NOITE DE NATAL

NOITE DE NATAL

De fora da porta dava para escutar o crepitar do fogo na lareira. Ele, não importa o nome, tratemo-lo simplesmente por Ele. Seria apenas um vulto perdido num pensamento, que um vento vindo de muito longe para ali transplantou. Ele estava protegido pelas sombras da noite ainda que as estrelas teimosamente cintilassem lá no céu muito azul; só o frio se fazia sempre igual às outras noites de inverno, sempre envoltas de uma aragem que regela até pensamentos mais recônditos.

Ele ali ficou por um longo tempo, imaginando a cena lá dentro; dois pobres velhos se aquecendo junto à lareira, remoendo lembranças na sua memória já esfumada pelos anos. Do que falariam? Será que falavam dos filhos distantes, nos Natais de antigamente, na partilha da alegria, das ceias melhoradas da noite de Natal, no prato de bacalhau, nas rabanadas, ou nos milharacos cobertos de mel que deliciavam a boca e adocicavam a alma? Do que falariam aquelas santas almas, se todas as palavras já estavam gastas e descoloridas por tantas vezes repetidas?

-Ó homem vamos dormir, amanhã temos de levantar mais cedo para assistir à missa do Menino Jesus.

- Natal sem crianças não é natal, sem crianças não há Natal ...

A noite era silente como seria outrora a noite lá nos campos de Belém, quando um coro de anjos irrompeu no céu anunciando aos pastores a Boa Nova. O silêncio daquela noite era quebrado apenas pelo gri gri ou cri cri dum grilo lá dentro da casa junto ao borralho da lareira, onde dormitava também um gato asmático, arfando de desejos da lembrança do pisco no telhado e, porque era muito friorento por ali pernoitava todas as noites para se esquentar ao calor daquele braseiro que durava até alta madrugada. .

Em toda a Domanvile havia um silêncio consentido, um silêncio duro de pedra adormecido. Suas velhas casas lembravam um grande presépio, que o Menino Jesus desde tempos imemoriais escolhera para ali continuar a renascer. Mas ali em vez dos hinos celestiais era louvado na voz dos lobos, cantadores noctívagos e vagabundos seresteiros, que lá do cimo de Domanvile cantavam alegremente naquela noite santa e branca de Natal .

Domanvile era uma terra muito remota e escondida por muitos e altos montes, talvez por essa razão longe do alcance da vista do tal velhinho a que chamam de papai Noel ou pai Natal como é ali chamado; portanto as crianças não costumavam receber brinquedos de presente no Natal. Mas os meninos naquele dia ostentavam garbosa-mente camisas branquinhas como a neve daquelas noites e de colarinhos engomados, e, também calças novas; as meninas lindos e coloridos vestidos; e todos prosas cantavam com os adultos ao Menino, deitado sobre palhinhas, lá na betusta igrejinha da sua terra.

-Nada melhor do que a noite para poder perscrutar o silêncio da alma das coisas, sentir os segredos que emanam da terra, a dureza do sentimento das pedras que pisamos, os gemidos das árvores açoitadas pelo vento, o choro de uma casa em ruínas, as lembranças daqueles que as habitaram, um eco longínquo misturado ao vento pronunciando nosso nome, ó fulaaaano!...

-Glória in excelsis deo, e paz aos caminheiros do mundo na procura do reencontro dos tempos-meninos que adocicam lembranças, que nos fazem voltar a ser outra vez crianças.

Dum pulo levanta-se e, de cabeça enterrada entre as mãos, sentado na beira da cama belisca-se, para sentir a própria carne. Aquilo não podia ser um sonho, tampouco um pesadelo. No seu cabelo frio e levemente molhado ainda restavam uns poucos farrapos de neve, como os que haviam caído lá na sua Domanvile.

Eduardo de Almeida Farias.

Eduardo de Almeida Farias
Enviado por Eduardo de Almeida Farias em 02/12/2008
Código do texto: T1314593