Memórias em Ruína - Prólogo

PRÓLOGO

Estou sozinho. Faz pouco tempo que acordei. Não vejo ninguém ao meu lado. A soli-dão faz o clima ser ainda mais frio do que realmente é. Minhas pernas estão congelando como se estivessem imersas num imenso bloco de gelo no meio do ártico. É uma sensação horrível, querer agora ter alguém para dar um simples abraço e não ter nenhum corpo para agarrar-me como se fosse a minha única salvação. A vida nos prega peças inacreditáveis, num dia somos importantes, populares, sociáveis, noutro somos solitários, abandonados, sem família, sem amigos... sem nada.

Estou só, e é somente isso que me importa agora. O silêncio incômodo, nauseante que me embrulha o estômago muito pior do que uma comida pesada, repleta de gorduras. Tenho vontade de vomitar, mas nem a bile sobe pelo meu esôfago para explodir pela boca numa fúria bestial.

Entra o princípio de um dia ensolarado pela janela de vidro fechada. Será um belo dia lá fora certamente. Deve ainda ser seis, ou sete, da manhã. O cheiro da manhã é inconfundí-vel. Foi-se há muito o tempo em que eu não ligava para cheiros, aromas, uma simples manhã, mas agora tudo me é perceptível. Todas as cores se formam diante dos meus olhos tristonhos como um quadro cujo artista empenhou-se para captar as mais diversas nuances da Beleza. A grande diferença é que agora tenho tempo de sobra para perceber as pequenas coisas que durante toda uma vida fui incapaz de notar, apreciar, modificar, fazer. Meu mundo é outro, res-trito, um cubículo fechado onde somente o tempo me acompanha como piedoso expectador, porém passivo.

Agora, os primeiros raios de sol batem nas árvores. Posso ver com muita clareza as fo-lhas receberem o brilho amarelado sutil e ganharem vida. É um lindo espetáculo gratuito. Mas quantas vezes o sol não raiou sobre essas copas sem que nunca nos déssemos conta de sua magnitude absoluta? Infelizmente umas centenas de vezes. É preciso que de alguma forma nos tolham o vigor para que possamos ver as sutilezas que a vida nos oferece.

Finalmente o sol beija minha cama. Espero que me derreta o gelo. Muito lentos, os raios vão subindo centímetro por centímetro. Batem sobre o fino cobertor que não me aquece. Sinto-me melhor. Mas o que é o melhor diante de um sentimento pessimista decadente? Vol-tará a doer em breve. As pernas exigem descanso, apesar de estarem prostradas todos os dias, faça chuva ou... sol. O sol invadiu o quarto de vez, toda a brancura das paredes, teto e piso agora são iluminadas pelo brilho aliviante e consolador do sol.

As luzes foram desativadas. Agora só voltam ao seu funcionamento no fim da tarde. É deprimente passar as noites com essa branquidão medonha forçando as pupilas e, depois de amargar sem dormir sequer uma hora cravada, o dia é iluminado constantemente pela clarida-de muitas vezes perturbadora que invade a enorme janela de vidro que me separa do mundo de sonhos dos homens, pois aqui é o meu pesadelo interminável.

Meu braço esquerdo dói. Parece que minhas veias estão pegando fogo. O frasco se so-ro está completamente amassado. Em poucos minutos não haverá mais nenhuma gota caindo. Não será a primeira vez que isso acontece. Somente neste ano já foram pelo menos cinco as vezes em que meu sangue subiu pela mangueira até chegar a válvula de ajuste. Ainda pior é o formigamento dentro de meu braço. Tenho vontade de arrancar a pequena agulha e fazer o incômodo passar, mas ainda não tenho coragem, nem forças, para tanto.

Vez ou outra passo meu incontável tempo observando o esparadrapo branco sobre mi-nha mão. Um dia pensei que o trocariam diariamente, e como conseqüência eu sofreria aquela dor insuportável dos pêlos sendo arrancados com fúria a cada troca diária, mas na prática é bem diferente da teoria. Depois de me rasparem os pêlos da mão para que se fixasse melhor a maldita cola, somente de semana em semana é que uma das enfermeiras vem tirar a agulha da veia fatigada e a lança na veia vizinha para o soro desgraçado me prolongue a vida. Hoje já não sinto dor alguma. Mesmo quando há pêlos já não sinto mais nada. Parece que vou ficando insensível às dores simples e extremamente sensível às dores que me mantêm moribundo nes-ta maca dura e irregular como uma pedra.

Em muito breve alguém vai entrar no quarto, mas minha solidão continuará. As en-fermeiras não são ninguém, não contam como pessoa. Elas têm apenas uma função: trocar a porcaria do soro, injetar um coquetel intravenoso de drogas que não guardo o nome e me di-zer palavras idiotas como se eu fosse um débil-mental qualquer. Eu odeio as enfermeiras não só deste, mas de qualquer hospital. Quando me internei aqui até tentei ser bem-educado, mas não há polidez que resista às vozes imbecis que elas me fazem como a maioria dos adultos ao brincar com um bebê. Acho que as crianças devem pensar que os adultos são todos uns idiotas por afinarem suas vozes até chegar num tom que beira o ridículo. Eu também fui assim um dia, felizmente hoje não mais. Calei-me, só digo o necessário, quando não uns grunhidos es-tranhos como faz um animal ao tentarem tirar sua comida. Sou-lhes mal humorado e ranzinza. Não colaboro, não as ajudo em nada. Sei que eu deveria contribuir com o trabalho destes seres estranhos que se vestem de branco, mas não podem medicar. Para o diabo com elas. Que me venham os doutores, mas os doutores só aparecem em raras vezes e não ficam mais de cinco minutos.

