Viva la Résistance - Capítulo I

Viva la Résistance - Capítulo I

Rebeldia tem seu preço

Poucos possuem a coragem necessária para desbravar os mares de Esperanto, dominados pelos anões e seus barcos de guerra a vapor. O Império Anão decretou que toda a extensão d’água ao sul do continente de Sephirot é uma extensão de seu território; logo, totalmente sob suas leis e desmandos. Entre os que possuem culhões suficientes para encarar – e desrespeitar! – as autoridades imperiais estão os piratas, em grande parte filiados a LRR – Legião da Resistência Rebelde –, que combatem os anões sem descanso. As águas, antes domínio exclusivo do Império, passaram a ser contestadas. Essa é uma das poucas vitórias conseguidas pela organização em tantos anos de luta.

— Capitão! – brada o pequeno marujo halfling, correndo no convés a fartos passos. Sua face suada exibe uma expressão de alívio por debaixo de seus pesados óculos de proteção. – Conseguimos despistar os malditos! A tempestade parece ter nos ajudado.

— Aqueles vermes não sabem velejar nem em uma piscina, Villo. – gargalha o capitão, um homem de porte atlético, bigode e cavanhaque por fazer e pequenos fios prateados ousando aparecer em sua cabeleira negra bem cuidada.

— Pode ser... – ri o halfling. – Mas é melhor eu dar uma olhada no nosso "espólio" para verificar se não há nada de errado.

O marujo se despede e volta aos seus afazeres no compartimento de carga. Villo é uma antítese à imagem da raça halfling neste Mundo Morto; sua aparência e saúde aparentemente perfeitas (para um homem do mar, que se esclareça) afastam da mente de seus companheiros a lembrança de infecciosos ratos de esgoto, como são vistos os halflings em qualquer outra parte de Gandara. Vendo seu leal companheiro se retirar, o Capitão se concentra em dominar o leme em meio ao mar arredio. Sua concentração, porém, não tardaria a ser interrompida. Um jovem rapaz zanzava pelo convés enquanto coçava sua cabeça, preocupado. Suas roupas mais refinadas, aliadas à sua bela espada presa à cintura e sua proteção de couro, davam-lhe uma feição de espadachim. Ele se aproxima do Capitão e, sem cerimônias, inicia um diálogo.

— Acho que eles desistiram fácil demais, pai. – comenta.

— Estamos a trabalho, Henrique. – bufa o homem, suspirando em seguida. – Capitão Sergei! Como posso tentar recuperar um reino se nem consigo fazer meu filho aprender certas lições?

— Sim, "Capitão". – desdenha Henrique, levando as mãos à cintura e fazendo uma careta irônica. – Você bem que podia me chamar de El Rick também não? É como me conhecem por aí...

— Isso é pra suas negas! – gargalha mais uma vez o pai, sem afastar-se do leme. – Onde já se viu? "El Rick"?

— Tá, tá... pai. – interrompe Henrique, olhando com o canto dos olhos e afastando o cabelo de sua fronte. – Ainda acho que foi fácil demais.

— Não sei o que eles planejam. Estariam longe demais para nos seguir agora. – responde Sergei, reassumindo uma postura séria. – E quase não lutaram quando roubamos aquela máquina deles.

— Isso mesmo. Eles investiram pesado nesses F.O.D.A.W. para nos dar de mãos beijadas.

— Você deve estar preocupado com o esconderijo. Mas não vamos para lá ainda.

— Não? – indaga o duelista, arqueando a sobrancelha.

— Ainda temos alguns traseiros pra chutar. – foi a resposta de Sergei, girando o leme.

***

O abastado laboratório montado no compartimento de carga do imenso navio a vapor dos anões se tornava ainda maior quando ocupado pelas equipes de químicos e inventores gnomos ou goblins. O ambiente era escuro, com notória exceção de ocasionais faíscas e pequenas explosões, normalmente seguidas de tímidas comemorações ou decepções. Todo seu espaço era rodeado por estranhos mecanismos e dispositivos engenhosos, muito destes ligados entre si por grossos fios ordenados. Sentado em uma sala exclusiva e bem ornamentada – com várias plantas e projetos, claro. – estava um gnomo de ar soberbo. Seu robe era de uma brancura impecável, cor que já começava a predominar em seus cabelos bem aparados. Lia sem piscar os olhos um antigo e carcomido pergaminho, quando batem à porta. Assustado, o inventor enrola o velho papiro rapidamente e mete-o em um porta-pergaminho, jogando-o na gaveta.

