Um brinde a um amor eterno

Quando o sol já ia alto, abriu os olhos, olhou em volta como querendo se situar na própria existência. As cobertas no chão. Coçou os olhos ressecados e naquele despertar captava todas as dores que armazenava em seu interior. Aos poucos vai percebendo que continua vivo.

Era sempre assim que iniciava seu dia, como se acabara de subir do mais profundo poço. Deixando para trás os ecos da escuridão noturna. Casa silenciosa, estranha sensação sepulcral. Nos dias idos, casa cheia de gente, povoada de vozes e agora, ninguém... Silêncio absoluto.

E o desassossego mais uma vez o fez saltar da cama.

Caminhou até a janela, acendeu um cigarro e ficou a ver as pessoas que começavam a circular pelas calçadas em busca de seus afazeres, atrás de seus sonhos ou, quem sabe, simplesmente buscando o pão de cada dia. Perdido em pensamentos, atirou o cigarro no cinzeiro próximo à janela, voltou seu olhar para a fumaça azulada que subia. À simples invocação o levou a refletir que sempre fizera a vontade Dela, sempre fora fiel em suas promessas, mas agora reconhecia que falhara nesse compromisso. Sim havia prometido que não fumaria mais, atenderia seu pedido, mas... Sim, falhara. Não querendo se furtar da falta, nem se esquivar do compromisso firmado, reconhece que é na volatilidade da fumaça que consegue refletir sobre a fragilidade da vida. Não é o simples ato de fumar um cigarro seguido de outro que lhe trás prazer, mas sim esses momentos de solitárias recordações.

Assim, as primeiras lembranças começam a surgir, como que encobertas por um espesso véu que pode desvendar o real do absurdo. Surgem como por encanto as imagens muito antigas, mas completamente reais e encantadoras, que vão se formando em sua mente e que naquele momento passam a ser uma realidade palpável, pois se sente arrastado para o interior do que seria etéreo. São nesses momentos de solitárias recordações que as imagens felizes dos tempos remotos vão adquirindo formas quase concretas e então sente a possibilidade de continuar acreditando que a existência deixa de ser fria e ainda há chance de suavizar seus sentimentos naquelas recordações.

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Mudou-se para aquele bairro quando ainda era muito jovem, recém iniciado na adolescência. Logo no primeiro dia pôs-se a observar que na casa bem em frente a sua morava uma jovem de rosto oval, de formas irregulares, ossos salientes pela magreza acrescida de uma palidez acentuada, por certo, por falta de sol, os cabelos sem trato, arrepiados. Ainda que não fosse dado a tais observações femininas, pôde perceber que tal desleixo denunciava a falta de vaidade ou rebeldia de uma pré-adolescente.

Mesmo não entendendo o porquê, os dias que seguiram viraram rotina quanto à observação. No horário que já se habituara, invariavelmente lá estava ele esperando sua aparição, imbuído da certeza de que apenas ele era o observador.

Ocorre que, naquele dia, quando ela chegou ao portão e já se preparava para sair, instintivamente olhou para cima em direção à janela da casa em frente, deu com os olhos dele, virou rápido o rosto e mesmo assim pôde reconhecer então aquele seu admirador.

Sem que ele jamais tivesse imaginado, ela já há muito notara a presença daquele jovem da casa da frente, aparecendo na janela pela manhã, no exato momento em que saía para escola. Olhar disfarçado, fingindo estar ocupado com alguma coisa, mas com toda certeza olhava para ela.

O fato inesperado, no entanto, trouxe certo embaraço por parte dele, sentiu um forte e estranho calor em seu rosto. Sim, aquele olhar no seu olhar, ainda que distante fez com que percebesse que o tempo fizera acentuadas mudanças naquela criatura. Os cabelos longos de um tom castanho-dourado que combinava com os grandes olhos esverdeados, pareciam pertencer a outro rosto.

Na manhã seguinte ela saiu na mesma hora de costume, carregando seus livros e materiais do colégio, bem devagar. Mal cruzou o portão ganhando a calçada, levantou os olhos e deparou com ele à sua frente, ficou vermelha, tentou desviar o olhar, porém voltou a fitar agudamente os seus olhos, como que tentasse ler seus pensamentos e teve que responder ao mais sonoro “bom dia” de sua vida. Foi andando sem pressa, com o coração aos pulos.

Depois daquele dia ele descobriu uma coisa inquietante: estava apaixonado por ela.

Dali pra frente, os encontros ao amanhecer e os sonoros “bons dias” tornaram-se comuns. A facilidade crescente de se encontrarem e comunicarem-se criou uma inevitável intimidade e tornou-se comum serem vistos lado a lado em longos passeios pela pracinha próxima, em conversas intermináveis.

A primeira vez que foram juntos ao cinema foi profundamente marcante, principalmente pela preocupação de que ela não viesse ao encontro. Chegara bem antes da sessão. A cada instante olhava para o relógio, aumentando sua ansiedade. Levou um susto quando deu com ela na sua frente e viu aqueles olhos esverdeados de felina que faiscavam naquele risonho rostinho.

