O oscilante 

 

O tempo passa e não fui hoje e nem na última quarta cumprir a minha hora atividade; fico angustiado porque sei que a cada falta o ponto é cortado e o dinheiro já minguado diminuiu mais ainda e não fecho nunca as minhas contas. Meus chefes, pois são muitos, já não aceitam mais as minhas justificativas nem mesmo meus atestados.  Ontem tive dor de cabeça, esta semana dor de barriga, amanhã o portão quebrou, ontem fui ao médico.  Meus chefes,  são muitos, um me observa, outro me repreende, outro carimba minha falta e o outro me chama atenção, outro me cobra os afazeres, outros comentam a minha distância. Os colegas me acham estranho, fechado,  estão todos a querer a minha cabeça, querem me mandar ao exílio, pois  sou uma  persona non grata. Confesso que quando cheguei fizeram festa, deram boas-vindas, foram amigáveis, mas aos poucos minha personalidade foi se revelando, recusava a fazer a oração diária, sempre inventava uma desculpa para não rezar, depois me viram com um livro de Nietzsche e correu o boato que eu era anticristo, depois que eu era ateu. Os colegas me chamavam para sair, tomar cerveja, jogar futebol, assistir ao jogo da seleção, dizia que ia, mas nunca ia, e aos poucos aqueles que ainda nutriam simpatia por mim começaram também a me desprezar, a se juntar aos meus chefes no intento de me tirar daquele lugar. Meu chefe me disse: "colega, a pontualidade e a assiduidade são fundamentais para a avaliação do seu desempenho”.  Disse-lhe que éramos explorados, que trabalhávamos muito e recebíamos pouco, que o trabalhador tem que ter consciência de que é um explorado, todo aquele texto de trabalhador consciente, confesso que conquistei uns dois marxistas, mais ainda assim não foi suficiente para limpar a minha "barra". Meu chefe imediato me disse que desse jeito eu vou perder o meu posto, pois não tem como me manter naquele lugar sem eu cumprir dois requisitos básicos: a assiduidade e pontualidade. Disse-lhe que minhas faltas são por conta de minhas constantes enxaquecas e que já procurei vários médicos e os mesmos não me deram um diagnóstico preciso das causas da dor e que me disseram que quando estivesse em crise  não fosse ao trabalho já que sou professor e não tenho como ministrar aulas com essa terrível dor e que chego “em cima da hora” porque não gosto das  orações que são feitas, pois aquilo me deprimia.  Depois desses diálogos passaram a me tratar com desdém, ver defeitos e imperfeições nos meus atos, uns comentavam "que figura estranha", outros diziam acho que faz "charminho"; ele é metido mesmo, e assim convivo com meus pares e dentro de mim se aloja um grave defeito de não me adaptar, me esforço para ser mais simpático,  mais leve, não ter esse ar carregado e passar a impressão que sou um eterno descontente; contudo valorizo o meu emprego, sei que poderia está desempregado e trabalho é assim mesmo, bate-se ponto, obedece-se a ordem do chefe e atura os colegas e não reclama do que faz. Mas o fato é que não consigo, não consigo mesmo amigo leitor, estar tão inserido, as instituições me aprisionam, por estes tempos me articulei com alguns colegas e montamos um chapa de oposição para concorrer às eleições para o sindicato da categoria, fizemos algumas reuniões e logo apareceu alguém que queria conduzir o processo autoritariamente; começamos a divergir e logo tentaram manobrar para que eu saísse da chapa, ainda bem que não ganhamos a eleição. Às vezes me vejo um personagem de Dostoiévski, às vezes um personagem de Kafka, uma angústia rasgada, visceral, uma oscilação de humor, às vezes esperança e otimismo, para logo em seguida mergulhar no mais absoluto  pessimismo. As razões de tantas oscilações,  altos e baixos pode ser explicadas por mim mesmo, mas não cabe nesse texto me delongar sobre as  supostas causas, mas posso assegurar talvez  Freud explica.   Estes dias estava a conversar com uma amiga de temperamento parecido com o meu e ela me falou do transtorno bipolar, me descreveu as características, impaciência, falta de concentração, altos e baixos,  confessos paciente e amigo leitor,  tenho a impressão  que sofro de tal transtorno e deveria procurar um profissional que me desse algum medicamento, ou fizesse um diagnóstico dessa minha inadaptabilidade.  Às vezes penso que vou enlouquecer, mas o pior de tudo é pensar, pensar na morte, lamber as feridas, alimentar frustrações, perder tempo em tentar se inserir no mundo, ora bolas, há  de convir que muitas vezes é  melhor deixar-se levar do que tentar conduzir o processo apenas na base do racional, tentar entender o mundo para viver e não do contrário; sim, mas estava falando mesmo do transtorno, da inadaptabilidade, do entendimento das coisas, 
não gostaria de embaralhar a conversa, mas você sabe que uma conversa leva a outra e o fato é que vivo nesse conflito, um conflito eterno entre eu e os outros, eu e as instituições, eu e meus medos, que talvez explique em parte essa minha inconstância, essa eterna insatisfação, entretanto , persiste em mim uma vontade libertária que me salva, um desejo de liberdade e porque não um exercício prático concreto da liberdade  que me leva a contrabalançar  esses dilemas e evitar o desespero e a loucura propriamente dita. (...)  

 
 
 

Labareda
Enviado por Labareda em 19/06/2008
Reeditado em 13/06/2014
Código do texto: T1042459
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