— Entre. – diz ele com uma voz atipicamente grave e poderosa.

— Desculpe, senhor Durgio. – um jovem gnomo entra timidamente na sala. Com esforço, sua voz consegue escapar de suas entranhas. – Vim trazer-lhe os últimos relatórios das sete equipes escolhidas. Os modelos AK produzidos por elas já estão prontos, e com exceção de um, todos estão 100% funcionais.

— Capisco. Qual modelo apresenta falhas?

— É o AK-74, senhor. Ele apresenta traços e habilidades não-planejadas. – o assistente conclui o relatório, temendo a reação de seu superior.

— Tudo bem. Prepare os protótipos para os testes em trinta horas. – responde Durgio, aparentemente desinteressado, para a surpresa do púbere gnomo.

— Sim, senhor. – responde ele, andando cuidadosamente de volta a saída e fechando a porta atrás de si.

— Interessante. Muito interessante. – resmunga sozinho o velho inventor, de volta a sua solidão. – Nunca sonhei que poderia chegar a esse estágio quando estava desenvolvendo as unidades F.O.D.A.W...

***

Quando Sephirot ainda era um continente próspero e o apocalipse não tinha alcançado Gandara, humanos vivam em paz com as mais variadas raças. As relações de comércio e amizade eram aparentemente profundas, e os defeitos de cada povo e cultura eram postos de lado. Viviam em paz. Após a passagem de Mephisto, porém, as mais sangrentas guerras tiveram início. Linhagens inteiras, habituadas à harmonia, foram extintas. Durante a Guerra Civil de Esperanto houve a Grande Caçada, uma temporada de terror para os likans, o povo-animal. Donos de vasta sabedoria e poderes durante a Era Mágica, foram perseguidos por traição. O rei Delacroix I decretou recompensas por cada cabeça de likan, fomentando ainda mais a fúria ignorante dos humanos em miséria. O último likan vivo, reza a lenda, é o grande homem-lobo – ou lobisomem, como é chamado – que aterroriza insano cidades e aldeias de qualquer reino.

Poucos sabem, ou mesmo já ouviram falar, que algumas espécies de likan vivem escondidas em terras longínquas ou em cavernas. Muitos deles amaldiçoam o dia em que seus anciões patriarcas fizeram um pacto com os humanos, dividindo suas terras e riquezas. Outros, cientes da verdade, integram as fileiras da Legião Rebelde que busca livrar as hoje desérticas terras de Esperanto das mãos dos Delacroix e, conseqüentemente, do Império Anão. A Resistência, liderada pela antiga família real Cruz, acolhe estes membros de braços abertos, recordando o antigo pacto de aliança entre as raças.

A prova desta amizade pode ser vista correndo pelo convés da embarcação "O Amanhã Nunca Morre", conduzida pelo próprio Sergei Cruz, líder da LRR. Um pequeno garoto emerge da carga e corre velozmente entre os atarefados marujos, em direção ao leme. Poucos notariam que não é humano. Era sua sombra que, vez ou outra, denunciava sua verdadeira forma: um gato. O único poder mágico que restara aos likans é o de esconder sua verdadeira forma e assumir um disfarce. Todos da raça possuem essa habilidade, mas esta forma não pode ser escolhida: ela é determinada ao nascer de cada indivíduo. As lendas dizem que reflete seu próprio destino e personalidade.

O menino-gato chega ao lado do capitão, arfando de excitação. Parecia ser sua primeira vez a bordo. Ele diz:

— Villo disse que podemos ter problemas! – o likan respira, ajeitando a bandana rubra que cobria sua cabeça. – Ele encontrou uma coisa estranha naquela arma e...

— Estamos sendo seguidos! Eu sabia! – diz Henrique de sobressalto, pondo a mão no cabo da espada. – Temos que começar as manobras evasivas! Mas que... névoa é essa?

O horizonte começa a encher-se de neblina rapidamente. Seja o que for, aquilo assustou os marujos.

— Não temos névoa em Esperanto. – deduz rapidamente o Capitão Sergei. – Preparem-se para o pior!

