivos para alegria, ninguém percebia que entre risos e brincadeiras, escondia-se naquela alma uma grande dor. Longe do picadeiro Picolé vivia no botequim mais próximo do circo, e lá se deixava ficar, como um simples cão de estimação que tivesse sido esquecido pelo dono, a secar garrafas de cachaça, sempre murmurando o nome de sua amada, que por sinal havia sido uma das grandes atrações do circo. Aninha a graciosa equilibrista de olhos verdes, sua paixão nunca declarada. Faltara-lhe coragem de confessar tal sentimento e certo dia, com tristeza mortal, viu a sua eleita trocar de circo em busca de nova oportunidade profissional, já não sentia prazer em se apresentar para pequenas platéias. E assim ia se consumindo o pobre palhaço, e no seu cotidiano passou a ser conhecido como Picolé de cachaça.

Com a decadência vieram juntos os trágicos cortes de despesas. O que fez com que toda companhia ficasse reduzida a uns poucos funcionários efetivos. Além de Picolé restaram: o tratador dos animais, dois cavalos mancos, uma zebra manchada pelo tempo e escasso tratamento, um casal de cães assustados, acostumados a exercerem suas funções ao compasso de uma alegre banda, tendo agora que se contentarem com o som de uma humilde dupla, composta de um velho bumbo e um desafinado clarinete, executados pelo anão Janjão e a mulher barbada, que acumulavam as funções de humoristas e músicos, e também, segundo boatos, não se separavam por protagonizarem um caso de amor.

E iam levando a vida, cada qual na sua função, sempre escondendo suas mágoas, seus traumas, suas frustrações.

Manolo por sua vez, já não dormia sossegado; a cada dia arrecadava menos em sua bilheteria o que fez com que dispensasse o trapezista, as graciosas bailarinas, logo em seguida, o mágico, o engolidor de fogo e facas. Já não havia aquelas manobras arriscadas no trapézio, que ocasionava um verdadeiro furacão no peito de cada espectador, trazendo ao estômago aquele aperto. E o público cada vez mais escasso, o que trazia grande preocupação ao outrora grande empresário, Manolo, este, por sua vez lançava toda culpa na perda da grande atração, a razão de seu orgulho, as onças amestradas. E se surpreendia vagando em pensamentos dos dias idos em que o público ia assistir ao grande espetáculo e aplaudiam com entusiasmo o grande feito dos felinos. Aquilo sim é que era atração e certeza de bilheteira próspera!

O treinador já não sabia o que fazer para recuperar o ânimo da tão deprimida onça que vivia em um canto da jaula, alheia ao que se passava ao seu redor. Já não servia de atração, seu abatimento fizera com que ficasse afastada das apresentações. Mas naquela tarde, acaso do destino, as coisas começaram a mudar para aquela pobre criatura que parecia totalmente irrecuperável. Mimoso, o encantador angorá da mulher barbada, escapando da vigilância de sua zelosa dona, saíra a passear como quem está pronto para o que der e vier ou, quem sabe, a procurar um meio de suicidar-se. O dengoso gato aproximou-se da jaula da onça, entrou e aproximando-se em demasia, foi surpreendido por uma enorme pata que o dominou por completo. Com uma luta de desigual proporção, o gato esforçava-se para livrar-se daquele suplício, debatia-se em completo desespero, enquanto que a onça parecia relaxar totalmente todos os seus músculos, em verdadeiro delírio de prazer em ter seus instintos felinos aflorados. Foram breves os miados do gato, pois com um golpe mais violento já não resistia. A onça, por sua vez, também não tinha mais nada a fazer, e já se preparava para devorar sua vítima quando um terrível grito de terror a tirou de suas pretensões. Era a mulher barbada que sentira falta da mascote e seguira em sua busca. Ao deparar com a cena, pôs-se a gritar por socorro sem, no entanto, se aproximar da fera que já se preparava para o tiro de misericórdia, levando o pobre animal até a boca.

Aquela refeição, após longo período de abstinência, trouxe certo conforto para aquela criatura que já encontrava ânimo até mesmo para rugir como se estivesse em plena floresta, seu habitat.

Os poucos moradores do circo eram os únicos a presenciarem aquela trágica cena, pois era dia de folga para a companhia e não havia qualquer estranho presente.

Foi o próprio Manolo que procurou consolar a Mulher Barbada pela fatalidade e perda irreparável. Com muita habilidade e convincente conversa prometeu providenciar um novo angorá para preencher a falta do mascote, pois aquele já estava em avançada idade mesmo para um gato, e se conseguisse escapar daquele acidente, por certo sairia muito lesionado, o que dificultaria sua existência. Após muitas lágrimas, não havia alternativa, a mulher aceitou a proposta e até arriscou um breve sorriso acrescido de uma emocionante frase: - Afinal não foi em vão que o meu Mimoso deu sua vida. Sua morte trouxe alegria para a pobre onça. Veja como mudou sua aparência! – Tal consolo e aceitação deixou a todos emocionados, principalmente a Janjão que já não sabia o que fazer para consolar a mulher que se deixou ser acariciada e conduzida por ele até sua tenda.

Manolo também por sua vez voltou a ter esperança ao ver o novo ânimo que tomava conta da sua querida onça. Viu nisso sua oportunidade de reabilitar a freqüência do público. Brotou em seu peito novo ardor em prosseguir o espetáculo. Embora restasse apenas a onça fêmea, faria com que sua atuação fosse clamorosa e, convenhamos, com aquele acidente fora descoberto um novo tipo de alimentação e recreação para o felino.

E foi assim que ficou instituído o fornecedor de alimento do insaciável animal, ou seja, o responsável pelo sumiço dos gatos da vizinhança. Não lhe faltaria ingresso em troca dos serviços prestados.

Laerte Creder Lopes
Enviado por Laerte Creder Lopes em 03/06/2008
Código do texto: T1017998
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