Alice

Alice sentia-se entediada. Começou a debulhar pensamentos remotos e a caminhar sem direção, até se deparar frente ao rio. Dirigia sempre para lá em tempos de maré baixa. Por que fazia isso? Não sabia. Ali tudo lhe dava tranqüilidade. As águas, em marcha lenta, misturavam-se com a sombra das folhas das árvores ribeirinhas. Aproximou-se bem perto de uma das embarcações atracadas e desamarrou aquela que mais lhe agradou. Deu um leve empurrão na barcaça e apressadamente embarcou-se nela. Acomodou-se na proa, desceu rio abaixo com auxílio de um remo curto. A canoa descia sem pressa e sem destino algum. Seguia o curso do rio. O vento soprava balançando a embarcação e Alice junto. Alguns minutos depois, encostou o remo, deitou-se no fundo da canoa e começou a fitar o firmamento rasgado de nuvens brancas e cinzas. Com elas, Alice imaginava todas as figuras que apareciam em sua mente: carneirinhos, pombos, peixes, árvores e até imagens sacras. Enquanto montava e pintava seus quadros o sono pegou-a desprevenida, transportando-a para um horizonte longínquo. Dormiu de verdade. Não percebeu, não sentiu o perfume das flores silvestres que impregnava o ar. O bater na água nas pedras, lá longe, também não percebeu. Não registrou a garça solitária, assustada com a passagem da canoa, à deriva.

Já era tarde quando Alice acordou. O sol havia sumido e por pouco ela não se mergulhou na água. Não sabia onde se encontrava e o seu medo aumentou quando percebeu o que estava acontecendo. Sinal de vivente, nenhum. Só as estrelas no céu lhe faziam companhia. A lua surgia redonda e paulatinamente foi dominando a escuridão. Mesmo assim o choro foi inevitável. A loucura cometida era imperdoável. Nunca poderia imaginar que a marulha da água se transformasse numa canção de ninar fazendo-a adormecer. Sentiu-se ridícula com vontade de mergulhar de cabeça, na água, até se afogar.

Alice era uma moça bonita e inteligente. Seu corpo escultural, afrodisíaco, atraía olhares maliciosos e até desejo de levá-la para a cama. Crescera no berço de uma família de costumes remotos, onde o pai era presença vazia, preocupava mais com seu baralho e com os amigos. Dificilmente havia diálogo e ela sempre baixava a cabeça, gesto herdado da mãe. Aprendeu a se proteger do assédio masculino. Com seus vinte e cinco anos, muitos deles dedicados aos estudos, pretendia agora, constituir família. Não tinha pressa, desejava ser amada realmente pelo primeiro homem que a possuísse. Mas, estava numa enroscada difícil. Precisava voltar para casa e rápido. Girou o remo para um lado e para outro várias vezes e o resultado não era o esperado. Nessa tarefa de fazer a barca subir o que conseguiu mesmo foi encostá-la na margem do rio.

“É melhor terra do que água”- pensou.

Com mãos trêmulas, amarrou a corda da canoa num galho de árvore e ficou a observar o lugar onde os raios de luar infiltravam sob as folhas. Não perder o controle era fundamental, precisava esperar o dia clarear. Sentou-se numa tora seca. Ela estava cansada, muito cansada. Precisava sentar-se. Ao apoiar num tronco de árvore caído ao chão, sentiu uma fisgada no dorso da mão seguida de uma dor ferrenha. Preocupou-se de verdade. Não viu sua agressora mas concluiu ser uma cascavel ao ouvir aquele chocalhar acerbo e nervoso. Com admirável presença de espírito tirou o soutien, amarrou o braço e apertou bem a atadura para evitar que o veneno caísse na corrente sangüínea e circulasse pelo seu corpo. Soube do perigo em que estava passando quando sentiu uma turvação nas vistas. Percebeu que a gambiarra feita no braço estava com o nó pouco apertado e ainda teve forças para dar um conserto na atadura. Já era tarde. Começou a ver tudo embaçado e em movimento de rotação. Perdia a consciência e acreditava estar morrendo naquela beirada de rio. Nenhum canoeiro a escutou quando ensaiou alguns gritos de desespero. Alucinava. As lembranças agrediam voltando-a num tempo que jamais deixou de viver: o canto dos pássaros na densa mata virgem, as águas do riacho límpida e cristalina, o rochedo quente onde gostava de pequeniquear com os irmãos, as borboletas pousando em sua mão carinhosa...

As forças foram-se desvanecendo... esmaecendo...

O semblante foi dominado pelo líquido peçonhento e o sorriso findado naquela aurora que se apontava além do horizonte.

Juraci de Oliveira

Pirapora MG

www.jurainverso.kit.net (texto ilustrado aqui)

Juraci Oliveira
Enviado por Juraci Oliveira em 21/01/2006
Código do texto: T101893