CONTO DE COBRAS

Era uma vez, no alto da montanha mais alta, na torre mais alta do castelo, vivia uma princesa solitária. Morava num quarto sem porta. Uma única e pequena janela mostrava o mundo em que ela não podia viver.

Logo depois que nasceu, na festa que o rei e a rainha fizeram para comemorar seu nascimento, todos os moradores do reino compareceram e isso significava, ricos e pobres, velhos e novos. Todos, todos compareceram à festa e por isso, os portões do reino ficaram abandonados, sem os soldados que estavam também na festa.

A música era suave e a comida saborosa e vinho dos mais doces que havia no local e todos sorriam felizes o nascimento da princesinha.

Não se pode esquecer que as bruxas também foram convidadas e estavam lá, com suas roupas negras e dentes amarelos e narizes tortos com algumas verrugas grandes e não eram más. Eram bruxas boas se é que isso é possível. Estavam lá e cantavam suas músicas e faziam suas poções mágicas e distribuíam para os necessitados. Poções mágicas que curavam. Bruxas boas. Era um reino feliz.

Mas os portões estavam desprotegidos e por isso um bando de cascavéis, que viviam ao redor do reino conseguiu entrar.

Poderiam ser cobras boas, como as bruxas que ali viviam, mas não eram e não entendiam como tantas pessoas vivendo juntas não brigavam. Aquelas pessoas viviam em paz e isso incomodava as cobras que rastejavam à beira dos muros buscando algum caminho para penetrar naquele reino tão diferente.

No dia da festa entraram pelos portões abandonados e se espalharam por todo o reino. Tudo estava vazio. Todos estavam no salão do castelo comemorando, felizes, o nascimento da princesa. As cascavéis aproveitaram a oportunidade e atacaram de uma vez só o salão, picando os moradores, os soldados e todos que ali estavam, até mesmo o rei e a rainha. E aos poucos, as pessoas foram caindo sem vida pelo salão. Somente a pequena nascida foi poupada da matança, não se sabe porque, mas cobra nenhuma picou a pequena que dormia tranqüila em seu berço de ouro e muitas pedras preciosas.

Quando não havia mais vida no salão. A maior das cobras e por isso a que dava ordens, rastejou até o trono e enrolada em si mesma fez-se rainha daquele lugar, ordenando as outras cobras que construíssem uma torre, a mais alta torre que se pudesse construir e que lá, no topo, deixassem a pequena princesinha. Determinou que apenas uma janela fosse construída, para passagem de ar e um pouco de luz do sol e tão somente isso.

As outras cobras, por serem menores, obedeceram e em poucas horas a torre estava construída e a princesinha dormia tranqüila sem saber o que acontecia.

Os anos se passaram e as cobras alimentavam a menina com frutas que traziam enroladas na ponta do rabo. Entravam pela pequena janela e depositavam as frutas num canto.

A menina crescia. Não temia as cobras, pois não lembrava de conhecer outra coisa que não fossem as cobras e então, para ela, era tudo normal e porque não dizer que até gostava quando uma cobra ou outra passava mais tempo ali a conversar com ela sobre qualquer coisa da floresta.

Dentre todas as cobras, havia uma, a menor de todas que se afeiçoou pela menina. Nem todo o mal é mal de todo e por isso a cobrinha visitava a menina todos os dias e se punha a conversar. Enrolava-se ao braço da menina e olhavam-se olhos nos olhos e até riam por algumas vezes.

A menina gostava de todas as cobras, mas daquela, da menor delas, tinha um carinho especial, pois era a única que se aproximava a ponto de se tocarem e sentirem uma a outra e, além do mais, as conversas com essa pequena cobra eram sempre mais divertidas e a menina aprendeu a sorrir e a gargalhar e a cobrinha gostava de assistir ao espetáculo de alegria que a menina apresentava sempre que estavam juntas.

