Quem ama o feio...

Raimundo sempre gostou de velharia, não se tratava de antiguidades. Raimundo era fissurado por quinquilharias, cacarecos, e outros substantivos que, graças à polissemia, expressam, em diferentes quilates, a mesma coisa, velharia. Raimundo tinha uma irresistível atração pelo feio. Ficava, horas sem fim, observando uma ruína. A decadência dos prédios antigos da Praça Tiradentes deixava-o nas nuvens. Seu pensamento criativo se incumbia de dar asas as mais inusitadas fantasias: belas mulheres fazendo ali sua higiene, homens se masturbando na intimidade daquele banheiro que, agora despudoradamente, deixa à mostra seus azulejos encardidos e quebrados. Mas o êxtase era maior se nas ruínas de uma velha casa da burguesia de outrora encontrava, repudiadas, pessoas encardidas, sem banho, maltrapilhas. Para Raimundo é um privilégio observar o homem sem máscaras, exposto sua verdade animal.
O mundo é assim; velho, feio, fedorento. Mesmo quando aparenta brilho e beleza há, em seu cerne, o rançoso existir do imundo. Mesmo após banhos de água e perfume, uma narina mais treinada para as coisas do Ser perceberá o odor nauseante da natureza humana. Por tudo isso Raimundo se compraz dos molambos, da escória abandonada pelas ruas e casas deixadas à própria sorte.
Raimundo gosta tanto de coisas velhas que se mudou, em caráter permanente, para o centro do Rio de Janeiro, para um velho sobrado na Rua dos Inválidos. De lá os longos passeios pelas ruelas do Rio antigo ficaram mais freqüentes, e com eles a felicidade quase foi possível. Em instantes de grande prazer chegou a percebê-la, próxima, tocável, mas foram momentos que permaneceram por milésimos de segundo. A felicidade não existe.
Raimundo era um homem comum, quase imperceptível. Estatura mediana. Nem gordo nem magro, nem branco, nem negro, nem mulato, talvez pardo claro, de inteligência mediana. Não concluiu os estudos formais, estudou até ao que hoje chamam de oitava série, mas que no tempo de Raimundo se chamava curso ginasial. Não terminou o curso. Raimundo não culpa os pais, ou os professores, ou a escola. O problema estava nele que não conseguia prestar atenção nas aulas. Tentava, tinha sucesso por alguns momentos, mas logo estava fora da sala de aula. O corpo permanecia sentado, mas a imaginação... Sempre foi assim, por isso Raimundo desistiu, arrumou um emprego público na Prefeitura do Rio de Janeiro e se mudou para os Inválidos.
Certa vez passava Raimundo de ônibus por uma rua do subúrbio quando, num parar de sinal, ou de semáforo, viu emoldurada pela janela do veículo, uma cadeira jogada num canto da rua próxima a um açougue. Naqueles breves minutos, entre o vermelho e o abrir verde de trânsito, Raimundo vivenciou uma viagem indescritível. A visão em zoom esquadrinhou a cadeira nos seus mínimos detalhes. Aqueles segundos se eternizaram na alma. A cadeira tinha o espaldar descascado. Sua forma não poderia ser mais comum, devem existir milhares daquelas pela cidade. Mas aquela cadeira suspirou sob o olhar de Raimundo, aquela ostentou vida, viu Raimundo que se apaixonou definitivamente, irremediavelmente. O sinal abriu liberando o trânsito, quebrada então a magia. Raimundo permaneceu olhar fixo na peça que se distanciava apesar do girar insistente da cabeça sobre o pescoço.
Ainda sob o efeito da descoberta, meio lúcido, meio demente, Raimundo girou a chave na fechadura da porta e entrou no apartamento. Estavam todas as coisas exatamente no mesmo lugar em que deixara ao sair, no início do dia. A visita inesperada tirou-o do torpor em que ainda se encontrava. Ela passeava impune, sobre a louça do café que não teve tempo de lavar. Com certeza sentia-se a dona da casa, pois sequer se deu pela presença de Raimundo. A barata não era visitante, visitante sim Raimundo que lhe deu as costas e foi para o banheiro, aliviar as necessidades do corpo, que da alma eram impossíveis satisfazer. A cadeira, aquela bela e feia cadeira.
Após o banho Raimundo retornou à cozinha e não encontrou mais a companheira de suas solidões. Em lugar de lavar aquela louça, utiliza outra para tomar um chá de camomila, na esperança de, nesta noite, conciliar o sono, nem que seja por alguns minutos.
