O velório

A morte ronda a existência dos homens qual uma nuvem negra e ameaçadora, insinuando uma tempestade, paira sobre os brotos incipientes nas lavouras. Por isso, fugir dela, enganá-la, tangenciá-la, com a esperança de escapar de suas inevitáveis garras, tem sido tarefa que homem algum no mundo real logrou êxito ao empreendê-la. Aos condenados à morte, imaginar ser possível retardar o momento em que a matéria será entregue ao banquete dos vermes é um frágil consolo.

João Augusto de Oliveira Albuquerque, nascido e crescido no bairro da Jaderlândia, em Castanhal, cidade do Estado do Pará, conhecia muito bem todos os assuntos ligados à morte. Era um apaixonado pelo tema. Colecionava tudo que dissesse respeito: objetos, livros, filmes, casos reais e inusitados ligados à extinção da vida. Conhecia todos os episódios envolvendo a luta dos homens contra a morte, desde o clássico caso de Sísifo até a mais hodierna providência dos ricos de entregar seus corpos ao congelamento a baixíssimas temperaturas, convencidos, em vida, que a ciência caminha célere rumo à descoberta de como devolver a vida aos que dela, por doenças hoje incuráveis, foram privados.

Quem vasculhasse os pertences de João Augusto encontraria um farto repertório de materiais que ele, durante seus setenta e dois anos de vida, reuniu, uns mais outros menos, ligados ao assunto que ocupara sua mente desde o dia em que seu vizinho, Basílio, um crente, morreu depois de cair do terceiro andar de um prédio em construção, em plena sexta-feira santa. Ele foi ao velório mais por curiosidade do que por um ato de fé e piedade cristã. E, na sala da casa, onde alguns amigos, a esposa e quatro filhos, muito lamentavam a partida de seu ente querido, o que mais impressionou a mente de João Augusto, à época com oito anos de idade, foi a visão, súbita e chocante, do rosto desfigurado do Sr. Basílio, aliada aos gritos desesperados da esposa: Ele não era assim...ele não era assim!

A casa de João Augusto era muito simples. Dois quartos, uma sala de estar, uma cozinha e um banheiro. Casado e sem filhos, fazia de escritório o quarto menor. Escritório por assim dizer, já que não era empresário ou qualquer coisa parecida que dele exigisse um espaço adequado para reuniões ou elaboração de relatórios e outras providências típicas de quem tem grandes ocupações no mundo dos negócios. Tinha, ainda sim, preocupações profundas nesse escritório, que era, como o resto da casa, muito simplório, havendo nele apenas uma mesa, uma estante com alguns livros e um amontoado de recortes de jornais e revistas.

Todo esse material apresentava uma característica comum: havia partes sublinhadas, algumas pintadas com marcador de texto e outras com uma seta feita de caneta, como que indicando algum fato de maior importância nas leituras que João Augusto realizava todos os dias.

Analisando com cuidado os recortes de jornal, seria possível concluir que João Augusto não acumulava dados sobre a morte por alguma sordidez condenável, dessas que levam as pessoas a sentir prazer quando presenciam um acidente pavoroso ou quando incentivam um suicida a pular de um edifício para vê-lo despedaçado no chão. Isso é doença. A fascinação dele pela morte tinha um conteúdo mais filosófico.

Por exemplo, um dos recortes de jornal noticiava o fato de um senhor ter sido atropelado na Rodovia Augusto Montenegro, em Belém. Ele morreu vítima desse atropelamento. Todavia o que levou João Augusto a guardar aquela notícia não foi a morte do ancião, mas o fato de o motorista que dirigia o carro do Instituto Médico Legal ser filho do morto!

Um outro recorte explicitava a aguda crítica que ele fazia àqueles que, mesmo sob a aparente dor de uma perda irreparável, não abriam mão da soberba que caracteriza alguns ricos, na vida e na morte. Era uma nota fúnebre, na qual a família de uma distinta senhora da sociedade paraense agradecia nominalmente aos que enviaram mensagem de consolo diante da morte de sua ente querida. Ó que chamou a atenção de João Augusto, nesse caso, foi que na nota havia apenas uns sete ou oito nomes, todos de pessoas ilustres e conhecidas: advogados, juízes, médicos e jornalistas. O espírito crítico de João Augusto concluiu, sem injustiça alguma, que aquela nota não contemplava todos os que, seguramente, haviam emitido votos de pesar e carinho à família enlutada, revelando apenas uma tendência natural da existência humana: os homens morrem como vivem. Soberbos na vida, soberbos na morte. Por que não houve agradecimento à cozinheira da família, ao motorista, ao vizinho que não ocupava nenhum cargo de prestígio e ao ascensorista do prédio onde morava a família, os quais tanto quanto os citados na nota fúnebre manifestaram solidariedade?