Tenho fome. Gostaria de comer um suculento pedaço de carne. Uma picanha na tábua me levaria ao céu de forma incrível, sublimada. Não me importa que ainda seja de manhã, sim o apetite descomunal muito mais psicológico do que físico. Eu hoje só posso sonhar com meu pedaço de carne cheio de sangue, pois mesmo que me fosse possível consegui-lo nesta prisão disfarçada de hospital, meu estômago combalido não suportaria a primeira mordida. Não sei se por culpa minha, ou melhor, do meu corpo debilitado demais, morto demais ou se por cau-sa da quantidade absurda de sopinhas sem gosto que me forçam a comer há não sei quantos meses, ou anos. Já faz tanto tempo que já perdi a conta. Carnívoro ou vegetariano, não impor-ta neste momento de náusea, preciso ingerir alguma coisa ou as paredes do que sobraram de um estômago serão dilaceradas. Estou com fome e nenhuma dessas enfermeiras veio até ago-ra. Quem me traiu? Foi o sol ou a conversa na sala das enfermeiras carniceiras? Se meus gritos adiantassem para alguma coisa, estaria a plenos pulmões dizendo os mais exaltados im-propérios, mas as paredes são grossas demais para permitir que o som se propague, mas a minha voz é tão fraca que um suspiro me dói como uma punhalada... Espero, pacientemente espero apesar da dor, da fome, da solidão.

Minutos intermináveis até que a porta se abre. É a baixinha de sorriso fácil.

— Olá, senhor Junqueira! Bom dia! — diz ela como se fosse diferente o dia de hoje do de ontem ou do último em que ela fez o plantão. Vem caminhando lépida, feliz. Acordou bem, a desgraçada. Deve ter feito as pazes com o marido. Ouvi da enfermeira Lourdes que eles tinham brigado. Quando estamos entrevados num leito as pessoas tendem a pensar que além do corpo a mente também compartilha da enfermidade. Eu ouço tudo, visualizo tudo como um grande observador, embora não tenha a quem dizer as histórias que ouço. — Como vai o senhor?

Não respondo. Apenas lanço os olhos na direção de sua cintura a fim de confirmar se ela trouxe ou não meu desjejum.

Felizmente a baixinha carrega a bandeja de aço inoxidável esterilizada, como dizem, com meu café da manhã: mingau de aveia, como sempre.

— Prontinho. Já vou servi-lo.

Para que tanta palhaçada? Por que ela não põe logo a bandeja na mesinha e me serve essa desgraça de uma vez. Ainda vai levantar a cama, puxar a mesa, sentar-se ao meu lado para me empurrar goela abaixo esse manjar que nem cachorro sem dono é capaz de comer. Mas como não posso resistir à fome que me maltrata, como tudo de uma vez como um animal voraz, para meu espanto.

É deprimente ver-me comer. A comida cai pela boca, escorre em minha roupa, seca na minha pele sem que eu nada possa fazer. Agradeço por me pouparem da decadência não pon-do espelhos a minha vista. Eu não suportaria assistir a tão monstruoso espetáculo.

A enfermeira se levanta.

— Parabéns, senhor Junqueira. Não deixou nada no prato.

Tenho vontade de mandá-la à merda, mas acho melhor não desperdiçar a pouca ener-gia com ela. Apenas esboço um sorriso amarelo que não sai do pensamento.

— Coitado! — ainda a ouço dizer ao sair.

A porta se fecha. Novamente estou sozinho, perdido no silêncio constante do meu mundo restrito. Mas nem sempre foi assim... Houve um tempo em que eu tinha vida e gozei dela até as últimas conseqüências, sem me importar com o que o futuro me guardava, sem contar com a queda ou com os estragos que ela me causaria.

Hoje sou um homem meio-morto, mas houve um dia em que era vivo. Não podia imaginar que meu fim seria dessa ma-neira: derrubado por uma doença corrosiva, abandonado por todos que me serviam e que sem que eu percebesse se serviam de mim.

Talvez o preço seja justo e minha dor nada mais é do que o pagamento pela vida des-regrada que levei, pelas pessoas que magoei em meu caminho, pelos idiotas que roubei, pelas mentiras que contei. Pago um preço alto demais pelos meus pecados, e pequei muito. Ainda assim acredito que a vingança de um deus seja cruel demais. Mereci muito do que sofri, e sofro, entretanto o castigo me vem em dobro, triplo do que anunciara minha sentença.

Não sou um homem de todo mau, não fui eu que escolhi ser assim. Não tenho tanta culpa como me fazem supor que eu tenha. Não posso ser culpado de tudo sozinho, não posso pagar este preço, ele é alto demais pelo meu pouco valor. A certeza da morte é inevitável. Não quero morrer, mas sei que vou.