Delírios de uma noite de verão

Finalmente conseguira sentar ao micro. Precisava escrever uma crônica e, até aquele momento, não tivera sossego. Primeiro foi o porteiro, seu Francisco, para lhe perguntar se desejava comprar os salgadinhos que a dona Clara, do 5º andar, estava vendendo. Depois, o telefone. Engano. Por precaução, tirara o interfone do gancho e arrancara o fio do telefone da parede. Não seria incomodado. Poderia escrever em paz.

Iniciara o terceiro parágrafo, quando um som irrompe o silêncio do lugar. Levou alguns segundo para entender que era a campainha da porta. Mas como? Se tirara o interfone do gancho e ninguém subia sem prévia autorização? Pasmo, encaminha-se para a porta. Pelo olho mágico vê que é uma mulher. Sem disfarçar a irritação, abre o pega-ladrão e pergunta pela fresta da porta:

- Pois não. O que deseja?

- A pizza que o senhor pediu.

- Eu não pedi pizza nenhuma.

- Eu sei.

- Quem é a senhora? Como foi que conseguiu subir? E que negócio de pizza é esse?

- Subir não foi difícil. Esperei o porteiro sair para abrir o portão da garagem e entrei com outros moradores.

- E a pizza?

- Ah... É só desculpa. Mas eu trouxe uma grande, de champignon, para ser bem realista.... O senhor quer? Está quentinha, delícia mesmo... Mas se não gostar de champignon posso buscar outra...

- Não quero pizza nenhuma. Tô fazendo regime...

- Mas o senhor não está tão gordo assim..

-Não, é o meu colesterol... Pera aí! Isso é uma forma nova de assalto ou a senhora é maluca?

- Não, de jeito nenhum, que isso! Deus me livre! Eu só queria falar com o senhor... E também não sou louca.

- O que a senhora quer afinal? Estou muito ocupado.

- Tenho até vergonha de dizer...

- Tá bom, ótimo! Quando perder a vergonha então a senhora volta. Outra hora, daqui há uns seis meses, tá certo? Agora não posso atender.

Fulo, volta ao computador. Pensa: "Se eu contar, ninguém vai acreditar...". Meneia a cabeça para espantar aquela doida do pensamento. Volta-se para a tela e o texto iniciado. Já conseguira escrever mais quatro parágrafos. Procurava, para manter o ritmo da narrativa, um gancho para abrir mais um diálogo, quando a campainha soa novamente.

Um estrondo em sua cabeça. "Não", pensa, "não pode ser. Essas coisas não acontecem duas vezes! Estou fantasiando". De novo a campainha ecoa pelo estúdio. Não era imaginação. Entre incrédulo e furioso, empurra a cadeira para trás e levanta-se, numa atitude mais que evidente de raiva incontida. Caminha, pisando duro. Passa pela sala até chegar à porta. Esbraveja:

- Quem é?

- São as flores que o senhor encomendou...

Reconheceu a voz da mulher. "Não, de novo, NÃO!", grita internamente. Olha pelo olho mágico para certificar-se de que não está em meio a um pesadelo. Constata. É a doida de horas antes. Dessa vez, soterrada sob uma braçada de flores do campo. O absurdo da cena amaina a raiva. Mais incrédulo que raivoso, abre o pega-ladrão.

- A senhora de novo?!

- Pois é ... Eu mesma...

- Como é que a senhora consegue entrar? Vou agora ligar pro síndico e reclamar do serviço da portaria. Isso aqui virou uma bagunça! Qualquer maluco sobe!

- Não faça isso, por favor! Vai prejudicar o seu Francisco, coitado! E ele é uma boa pessoa, pai de família, três filhos para criar... Emprego, o senhor sabe, está difícil...

-Até da vida pessoal do porteiro a senhora já sabe ?!

- É que ficamos amigos, conversamos um pouco depois que eu dei duas notas de R$ 100,00 para a caixinha de Natal...

- A senhora subornou o Francisco?! Além de louca é corruptora de porteiros também, é?!

- Nunca! Assim o senhor tá me ofendendo, viu?! Não posso admitir que fale assim comigo!!

- Pera aí! - grita, apoplético - Eu sou o incomodado e a senhora é que se sente ofendida?!

- O senhor já me chamou de maluca. Nem liguei, mas agora tá me ofendendo! Dizer que corrompo pessoas honestas, trabalhadores! Onde já se viu isso?! Não posso admitir! Eu fiz somente uma pequena doação para os funcionários...