A pequena cobra ensinou a menina a cantar e de pouco ia mostrando as pequenas coisas que faziam o mundo existir. Levava flores e animaizinhos pequenos para que a menina conhecesse. Explicava a função de cada um deles e via os olhos da menina brilharem cada vez mais e os lábios infantis abrirem quase num espanto de saber que tantas coisas pequenas podiam criar coisas tão grandes e olhava pela pequena janela e via as montanhas lá em baixo como se fossem também coisas pequenas, do mesmo tamanho das estrelas que cobriam as noites e então, na cabeça da menina tudo era pequeno a sua volta. Imaginava um mundo feito de flores e insetos e tudo lhe parecia tão bonito que um dia pediu a cobrinha que a tirasse dali para conhecer o mundo e toda a sua beleza.

A cobrinha não sabia o que fazer. Não tinha ordem de tirar a princesa da torre e ao mesmo tempo não queria que a pequena soubesse que era prisioneira das cobras. Era como se abrisse a cortina da verdade e mostrasse à menina que aqueles seres que ela tanto gostava eram os mesmos que a mantinham presa e eram as responsáveis pelo seu isolamento e por isso, apenas por não querer que a menina sofresse ou se revoltasse contra ela, inventava desculpas para não tirar a menina de lá. Então dizia que não havia chão que se pisasse e por isso caía-se num buraco sem fundo se se saísse da torre, ou porque as águas tomavam conta de tudo e a menina não sabia nadar e morreria afogada e tantas outras desculpas que acabaram por convencer a princesinha de que ali, na torre, ela estava segura.

Algumas cobras perceberam a amizade que crescia entre a menina e a cobrinha e com inveja correram a contar tudo à maior das cobras que não gostou nada da idéia e mandou chamar a pequena cobra para uma conversa em particular.

A reunião entre as duas cobras estava tensa. As explicações da cobrinha não convenceram a rainha das cobras que proibiu a pequena cobrinha de visitar a menina.

Alguns dias se passaram e a princesinha começou a sentir muita falta de sua pequena amiga e perguntava às outras cobras por onde andava ou onde estava que não a visitava mais. As cascavéis diziam que a cobrinha estava ocupada e que não queria mais visitar a princesinha. A menina, pela primeira vez na vida, chorou porque lhe doía o peito a falta da amiga e assim percebeu que nem tudo era bonito naquela torre e sabia que além de alegria, também existia a tristeza e ela agora era triste, muito triste e algo dentro dela crescia e ela não sabia o que era. Sentia apenas como se fosse um buraco que aumentava a cada dia e talvez fosse um buraco sem fundo como o mundo fora da torre.

A menina se transformou em mulher e já não sorria. O buraco dentro do peito era já tão grande e escuro que ela já não via qualquer tipo de luz, nem sol, nem lua e nem as estrelas.

A mudança de temperamento da menina incomodava as cobras, uma vez que ela era a única entre todos ali que sorria e tudo ficou sem graça como era antes de invadirem aquele reino, e foram reclamar à rainha das cobras.

Eram tantas as cascavéis a reclamar à rainha que esta não teve outra opção a não ser mandar a pequena cobra voltar a visitar a princesa, mas devia ser sempre acompanhada por outras duas cobras para que não contasse a verdade à menina.

No dia seguinte, logo cedinho, a cobrinha entrou pela janela e encontrou a princesa dormindo e viu nas feições da moça que ali já não habitava alegria alguma e a cobrinha deixou escapar um soluço e rastejou até a princesa. Aconchegou-se no peito da princesa e sentiu as batidas de seu coração e uma alegria enrolou-se por todo o corpo da pequena cobra e por um instante ela imaginou que vivia naquele reino, onde tudo era muito feliz e quis tirar a princesa daquele lugar, mas não sabia como fazer. Além de pequena, era vigiada por outras duas cobras.

Os olhos da princesa abriram lentamente e depararam com os olhos da cobrinha que chorava de alegria.

