NOITE

Ele está chegando. Sei pelo motor do carro quando vira a esquina. Espera. Não fala nada, ainda. Ele não pode saber. Por enquanto. Deixa ele entrar, primeiro. Quando ele souber, eu já tenho que estar diferente. Outros olhos, outras palavras. Palavras bem feias pra usar quando ele souber. Desespero sufocamento decapitação ruína. Suicídio, não posso esquecer suicídio. Suicídio. Não dizer homicídio. Cuidado que as palavras se parecem. Tenho que arrumar uma cara de morte pra vestir. O semblante de quem morre sem ar. Asfixiado. Revirar as órbitas dos olhos. Cabelos em desordem. Um suspiro entrecortado de quem quer arrancar do peito um punhal que nunca existiu. Onde eu acho esse suspiro? Não deixar que ele se lembre de sol e das palmeiras da orla. Do som dos sapos no lago da casa vizinha. Da noite abafada, suorenta, difícil. Ele que gosta tanto de dormir ouvindo chuva. A poça de sangue na porta do quarto. A poça de sangue que aumentei com os pés, espalhando a água vermelha. Ela se matou, foi isso. Cheguei, já estava aí. Cheguei de onde? Do supermercado, ora. Mas onde estão as compras? Não fui fazer compras, por acaso a gente só vai ao supermercado para fazer compras? Fui só ver os preços. Agora não dá mais pra ir ao supermercado, o carro já virou a esquina da rua, deve estar no meio do trajeto pra embicar na garagem. Não, estava regando as plantas. Não ouvi nada porque botei Mozart bem alto enquanto estava no jardim. E cadê o regador molhado? Não deu tempo nem de botar água dentro, quando vi tive que correr pra ver o que estava acontecendo. E o que estava acontecendo? Era um banho muito demorado, aquele, fora do normal. Ouviu alguma coisa? Não, ela não deve ter gritado, nem nada, andava tão sem forças. Tive um pressentimento, acho. Como quando papai morreu no acidente, tive um calafrio angústia náusea ânsia. Um bolo que subia pela garganta, foi isso que senti enquanto aguava as plantas. Não, não cheguei a aguar todas, como disse. Só algumas, as mais próximas da porta da sala. Ou talvez não tenha ouvido nada por que a televisão estava ligada. Televisão e Mozart, ambos em alto volume e ao mesmo tempo? Pára, vamos fazer alguma coisa, ligue pra alguém. Não liguei porque fiquei paralisada pelo horror da cena de ver sua mãe morta, garganta cortada dentro da banheira. Por que fechei o registro? Pra parar a água, que inundava toda a casa, água vermelha a tingir de culpa o corredor que viu tudo. E se alguém espreitou à porta do banheiro? Pensou em fechar o registro mas não pensou em ligar pra ninguém? Mas pra quem que a gente liga quando encontra alguém morto dentro de casa, assim de repente? Ambulância bombeiros polícia. Polícia, não. Como você sabia que ela já estava morta? Vamos lá, você vai ver a cara dela e vai me dizer se ela morreu ou não. Por que ela se mataria? Não sei, doutor. Ela andava misturando os remédios, ultimamente. Podia ser depressiva, não é verdade? Uma suicida em potencial. O que faz uma pessoa se matar aos oitenta e seis anos de idade, minha senhora? E ainda cortando a própria garganta? Eu não sei doutor, pelo amor de Deus não me prenda. Não sou nenhuma assassina, se é isso que o senhor está pensando. Sou só uma mulher, doutor, cansada e incompreendida. Ela era forte, sim senhor, tinha muita disposição, ficava andando atrás de mim o dia inteiro, apesar da idade. Andou mexendo nos meus vasos, coisa que eu detesto. Comia muito, mais do que eu pudesse suportar. À noite se trancavam os dois na biblioteca, me deixavam sozinha, sabe-se lá o que faziam mãe e filho sozinhos naquele lugar por tanto tempo. Muitas vezes tentei ouvir o que tanto eles falavam, mas nunca ouvi nada. Muito tempo depois ele saía, me dava um beijo, tomava banho e dormia. Eu ficava no mesmo lugar, calada, esperando que as coisas mudassem, e elas nunca mudavam. Isso todas as noites. Não, eu não tinha motivo nenhum pra desejar a morte dela, o senhor está pensando que eu sou alguma assassina? Meu Deus, agora é ele. Apertar bem os olhos pra acordar as lágrimas. Esfregar com a palma das mãos pra que fiquem vermelhos. Se eu começar a falar, eu choro. Ou abraçá-lo bem fortemente. Há sangue nas minhas mãos e na minha roupa. Meus dedos ainda tremem. E a faca, o que faço com essa faca de lâmina torta? A porta, ele está abrindo. Chega. E enquanto se vira para trancar a fechadura, avanço violentamente sobre ele. E sinto novamente em minhas mãos o som da carne que luta insanamente enquanto é rasgada. Como quem se liberta.