- Pequena?! Duzentos paus pra pessoas que a senhora nem conhece? Corrupção mudou de nome é?

- Fiz de coração, viu? Eles merecem! Tanto trabalho pesado... Não tenho culpa se o seu Francisco ficou meu amigo depois disso...

- Quer saber?! A senhora é completamente louca! Quem cuida de maluco é psiquiatra!!! E eu sou escritor!!!!!! Quer me deixar em paz?!..

- Agora, além de me ofender, de me insultar , o senhor tá sendo muito grosseiro e mal educado! Nunca, nunca mesmo, pensei que senhor fosse assim... Que decepção, meu Deus..., que tristeza... E pensar que eu lhe admirava tanto....

- Tá, me desculpe. Não sou grosseiro normalmente, mas a senhora...

- Pode me chamar de você...

- Tá bom, você. Olha, já disse que está me atrapalhando! Estou no meio de um trabalho, tenho hora para entregar! Por favor, me deixa trabalhar em paz...

- É que eu sou sua fã e queria...

- Ahhh, agora entendi. Não, minha senhora, eu não dou autógrafos! Eu não sou o Gianecchini nem o Marcelo Anthony. Não sou artista de tv!!! Agora pode ir embora?!

Não espera pela resposta. Volta-se e caminha rapidamente para o estúdio. Quanto mais longe da porta, mais seguro estaria. Entra na cozinha para tomar um copo d'água. Enquanto bebe, uma pontinha de curiosidade, sorrateiramente, imiscui-se em seus pensamentos. "Quem diabos é essa mulher? Até que não é feia. Deve ter quantos anos? Uns 38, 40? Por quê será que cismou logo comigo? Será que é um tipo de maníaca, feito aquela mulher do filme? Como é mesmo o nome do filme, é com a Glen Close? Ahhh, que droga... melhor esquecer"...

Novamente balança a cabeça. Agora com mais força. Termina a água e encaminha-se para o micro. Antes mesmo de atravessar a sala, novamente aquele som intermitente invade o apartamento. Sem dúvidas. Não era sonho, não estava delirando, a campainha tocou mesmo e seguramente era a doida outra vez. Por garantia, voltou à cozinha e pegou uma faca de cortar carne. Prevenido vale por dois. Antes de abrir o pega-ladrão, pensa: "Qual será a história agora?”

- Eu já não lhe disse para me deixar em paz?! - diz, aos berros.

-Você não. Respeito é bom e eu gosto. Senhora. E não grita comigo!

-Mas você disse pra eu lhe chamar se vo...

-Já disse! É senhora. Não gosto de intimidades comigo. E pára de gritar!

-Então tá. - fala, com voz mais controlada -A senhora quer o quê agora?

- Pode me chamar de você. Não sou tão velha assim..

- Ai, meu Deus....Tá. A senhora, você, tu, sei lá... Por que não toca aí na porta do vizinho?

-O que o senhor...

- Você ...

-Tá, você... Pensa o quê? Não sou uma mulher inconveniente, não bato na porta de estranhos. Além do mais, ele não é escritor...

- Você..

-Senhora..

- Dá pra decidir se é você, senhora, tu, porra?

- Ah... Pode chamar do jeito que quiser, desde que não me ofenda... E não fala palavrão, que não gosto...

- Sinto muito. Escapou...

- Tudo bem, acontece..

- Mas, desculpa a pergunta, você tem algum tipo de tara por escritores?

-EU?! Tara?! Claro que não! Me respeite! O senhor tem?

-Eu?!, Nãoooooo!!!! Eu SOU escritor...

-Ih, é mesmo... mas o senhor tá´...

- Você..

- Certo. Você me deixou tão nervosa que até esqueci...

- A senhora nervosa, a senhora?!

- Já disse, pode me chamar de você. Senhora tá no Céu...

- É o hábito. Vamos fazer uma coisa, assim não dá. Parece conversa de maluco. Diz logo o que quer e me deixa trabalhar.

- Então tá. É que eu também escrevo e queria que o senhor...

- Você..

- Você lesse alguns dos meus textos...

- Mas eu não sou crítico literário. Procura na internet, tem vários sites que fazem isso...

-Eu sei, visitei até o seu site, lá tem...

-É. Então?

-Então... É que eu quero que VOCÊ leia...

- Eu? Mas por que eu?

- Porque sim, ora...

- Porque sim não é resposta.

- Pra mim é.

-Dá pra explicar a preferência?

- Eu já expliquei, sou sua fã...

-Tá. Vamos acabar logo com isso. Tem alguma coisa aí?