Filosófica também foi a maneira como João Augusto delimitou o corpus de sua pesquisa, pois em nenhum dos muitos documentos que ele coletou havia qualquer referência à morte em sua variante teológica, ou seja, ele não se apoiou na religião para se sentir mais confortável diante da certeza que a morte de todos os homens, inclusive a sua, é inevitável e que, por esse motivo, talvez devesse buscar alívio nas várias promessas que as religiões fazem aos crentes quanto à possibilidade de vida pós-morte.

A eternidade parecia não ocupar grandes porções na mente de João Augusto. Quando discutia com alguém a respeito da vida, ele refutava a idéia de uma existência perene. Contraditoriamente, alguns dos livros que lhe ajudaram a compreender o fenômeno da morte traduziam um desejo adjacente, apenas na aparência inferior ao de compreender, que era a ânsia de adiar seu encontro com o destino final, e isso não tem outro nome senão o desejo de não morrer.

Um dos livros, Os guardiões do Dia, tinha um trecho inteiro marcado de verde. Era o momento em que Kin Shen, líder dos guerreiros da luz, conseguia chegar ao local do templo sagrado onde um monge sábio guardava o Giz do Destino, com o qual se poderia escrever o futuro. Momentos antes, segundo a narrativa, Kin Shen poupara a vida do último oponente, líder dos guerreiros da escuridão, detentores da guarda do giz, que a ele pedira clemência. Porém, ao pegar o giz, foi traspassado pela espada do homem de quem poupara a vida. Indagado pelo ancião sobre o que gostaria de escrever antes de morrer, Kin Shen escreveu que queria viver. Imediatamente, a narrativa é retomada no momento exato em que Kin Shen ia matar seu opositor. E o matou dessa vez. Quem sabe João Augusto não desejasse encontrar um giz do destino para adiar sua morte indefinidamente?

Na parede do escritório de João Augusto havia uma cópia do quadro A lição de anatomia do doutor Tulp, pintado em 1632 por Rembrandt. Trata-se de um dos mais relevantes quadros do pintor holandês e mostra a autópsia pública no corpo de Adriaan Adriaanszoon, um marginal que morreu enforcado por ter assassinado um guarda penitenciário de Utrecht, Holanda. Mais que refinamento intelectual, que ele por certo adquirira mediante tantas leituras, a réplica do quadro enfatiza e ilustra o gosto de João Augusto por questões ligadas à morte, no sentido mais imediato, a extinção da vida pela fuga total de energia no corpo, pela cessação da atividade cerebral, pela ausência de batimentos cardíacos, pelo apodrecimento do sangue nas veias... a morte em si.

Poderia ser um caso de amor à vida o fascínio de João Augusto pela morte? Talvez. Houve um dia, após dura jornada de trabalho, em que ele, chegando em casa, disse à esposa:

- Hoje senti uma coisa estranha lá no trabalho.

- O que aconteceu, João?

- Não sei Francisca... De repente me faltou o ar. Quase desmaiei.

Depois dessa conversa, João Augusto tomou banho, jantou, entrou no quarto e ouviu a 5ª sinfonia do Beethoven. Enquanto a mulher via novelas, ele, após ter descansado, pegou seu material de estudo. Dentre os livros, havia uma enciclopédia Delta Larousse, e, sublinhada, a palavra catalepsia.

Três meses após ter se sentido mal, João Augusto sofreu uma parada respiratória. Era sexta-feira santa. Levado às pressas para o Pronto Socorro, teve outra parada, dessa vez cardíaca. Morreu. Durante o velório, em meio aos soluços da esposa, de irmãos e amigos, os lábios de João Augusto se moveram. O alvoroço, aliado a um pavor momentâneo e uma correria desesperada, espalhou-se pela sala e de lá saiu para todos os cantos da cidade em forma de uma notícia: um homem havia ressuscitado!

Os familiares, esperançosos que João Augusto não estivesse morto de fato, levaram-no ao Instituto Médico Legal no carro funerário. O médico legista de plantão, depois de averiguar todos os sinais vitais, principalmente a ausência de atividade cerebral, atestou que o morto realmente havia morrido. Explicou à família que o mover dos lábios poderia ser uma contração involuntária pós-morte devido ao acúmulo de gases no interior do corpo ou à uma informação do cérebro que por alguma razão chegou à boca do defunto com um certo atraso .

De qualquer modo, as recomendações que João Augusto fez à Sra. Francisca, em uma carta, caso morresse repentinamente, talvez resumam aquilo que o extinto homem pensava sobre a morte: Quando eu morrer, quero que você ponha a 5ª Sinfonia de Beethoven para tocar, coloque a tela de Rembrandt na sala e, caso alguma coisa estranha aconteça enquanto meu corpo estiver sendo velado, abra a enciclopédia Larousse na página 10, leia o texto marcado; em seguida, leia o trecho de Hebreus, capítulo 9, verso 27, para o caso de haver quem ache ser possível um morto voltar à vida ainda neste mundo. Talvez você se convença que a única beleza da existência seja o fato de não sabermos explicar o que é a vida, nem o seu contrário, a morte...