A princesa sentou e por um momento quis mandar a cobrinha embora. Doía-lhe o peito por tanto tempo de saudade e culpava a cobrinha por todo o sofrimento que sentia, mas as palavras não saíram de sua boca e então a princesa chorou alegre a volta da amiga, e ficaram as duas abraçadas e chorando a falta que fizeram uma à outra e os dias voltaram a ser alegres como antes.

As duas conversavam, sempre vigiadas pelas outras cobras e por isso falavam pouco, mas seus olhos diziam mais e isso as outras não viam. A cobrinha passou a morar na torre e assim as duas estavam sempre juntas.

Durante a noite, enquanto a princesa dormia, a cobrinha se enroscava no seu corpo e ficava com a cabeça grudada à cabeça dela e sussurrava em seu ouvido tudo o que não podia falar durante o dia. As vigias não percebiam os sussurros e não se preocupavam. E, na manhã seguinte a princesa acordava com algumas palavras novas e idéias de um mundo diferente fora da torre, mas ao falar com a cobrinha, esta desviava o assunto como se não soubesse de nada e as cobras vigias calavam por não saber o que acontecia com a princesa.

A cobrinha passava horas pensando em como tirar a princesa daquele lugar sem encontrar solução. Eram tantas as cobras lá em baixo, que a princesa não escaparia e provavelmente ambas morreriam com picadas das outras e voar ela não sabia e lhe parecia a única forma de sair daquele lugar.

Durante as noites que se seguiram, a cobrinha sussurrava no ouvido da princesa a necessidade de sair dali e a princesa acordava e corria para a pequena janela com uma vontade imensa de estar do outro lado daquelas paredes e dizia a cobrinha que era seu único desejo. Sair daquele lugar para conhecer o mundo.

A pequena cobra, não vendo outra solução, esperou a noite chegar e, ao sussurrar no ouvido da princesa, disse a ela que a única forma de sair de lá era matar todas as cobras que a rodeavam e para isso ela precisaria ter coragem, muita coragem, pois era arriscado e ela poderia morrer com a picada de uma delas. Explicou ainda que, para matar as cobras, era necessário pisar na cabeça de cada uma delas até que não sobrasse nada.

Nessa noite a princesa teve pesadelos terríveis onde cobras subiam por suas pernas e enrolavam-se ao seu pescoço até ela sufocar. Acordou assustada mas não contou o sonho a pequena cobrinha que a olhava com tanto carinho.

A princesa passou o dia inteiro quieta, pensando no sonho que havia tido e olhava pela janela o mundo que ela tanto queria conhecer e, quando as cobras vigias cochilavam, ela se aproximou e pisou em suas cabeças até que não restasse nada e só ai a pequena cobra pode contar a ela tudo o que havia passado, desde a festa de seu nascimento até dos sussurros noturnos.

A princesa chorou com um novo sentimento dentro do peito. Não queria ficar ali um momento mais sequer e tentou sair pela janela. A cobrinha desesperou e enrolou-se à perna da princesa e conseguiu puxá-la novamente para dentro da torre. Arfando a força que fizera, a cobrinha disse a princesa que não poderia sair assim, precisava acabar com as cobras ou as cobras acabariam com ela. A princesa ouviu com atenção e relaxou sua raiva. Precisava ter paciência e esperar.

No dia seguinte, quando as cobras vigias não desceram da torre, outras duas subiram para ver o que acontecia e ao entrarem na torre foram atacadas pela princesa e pela pequena cobra que conseguiram esmagar suas cabeças.

Os dias se seguiram e sempre duas cobras subiam para ver o que havia acontecido com as anteriores que haviam ido, mas não haviam voltado.

Já havia poucas cobras no reino, quando a cobra rainha tomou consciência de que algo não estava certo e por isso resolveu ela mesma subir à torre para descobrir o que acontecia.

Ao entrar na torre viu num canto, amontoadas, as cobras que haviam subido nos dias anteriores. Eram tantas e tantas, todas sem cabeça. Encontrou a princesa e a cobrinha prestes a atacá-la e gritou que precisava falar. A princesa olhou para a cobrinha que concordou em ouvir, mas ficaria a postos para atacar a qualquer mínimo movimento da rainha das cobras.

