"EU VIM AQUI POR UMA APOSTA: CASACA DE COURO PULE NAS MINHAS COSTAS!"
 
 
Mesmo nas noites sem luar, as brincadeiras eram divertidas. Nossas mães, candeeiro à cabeça, num equilíbrio perfeito e enganando o vento, encabeçavam a fila em busca de um bom alpendre para entabular uma boa conversação para passar o tempo antes de dormir. Muitas vezes os encontros eram na casa de farinha – a única do lugar – não importando quem estivesse a fazer a farinhada. Todos se solidarizavam na raspagem das mandiocas que entrava noite adentro indo, por vezes, até o amanhecer do dia seguinte, e que tinha por recompensa um pouco de massa e goma de mandioca, fresquinhas, que seriam utilizadas na fabricação dos beijus 
que iriam substituir o pão no café da manhã e no jantar durante alguns dias.
           
           Enquanto isso a criançada, depois que enjoava de raspar mandioca, soltava a faca, ferramenta essencial para tal,     e corria para o terreiro da casa de farinha que também era a estrada por onde todos caminhavam.  Iam brincar. Isso, quando era noite de lua cheia, pois no escuro não havia como extravasar suas energias, e ficavam sentados no chão, à entrada, contando as travessuras do dia e admirando as estrelas que em noite sem luar e sem muitas nuvens, mostravam-se na sua plenitude encantando os nossos olhos.
 
            Uma das brincadeiras mais concorridas pela molecada para uma noite enluarada era a da “casaca de couro”.
            Dizia-se  que  nas  casas  abandonadas,  as  chamadas
“taperas”, existia uma personagem mítica – o “casaca-de-couro”, que seria alguém que teria morrido, um vaqueiro talvez, e sua alma ficara penando e fazendo morada nas casas abandonadas. E assim, formava-se um grupo que elegia um dos seus componentes, talvez o mais corajoso, para ser o primeiro. Então o “corajoso” ia até a casa abandonada, enquanto o resto da turma ficava a certa distância, e gritava: “Eu vim aqui por uma aposta, casaca-de- couro pule nas minhas costas!” e disparava de volta ao grupo, numa carreira desembalada, todo arrepiado e ouvindo as pisadas fortes da “casaca-de-couro” que o perseguia. Às vezes o medo era tão grande que o moleque não conseguia correr, ficando pregado ao chão, aterrorizado, até que algum “peitudo” o fosse socorrer e arrastá-lo de lá.
 
 
Ainda que a noite não fosse de lua
tudo era motivo para a molecada
brincar na areia meio iluminada
pelo candeeiro que deixava a rua
repleta de sombras que na alma atua
despertando medos. Fazendo pensar
em seres que a morte levou e, a penar,
estão neste mundo pagando os pecados
que durante a vida foram praticados.
Só de pensar nisto faz-me arrepiar.
 
Candeeiro à cabeça, ao vento enganando,
mostrando equilíbrio pra lá de perfeito,
em fila indiana, as mães buscam jeito
de passar o tempo. Seja conversando
no meio da rua ou mesmo encostando
no alpendre da casa de Dona Joaninha
ou ainda na casa que se faz farinha
raspando mandioca, espremendo massa,
esquecendo as horas que rápido passa,
Voltando pra casa só de manhãzinha.
 
Quando a criançada já estava cansada
de raspar mandioca, corria ao terreiro
pra brincar de tica, de esconde, guerreiro...
Ou então debruço quieta, deitada
na areia branquinha e fria da estrada,
quando lua cheia. Mas se não havia
lua, conversavam das coisas do dia,
olhando as estrelas no céu a brilhar,
nas asas do vento sempre a cavalgar.
Nada de tristezas, só paz e alegria.
 
Uma brincadeira: O “casaca de couro”,
que deixava todos aterrorizados,
com medo, tementes e arrepiados.
A prova de fogo para um bom calouro
que diz ter coragem de enfrentar um touro,
no entanto o medo o faz estatizar,
deixando-o parado, sem poder andar.
Mas todos queriam dela fazer parte!
E alguns saíam da mesma com arte,
juntando-se à turma para festejar.
 
 

 

Rosa Ramos Regis - Natal/RN - 2005
Reeditado e lançado no Livro LEMBRANÇAS DO INTERIOR Contadas e Cantadas em dezembro do ano 2017