Sinfonia em Vermelho

Sinfonia em vermelho

[Este pequeno conto foi livremente inspirado na música "Be Careful With That Axe, Eugene", do Pink Floyd. Recomendo profundamente a audição desta durante a leitura, preferencialmente a versão do álbum 'Umma Gumma - Live Album'.]

ta-ta-TA-ta-TÁ ritmadamente fez o machado; estranha mania de fazer as coisas de maneira musical tinha Eugene. Cantarolava o solo em falsete, a base para o acompanhamento da percussão metal-madeira:: uÚÚúúuuu... deixando sumir, no vazio habitado apenas por árvores e insetos ignotos da floresta, o eco que formava um degradé sonoro através do espaço à sua volta.

Hoje, ao voltar para casa, sua esposa o estaria esperando com uma torta em comemoração aos seus vinte e sete anos de casamento.

Amava sua mulher como só ele sabia, e como não conseguiria expressar. Por isso desfechava ritmadamente seu machado contra os troncos das árvores, como se o encontro da lâmina com o súber fosse o encontro hipnotizante dos corpos seu e de sua esposa.

Desejava-a como só ele sabia, e como não conseguiria expressar. Por isso cantarolava o seu falsete: uÚÚúúuuu... como se fosse o expressar vocal involuntário do delírio de prazer de sua mulher.

Retornando de sua abstração quase que sexual, divisou que já havia o necessário em lenha para que pudesse voltar para casa e cambiar seus atos por seus pensamentos.

Rumou para sua cabana.

Amava sua mulher. Desejava-a. Agora.

Mesmo com a certeza de que chegaria em casa e a encontraria nos braços – e nas pernas e em outros lugares – do morador solitário da cabana vizinha, fortes braços, muito mais fortes que os seus. E beijando aqueles lábios mais carnudos do que os seus e olhando para aqueles lindos, jovens e másculos olhos castanhos de forma muito mais intensa do que a que olhava para os seus. E sendo possuída, com certeza, com muito mais vigor do que seria por ele. Mesmo apesar dessas certezas Eugene a amava e a desejava e queria cambiar seus atos por seus pensamentos. Agora.

Chegou ao umbral da porta da frente, de onde ouviu aquele gemido feminino tão conhecido, quase igual à pequena melodia que, com falsete, cantarolava: uÚÚúúuuu...

Seus pés atravessaram o assoalho de madeira da sala de estar com passos cuidadosamente ritmados: ta-ta-TA-ta-TÁ, de maneira a formar o acompanhamento dos gemidos orgásticos vindos do quarto, agora em mais de uma voz.

Amava-a. Desejava-a. E queria cambiar seus atos por seus pensamentos. Agora.

Ganhou a sala e o corredor que levava ao quarto: ritmadamente.

Empunhou seu machado e ficou alguns segundos deliciando-se com a harmonia formada pelas vozes que vinham do quarto em uníssono.

Entrou.

Amava-a. Desejava-a. Desesperadamente. Musicalmente. E iria agora cambiar seus atos por seus pensamentos.

ta-ta-Ta-ta-TÁ: desferiu o primeiro golpe contra o tronco do jovem amante que se encontrava sobre sua esposa.

ta-ta-Ta-ta-TÁ: e sem entender ao certo o por quê, a melodia que produziam se alterou: AAAHHH!!!

Ele era apenas o acompanhamento e se a melodia muda, a percussão também deve mudar: ta-ta-ta-TÁ, era quatro por quatro: “AAAHHH!!!, AAAHHH!!!” continuaram.

E ele ousou tentar encaixar a sua melodia também, e cantarolou: uÚÚúúuuu...

O resultado artístico era divino, tanto que começou a enxergar as cores de forma mais viva, principalmente o vermelho, que insistia em sobrepujar as outras cores da sua visão.

“ta-ta-ta-TÁ: AAAHHH!!!” em vermelho, e cor-de-rosa e os cabelos loiros de sua mulher e os cabelos loiros do amante ritmadamente sendo lançados ao ar que era vermelho assim como o machado que batia na madeira da percussão sobre o cantarolar uÚÚúúuuu que pairava sobre o todo do quarto e da cabana e da torta e dos vinte e sete anos de lenha queimada por suas mãos não tão fortes quanto a do jovem amante com olhos saltados e dentro e fora das órbitas e dentro e fora de sua mulher torta e vermelha sobre a cama de madeira de lenha que percutia os corpos dos amantes agora quase tão rijos quanto o seu que era de madeira e carne boa para percussão vermelha e em uma melodia ousada de mãos e de pés e de barrigas e costas abertas quatro por quatro e de costelas agora visíveis e mais brancas que as suas sob o ritmo do machado ta-ta-ta-TÁ em quatro por quatro e em valsas e em compassos que não conseguia mais acompanhar com os gritos vermelhos de AAAHHH estagnados no ar estagnado e amante não tão amante quanto aquele que desfere o machado e que percebe que a melodia foi interrompida.

“Não... Nãããããão!!!” - gritou Eugene desesperado: “não percebem que a sinfonia não pode parar!!??”

E desferiu, inutilmente, tentando arrancar mais alguns ainda que poucos suspiros de música, mais golpes contra os corpos sobre a cama – se é que se podiam chamar de corpos o amontoado informe de carne e sangue e entranhas que ali se encontrava.

Amava-a. Desejava-a. E queria novamente cambiar seus atos por seus pensamentos.

Chorou. A música havia acabado, e nada que lhe dissessem poderia ser pior.

Tentou cantarolar e realizar o acompanhamento contra as paredes de madeira da cabana, mas não era a mesma coisa. Sua mulher e o vizinho solitário haviam desempenhado um papel extraordinário, contribuindo de forma vital para a peça, e o fizeram de forma a se tornarem dignos de qualquer prêmio artístico que o homem possa conceber.

Passou alguns minutos sentado no chão, introspecto, desolado com a saudade que sabia, não poderia nunca mais ser satisfeita, da música, das vozes alteradas e do tom predominantemente vermelho voando em várias direções e formas pelo ar.

Ouviu um motor de carro.

Como pudera se esquecer, era o seu filho que havia ficado de visitá-los nesta data comemorativa e que traria consigo sua noiva.

Amava-os. Desejava-os. Como realmente não conseguiria expressar e queria agora cabiar seus atos por seus pensamentos.

Levantou-se, empunhou o machado e saiu andando ritmadamente através do assoalho de madeira enquanto abria um sorriso de sincera felicidade, pois sabia que ali, do lado de fora da cabana, dentro do carro, esperando por ele, havia mais música.

Gravor di Saint-Danielt, Florianópolis, 26 de setembro de 2008.

[Livremente inspirado na música "Be Careful With That Axe, Eugene", do Pink Floyd. Recomendo a audição desta durante a leitura, preferencialmente a versão do álbum 'Umma Gumma - Live Album'.]

Gravor di Saint Danielt
Enviado por Gravor di Saint Danielt em 26/10/2008
Código do texto: T1248444
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