Vendo seu embaraço ela, como sempre, adiantou-se em desculpar-se pela demora e a justificar-se pela caprichada maquiagem, argumentando que temia ser barrada num filme recomendado para maiores de catorze anos.

Realmente chegaram bem na hora em que o filme iniciava e as luzes já se encontravam apagadas. Foram tateando sem enxergar direito, tropeçando em joelhos e pernas que dificultavam a passagem. E, para complicar, ele trouxera um saco de pipocas muito cheio e fez chover pipocas para todos os lados, mas nada disso tirou o prazer de estarem juntos.

E assim, sem que pudessem notar, os anos passaram correndo. A cada dia descobria nela um novo talento. Aos poucos foi se revelando uma pintora talentosa, seus quadros eram belos, com grande facilidade iam surgindo de seus pincéis lindas paisagens paradisíacas. Entre muitos talentos que exercia com habilidade estava a arte da escrita. Poeta sensível, brilhante contista.

Mesmo depois de casados ela continuava exercendo sobre ele seu fascínio. Lembrava-se perfeitamente do primeiro dia de sua lua de mel. Ela estava diante dele, usando uma bela camisola bordada, aberta na frente, deixando à mostra sua bela silueta. Tinha os cabelos soltos, caídos sobre os ombros, olhos verdes fitando-o como um convite não verbal irresistível, que o atraía para dentro do aconchego do seu coração, convidando-o a entrar. Naquele momento, mais do que nunca, experimentou a euforia de sentir os lábios da mulher amada e a sugestão de promessa de um futuro sempre juntos. Hora, de amar... Amar sem pressa, como quem tem a vida inteira.

Mas a vida tem seus limites.

Ela sempre fora muito alegre, em suas constantes reuniões em casa com os amigos, fazia questão do bom acolhimento, sorrindo e animando as conversas, deixando que todos se sentissem à vontade.

Ficou preocupado com sua repentina mudança. Leitora voraz, já não se interessava por seus livros. Não se lembrava mais de certos fatos ocorridos recentemente. Alarmado com o crescente agravamento de sua saúde, levou-a ao médico que após um breve diagnóstico decidiu por sua internação e possível cirurgia no cérebro, um recurso perigoso, cheio de riscos. A princípio relutou em aceitar tal situação, mas logo concordou que tudo teria que ser feito, uma vez que corria perigo do agravamento da doença.

Foi visitá-la no hospital. Entrou no quarto procurando ser o mais silencioso dos seres, encontrou-a atirada sobre a cama, totalmente sem vontade e sem ação, olhos fixos no teto, sem coragem para nada. Ao vê-lo aproximar-se pareceu adquirir um lampejo de vida. Sentou-se à beira da cama, o encarou e sorriu, sendo retribuída por um emocionado sorriso.

Ele pôde observar que mesmo tendo passado por maus momentos e sofrimento, continuava cada vez mais bonita, uma beleza suave e madura. Seus olhos continuavam profundos, penetrantes, como soe aos poetas e aos amantes. Sua voz soou fraca e quase imperceptível. Diante daquele quadro teve de admitir: aqueles minutos seriam seus últimos momentos juntos. Sentia profundamente que estava na iminência de perdê-la para sempre.

De fato, naquela mesma noite recebeu o telefonema fatídico.

A notícia, mesmo sendo previsível, o pegou desprevenido. Largou o telefone, enterrou a cabeça nas mãos. Sua dor o faria gritar, mas não pôde, ou melhor, não conseguiu. Seu maior esforço era tentar prender os soluços que lhe sacudiam todo o corpo. Sua existência sempre fora cheia certezas inabaláveis e agora se via diante de uma cruel realidade – ela se fora para sempre.

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Trouxe consigo para casa a pequena urna com as cinzas que fora buscar no Crematório. Sim, de fato ele trouxera as cinzas dela, porque, conforme seu gosto e desejo fora cremada. Não ousou discordar de sua vontade, ainda que já não estivesse ali presente, seu desejo tinha um grande peso. Nas poucas divergências entre eles essa decisão de pós-morte era-lhe totalmente antagônica. Ele defendia com veemência o sepultamento, que segundo ele, era a maneira mais humana de conviver-se com o ser amado, na verdade gerava até mesmo uma maior intimidade com aquele que se fora. O simples caminhar entre cruzes de outros túmulos e apreciar os anjos melancólicos com as mãos levantadas para o céu de outros jazigos enormes, tendo ao lado jazigos esquecidos, afirmava ele, provocavam-lhe um sentimento melancólico de estar em uma comunidade viva, com suas divisões sociais. Também seria de suma importância as fotos tumulares, elas ajudariam acreditar na possibilidade de projeção do ser amado de novo na vida, por meio da imaginação.

