MARIA CORREU PARA A BEIRA DO RIO

Maria correu para a beira do rio. Os cabelos desgrenhados, olhos arregalados, pernas firmes à mostra. Levava as mãos e braços à frente do corpo na tentativa de alcançar o imponderado. Corria Maria para a beira do rio na busca insana do perdido. Perdido no tempo remoto da perda. Coração aos saltos, pés descalços saltando obstáculos, reais e imaginários, Maria pula troncos atravessados no caminho, corpos inertes de seres matados pela própria mãe. Corpos de coisa e de gente, assassinados, massacrados por mãe, mãe de muitos filhos. Os pés sangram, as mãos lutam, o grito preso na boca escancarada, boca sem dentes, língua sedenta, de beijo.
Maria corre agora alucinada para a beira do rio. Na busca do ontem de tantos anos passados, partida de barco, de homem, de gente, de felicidade. Maria acredita que esteja na beira do rio o amor partido, perdido, no horizonte da vida do rio.
Quando a vida partiu Maria esperava filho. Barriga empinada, nariz largo, boca larga, pés largos, Maria, parada na beira do rio olhava a vida partir no barco dos homens, seu homem.
Maria ficou. Criança na barriga olhando o barco do homem deslizar rio acima, lento, insistente, diminuindo, pequenino, sumindo, o barco desapareceu no horizonte vermelho daquele dia. Parada, vestido de chita colado ao corpo pela chuva fina que caia sem atenção de Maria. Barriga marcada, rosto molhado de lágrimas salgadas misturadas à água doce da chuva.
Maria esperou pela volta do barcohomem, pelo filhobarriga na mãequemata.
Quando a chuva passou e se foi - como o homem no barco - e também não voltou, Maria virou as costas à beira do rio. Voltou para a aldeia, para sua gente.
Trabalhou, barriga cheia de filho e vazia de homem, Maria trabalhou muito, pariu entre gritos de dor e de surpresa, dos outros. Gritos abafados pelos dentes cerrados que ainda existiam, Maria pariu o filho do homem que amou e não retornou, como Maria à beira do rio.
A criança também partiu, pendurada nas asas do anjo do sertão, ainda não havia cicatrizado o umbigo quando o anjo amarelo e caboclo veio buscar, dos braços de Maria, o filho do homembarco que se foi deixando Maria de bucho cheio de vida morta.
Maria não chorou, apenas entregou o filho morto ao anjoamarelo do sertão. Natural como fome, como seca, a morte do menino logo depois de sentir a vida, instantes de vida pouca. Logo o ar cessou, a cor sumiu e os olhos perderam o pouco brilho. Há meio caminho de fecharem parou, pálpebras inconvenientes deixavam à mostra o olhar sem vida da máscara da morte que não perdoa, nem mesmo o recém nascido. As lembranças das dores eram mais nítidas em Maria que as do homem, mas não eram definitivas. As lembranças do parto logo se desmancha como fumaça da recente vida. Não o barco na beira do rio levando nova vida, a vida de Maria, como o anjoamarelo. O barco era o anjoamarelo de Maria.
Sem barriga, sem filho, sem homem, Maria enlouquecia pouco a pouco, perdia lucidez como perdia os dentes, um a um caindo na terra seca sem chuva do sertão. Maria também perdeu a voz, a vontade de falar. Sorrir já nem lembrava como, mas ainda pedia um favor aqui, dava um aviso acolá, reclamava logo adiante. Mas agora nem isso, apenas olhava. Olhar assustador, demente, apavorava as comadres e afastava os compadres. Até os bichos evitavam encarar Maria nos olhos, baixavam o focinho e saiam pela esquerda, ou pela direita, dependia do bicho.
Até que um dia as chuvas voltaram, não se sabe porque cargas d’água Maria acreditou que com as chuvas o homembarco também voltava à beira do rio.
Maria correu para a beira do rio. Os cabelos desgrenhados, olhos arregalados, pernas firmes à mostra, levava as mãos e braços à frente do corpo na tentativa de alcançar o imponderado. Corria Maria para a beira do rio na busca insana do perdido. Perdido no tempo remoto da perda. Coração aos saltos, pés descalços saltando obstáculos reais e imaginários. Maria pula troncos atravessados no caminho, corpos inertes de seres matados pela própria mãe. Corpos de coisa e de gente, assassinados, massacrados pela própria mãe, a mãe de todos, a grande mãe.
Maria insana, sem filho, sorriso idiota sem dentes. Maria acredita que esteja na beira do rio o amor partido, perdido, no horizonte da vida do rio.
Maria parada na beira do rio, as lágrimas secaram no tempo perdido, o rosto molhado da água doce da chuva. Vestido de chita colado no corpo mostra as marcas do tempo de espera; de filho, de marido. Maria fica, a chuva fica, só a vida se vai, lenta e paciente, nas asas do anjoamarelo.