A rainha das cobras então se enrolou e paralisada começou a falar.

Contou a princesa tudo o que havia acontecido e disse que não atacara o reino por maldade. Não. Havia uma razão. O reino era feliz e não havia maldade. Todos eram bons ao extremo e não desejavam mal a ninguém. Explicou que não seria de todo mal que o mundo fosse bom, mas que só a bondade não faz o mundo girar. Era preciso conhecer o mal para se poder escolher o caminho a seguir. Era como abrir dois baús dentro do peito. Um recheado de belezas e bondades e outro escuro com vozes gritando sofrimento. Era preciso entrar nos dois baús e ocupar o peito com tudo aquilo e só ai poder escolher qual dos baús manter aberto e qual trancar para sempre.Essa era a escolha que deveria ser feita. E, naquele reino, o rei e a rainha haviam proibido a todos que abrissem o baú escuro e assim, todos só mergulhavam no baú da felicidade e só isso conheciam, mas não eram felizes porque escolheram ser felizes. A felicidade era imposta e por isso não conheciam a real felicidade que é aquela conquistada, aquela buscada todos os dias e não havia razão para lutar por nada, não que isso fosse ruim, mas não era certo. Era imposição do rei. E, a felicidade verdadeira não é imposta. Há de se conhecer todos os lados da vida para saber o que é felicidade, dar valor a ela como ela merece e buscar, sempre e sempre, cultivar essa felicidade no peito do próximo, mas não como obrigação, mas tão somente como um caminho a ser escolhido. E, por isso, só por isso ela havia feito o que fez. Disse que havia poupado a vida da princesa e colocado-a na torre para que ela pudesse conhecer os dois baús dentro de seu peito e estar pronta para reinar um mundo justo onde o bem e o mal existem e podem ser buscados ou apagados.

A princesa ouviu atentamente tudo e então levantou-se e foi até a rainha das cobras e a abraçou agradecendo por tudo o que ela havia feito, mas que sua escolha já havia sido feita e que era hora de sair dali para reinar em seu mundo.

A rainha das cobras pediu a princesa que confiasse nela e então, olhou para a cobrinha e num instante enrolou-se na pequena que não tinha como escapar e foi sumindo dentro dos anéis da rainha. A princesa desesperou e gritou que soltasse a pequena cobra, mas a rainha das cobras continuava a se enrolar esmagando a cobrinha que já não se via.

A princesa correu e com toda sua força pisou na cabeça da rainha das cobras até esmagá-la por completo e chorava por ter de fazer aquilo com a rainha das cobras que havia lhe dado a oportunidade da felicidade real, mas não havia outra solução, era preciso salvar a pequena cobra.

Quando a cabeça da rinha das cobras desapareceu, a princesa desenrolou o corpo morto, tentando encontrar a pequena cobra, mas levou um susto ao ver ali, não a pequena cobra, mas a figura de um homem. Sim, era um homem. Um príncipe que havia sido enfeitiçado pela cobra rainha. Tinha ele sua função. Haveria de ajudar a princesa e assim libertá-la. Ele sabia, fora um acordo entre seus pais e a rainha das cobras e ele agora estava liberto.

Os dois desceram da torre fazendo nós nas cobras e usando-as como corda.

As poucas cobras que restavam no reino, ao ver a princesa e o príncipe, transformaram-se em pessoas e corriam ao encontro dos dois, sorrindo e cantando.

A princesa e o príncipe se casaram e formaram o primeiro reino justo daquele mundo.

O tempo passou e novas gerações habitavam o lugar, tudo estava modificado, moderno, mas a torre estava lá, intacta para mostrar a todos que era necessário conhecer os dois baús para só depois decidir qual o caminho a seguir.

E ... será que foram felizes para sempre?

Paula Cury
Enviado por Paula Cury em 08/04/2006
Código do texto: T136041
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