— Eu sinto um cheiro de pólvora... e carvão queimado... – comenta o pequeno gato, seu nariz empinado no ar. – Ali!

— Não vejo nada! – brada o Capitão, começando a forçar a visão. – Espere... A bandeira real!

— Estão adiantados em duas horas! – vocifera Henrique. – Malditos Delacroix! Querem nos apanhar de surpresa!

— Rápido! – a voz de Sergei Cruz ressoa em toda embarcação, carregada de liderança. – Homens, preparem-se! Dex, ajude com os canhões! Henrique, diga ao halfling para aproveitar o que puder e jogar aquela maldita arma no mar!

— Mas nós acabamos de...

— Era uma armadilha! Você estava certo! – o Capitão não tinha tempo de argumentar. Exaltar o acerto de seu filho com certeza era a melhor forma de convencê-lo.

A névoa espalhava-se em direção ao Amanhã, como a tripulação havia apelidado o barco, alcançando-o em poucos segundos. Os homens pareciam abalados com aquela monção sobrenatural, mas o simples contemplar do Capitão distribuindo ordens e sacando sua espada desvanece o medo do coração daqueles marujos.

Consecutivos disparos de canhão são lançados em direção à névoa, aparentemente sem destino, mas o baque metálico e o barulho de madeira sendo esmagada e retorcida evidenciam o sucesso dos disparos. Os instintos daquele pequeno likan haviam lhes concedido o primeiro ataque. Poucos segundos após a primeira leva de disparos dos piratas rebeldes, a resposta vem. Pesadas balas de canhão perfuram e destroem partes do casco do Amanhã, levando consigo alguns homens incautos ou azarados o suficiente para serem apanhados no ataque.

Em pouco tempo, a embarcação inimiga surge da névoa ameaçadora. Todos se preparam para a abordagem. De um lado, soldados corsários a serviço da corrupta coroa esperantina; do outro, piratas revolucionários em busca de justiça. Eras atrás isso não faria sentido, mas agora o faz. Canhões disparam à queima-roupa, causando enormes estragos em ambas as embarcações.

Quando os dois navios se cruzam, gritos de guerra são ouvidos, cordas são atiradas, balas disparadas e espadas cruzadas. O êxtase de combate dos piratas é quase abalado pela visão próxima dos olhos dos inimigos. Eles faiscavam ódio e poder.

Um vulto esguio, vestido em um manto negro e esvoaçante, cruza em direção ao Amanhã, pousando próximo ao leme. El Rick duelava com um soldado, enquanto o Capitão preparava uma manobra de colisão com o inimigo, mas tem de largar o leme para esquivar-se da rápida adaga atirada pelo vulto.

— Pelos poderes em mim investidos pelo rei de Esperanto, eu declaro sua sentença, rebelde! – brada uma voz feminina e determinada vinda de dentro da pesada manta – Morte!

— Entre na fila, por favor... – brinca Sergei, encarando a inimiga. Seus olhos, entretanto, não brincavam.

— Pai, volte ao leme! Estamos nos afastando! – berra Henrique, chutando seu inábil adversário ao mar. – Eu cuido disso!

Sergei Cruz encara o filho seriamente e concorda com um meneio de cabeça. A estranha parece esperar por seu adversário.

— Humm... Você deve ser Henrique Cruz, non? – era a mulher que, entre risadas, revelava sua face. Um suntuoso rosto, encimado por rasos cabelos negros e coberto por uma extensa tatuagem surreal na face esquerda.

— Chega de conversa, mon chere... – responde Henrique, já em posição de combate. – Dou-lhe a vantagem do primeiro golpe.

— Você não vai alcançar a terra vivo, rebelde. – replica a mulher, sacando duas lâminas curtas e também assumindo postura de combate.

— Para o seu bem, você deve esperar que eu não alcance! – tal foi a resposta do pirata, com um libertino sorriso estampado em seu semblante.

***

Continua...

***

Esse conto - talvez nem seja mais um conto, quem sabe um romance... - tem como cenário um mundo de fantasia pós-apocalíptico com toques de steampunk. Nós os chamamos carinhosamente de Inferno Movido a Vapor. Quem tiver curiosidade acerca do cenário, acesse o site http://www.inominattus.com/?page_id=12 e conheça mais um pouco de nosso agradável Inferno!