E é por alguns minutos que Raimundo prega os olhos e, nesses poucos instantes vê a cadeira, toca sua madeira carcomida, sente o cheiro do tempo em suas formas comuns, a vida pulsando na sua existência feia. Sobressaltado se ergueu suando. Batimento cardíaco perceptível, mãos trêmulas a enxugar a testa molhada. Levantou-se e foi à cozinha beber um copo d’água. A barata reapareceu ao acender da luz e correu assustada, para qualquer lugar. Pouco importa. O importante é aquela cadeira. Raimundo, encostado na pia, copo a meio vazio na mão, imaginou-se com bunda espalhada naquela cadeira. O vibrar de vida lhe subiu pelas pernas e provocou a discreta ereção. Tanto tempo! Continuou sentado. Encostou-se e sentiu as irregularidades do tempo nas marcas impressas nas costas. Ficou assim por alguns instantes, encostado na piacadeira, com a bunda-ereção relaxada, sorvendo o odor bolorento da velharia desejada. E então se deu a tragédia, precisava daquela cadeira. Retornou do transe mais calmo, talvez pela decisão tomada, talvez pelo líquido quente e grosso que lhe escorreu pelas pernas enfraquecidas, talvez... olhou o relógio, mais algumas horas e o dia nascerá criança, puro e limpo como todo o nascituro. O dia também nasce amadurece, se corrompe, envelhece e morre.
Raimundo pronto pra sair em busca de seu sonho. O banho e o café da manhã lhe deram ânimo e a determinação para a empreitada. Utilizou um táxi para chegar até a Tijuca. O mesmo retorno, itinerário, empresa de transporte, tudo exatamente como no dia anterior. Fez questão de repetir cada detalhe, até o lugar ocupado no veículo foi o mesmo, do mesmo lado. Cabeça voltada para a janela fitava tudo o que passava. Ruas, casas, pessoas. Infelizmente não se recordava onde, exatamente, se havia dado o encontro. Mas sabia que identificaria o lugar assim que o visse. E aconteceu. Reconheceu o açougue, a rua, as cores e o cheiro, mas não viu a cadeira. Em seu lugar o enorme vazio do nada se ampliou diante de seus olhos incrédulos. Não poderia ser. Ela deveria estar ali, abandonada, esquecida. Puxou a cordinha do sinal, o ônibus parou no ponto seguinte onde Raimundo desceu e correu para o açougue, único ponto de referência para identificação do paradeiro da amada. Bom dia! Bom Dia! Gostaria de obter informações a respeito de uma cadeira que aqui estava no dia de ontem. Não sei de cadeira nenhuma. Estava ali, jogada naquele canto, velha e abandonada. Se ali havia uma cadeira minha não era, pois não tenho notícias a respeito de nenhuma cadeira. O senhor conhece mais alguém aqui nesta rua que poderia me dar alguma informação a respeito do material que estava ali, naquele canto? Tenta com o jornaleiro, para ele é mais fácil observar os movimentos da rua. Obrigado. De nada.
Raimundo se dirigiu ao jornaleiro que estava atendendo um freguês interminável. Eles falavam em câmara lenta, com um vagar que dava nos nervos, quase ia interromper a conversa quando ouve as despedidas de rotina.
O jornaleiro explicou que não se lembra da cadeira que Raimundo procura, mas afirmou que todo o lixo que ali estava foi recolhido pela companhia de limpeza urbana na noite de ontem.
Raimundo sentiu os joelhos dobrarem-se, a vista turva, o mundo girava como numa montanha russa. O jornaleiro percebeu que algo estava errado, aparou com os braços o pálido homem e completou; O lixão fica na Baixada Fluminense, o senhor pode conseguir o endereço na Prefeitura. O Senhor sabe onde é a Prefeitura do Rio, não sabe?
Sem responder Raimundo virou-lhe a costa e saiu, caminhando lentamente, mas com firmeza, sabia exatamente o que deveria ser feito.

Tanto tempo já passado. Os cabelos longos esbranquiçados, a emaranhada barba com décadas por fazer, a roupa suja e maltrapilha, em nada lembram o Raimundo da Rua dos Inválidos, solitário e estranho funcionário público e apaixonado por antiguidades. No lixão todos o conhecem por Zé Cadeira.