E assim, seu último desejo foi-lhe concedido. Trouxe as cinzas para casa e a guardava no lugar que mais lhe agradava em vida, sua biblioteca, no meio de todos aqueles livros que tanto amara.

De início a vida parecia sempre igual. Mesmo assim, na fuga da vida habitual, não ousava dar as costas ao que deixara para trás, jamais pensara em começar uma vida nova ou buscar novos horizontes, ainda que nos momentos de lembranças terríveis e ansiedade que o invadia.

Por um longo tempo não entrou no quarto de estudos. A mesa e seus pertences ficaram intocáveis por vários meses. Certo dia precisou de alguns documentos e teve que vasculhar as esquecidas gavetas. A mesa estava completamente arrumada, um caderno de capa preta de couro jazia em cima da escrivaninha. Sentiu que o caderno estava ali em cima da mesa em sua frente pedindo-lhe para ser tocado. Folheado. Lido. Quem sabe se por desejo de sua antiga dona. Pegou-o e pôs-se a folheá-lo.

Na primeira página apareceu uma frase escrita por seu próprio punho: “O amor é a única paixão que não admite nem passado nem futuro” (Honoré de Balzac).

Fixou sua visão naquela frase acrescida de algumas reticências...

Logo mais adiante, na próxima página o esboço de uma carta-diário em que falava de seu desejo de viajar. Relacionava vários lugares que gostaria de conhecer. Com grande destaque, sublinhada, a palavra Paris. Descrevia com riqueza de detalhes o que planejava conhecer naquela cidade, sobretudo a visitação à Torre Eiffel, seguida de outros locais enumerados.

Leu mais algumas páginas, finalmente fechou o caderno e sentiu em seu peito a sensação de que realmente ficara pendente a realização de um de seus desejos. Com certa amargura constatou sua frustração de não ter viajado com ela. Isso lhe trouxe muita angustia.

No dia seguinte, após mal dormida noite se decidira que iriam viajar.

De fato, comprou passagem para Paris, levando juntamente com suas bagagens a pequena urna com suas cinzas.

Subiu no elevador da famosa torre portando sua querida urna, uma garrafa de champanhe e duas taças de fino cristal.

Chegando ao cimo da torre, tomou as duas taças, abriu a garrafa e também a urna, encheu ambas as taças com o líquido acrescido de cinza retirada com auxílio de uma colher. E como se no ar fluísse uma suave música, ora dava uns passinhos como que dançando, ora mirava as taças com puro champanhe e cinzas. E sorveu com sofreguidão o champanhe com as cinzas dela.

Um brinde após outro até a última gota do champanhe e a derradeira colherada das cinzas.

E o vinho lhe foi subindo, deixando-o em uma falsa alegria e profunda melancolia. Arregalava os olhos e recordava a vida, segurava os cálices suspensos diante de si e de seus olhos, agora já totalmente vazios.

E naquele dia conseguira a tão grande façanha de se repartir em alegria e ao mesmo tempo se fundir com aquele ser tão amado que fora a razão de seu viver. Não haveria palavra para expressar tal sentimento de júbilo. Finalmente conseguira fazer cumprir mais um de seus desejos.

Quem poderá entender os milhares de fios que devem unir as almas dos homens, bem como medir o alcance de suas palavras.

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Finalmente se dá conta de que fumara muito. Na solidez das cinzas reflete sobre a dureza da vida. Remotas dores, vagas sensações que confundem suas visões de um passado que já há muito não existe, mas que teima em ser presente.

Levantou-se, encaminhou-se até a biblioteca. Lá estava tudo como ela deixara: sua mesa de trabalho de onde saíra seus poemas e tantos outros escritos, seus muitos livros quase todos com suas marcações e assentamentos, marcas de muitas leituras e estudos.

Aproximou-se do quadro de moldura dourada, que tinha seu lugar de destaque naquela imensa estante, lá estava sua bela figura com aqueles lindos olhos dominando todo aquele quadro. Tirara aquela foto num dia feliz de sua vida. Nos momentos de tristeza ele evitava olhá-lo, mas agora sentia uma profunda ternura e um imenso desejo de esquecer que estava morta, era uma imensa frustração constatar a impossibilidade de projetá-la plenamente na vida. Na parte inferior da foto podia ler seu texto predileto, escrito à mão em uma caligrafia perfeita: “O amor é a única paixão que não admite nem passado nem futuro”.

Eram naqueles momentos de reflexão que sentia a impossibilidade de relaxar e deixar o tempo escoar, sem pensar em nada. Prosseguir na marcha incessante da vida rumo a um destino totalmente desconhecido e deixar que tudo deságue na consequência do óbvio que o espera. E é nessas horas que a solidão aperta e brota o desejo quase irresistível de fechar os olhos para sempre....

Laerte Creder Lopes
Enviado por Laerte Creder Lopes em 30/11/2008
Reeditado em 13/07/2009
Código do texto: T1311321
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