- Tenho.

-Passa para cá. Tá com telefone?

-Tá sim,. Telefone, e-mail, endereço..

-Basta o telefone. Agora pode ir embora.

-Tá. Eu vou. Mas você liga?

- Ligo.

- Promete?

- Juro.

-Mesmo? Posso confiar?

- Pode. Juro minha mãe mortinha! Agora, por favor, quer me deixar em PAZ!!!!

- Tá bom. Já vou. Obrigada, viu? Vou esperar seu telefonema.

- Pode esperar.

Alívio. Joga o envelope no sofá. "Por que não pensara nisso antes? A doida só queria mostrar uns textos... Textos... Devem ser todos desastrosos", rumina a caminho do estúdio, depois de deixar a faca de carne na cozinha. Já estava quase no computador quando pára. "O que será que a doida escreve?", pergunta-se. Indecisão. Sentar e terminar seu próprio texto ou ler as porcarias que a maluca deixou? A curiosidade vence. Volta à sala, senta-se no sofá, abre o envelope e começa a ler. Lê a primeira página. Vira-a rápido para ler a continuação na segunda. Devora mais essa e ... "Deus! Não é que a maluca escrevia mesmo?!" Corre para o interfone.

- Alô? Seu Francisco?

-Bom dia, seu Luis...

-Aquela mulher que veio aqui já foi embora? - pergunta, ofegante.

-Não. Ela tá aqui, sentada, Disse que ia esperar o senhor ler..

-E como ela sabia que eu ia ler?!

- E eu sei?

-Manda ela subir, diz que tô esperando...

-Tá certo...

A porta já estava escancarada quando a doida deixou o elevador. Agora sorridente, Luis espera pela doida no corredor. Precisava se desculpar com a mulher:

- Por que você não disse que escrevia tão...

Uma voz masculina interrompe o início da conversa. Impede que ela ouça o final da frase.

- Hei, Thereza... Fala comigo...

- Hãã...? - ela se volta para o dono daquela voz.

- Responde, vai... Você tá falando dormindo.... Tá sonhando, Tê !!! Acorda...

Ainda meio dormindo, Thereza, a Tê, senta na cama.

- Como?!

- É... Você tava falando um monte de besteira... Quem é esse Luis, heim? E esse Fancisco? Quer ter a gentileza de explicar?!

- Luis?! Você falou em Luis?! Oh meu Deus, o que você fez?! Por que me acordou?!

- É! Luis! Luis!!!!! LUIS!!!!!!! Você repetiu o nome dele um monte de vezes... Não vai me dizer quem ele é? Não acha que mereço alguma explicação?! Eu sabia que as coisas não iam bem entre nós, tinha alguma coisa errada... É esse Luis...

- Luis, né? Coisa errada entre a gente... É, você merece mesmo, querido, uma explicação... Claro que você merece...

-Então fala, estou preparado...

- Tá... Vou contar... Se veste primeiro. Chato falar dessas coisas com você assim...

- Certo, eu me visto. Mas vai falando, fala logo...

- Falo sim... Tá vestido? - pergunta depois de alguns minutos, já de pé, na porta do quarto.

- Então vem cá... - chama.

Vai empurrando o querido pelo apartamento até a porta. Abre e, com mais um empurrãozinnho, paixão está no corredor.

- Você pode me explicar o que está acontecendo aqui? Pirou? - indaga o fulano, mais parvo que de costume.

- Claro, bem, vou explicar... Devagar para você entender tudinho, ok? –reponde, quase aos gritos, sem ligar para os vizinhos que assistiam à cena. Ele, descalço, sem camisa, cinto por fechar - sapatos, paletó e gravata nas mãos. Ela, de camiseta. Sem calcinhas.

- Fala logo...

- Oh amorrrrrrrrzinho... Você acabou de arruinar A ÚNICA oportunidade que tive na VIDA de ser lida pelo LUIS FERNANDO VERÍSSIMO!!!! E você me acordou justamente quando ele ia falar comigo!!! Tá satisfeito, agora?

- RUA, FORA DAQUI!!!!!!! Chispa!!!! Some !!! Seu, seu, seu, seu empata-sonho!!!!

Bate a porta com estrondo, sem dó, na cara do querido, paixão, amorzinho, bem. E se pergunta, enquanto da janela observa o mor sair com o carro do estacionamento:

- Não teria sido mais definitivo defenestrá-lo do 18º andar?

Simone Salles
Enviado por Simone Salles em 20/04/2005
Código do texto: T12240