POR UMA GRANDE PAIXÃO

*Terezinha Pereira

Paixão pura. Estava ela com dezesseis anos. Ele com vinte e um. Ela era uma gracinha. Cabelos negros na cintura, pele queimada do sol do norte de Minas, baixinha de estatura, magra, olhos negros e voz abaianada. Num único final de semana conquistara o coração do moço moreno muito alto e brincador que havia vindo do sul. Em um ano subiram o altar da Senhora da Conceição. Ela, toda linda no seu vestido branco sem calda e véu curtinho, ouvindo “vixe, como está bonita” de todos os lados da igreja, fazendo o possível para manter o sorriso e se equilibrar no sapato muito alto que usava para parecer um pouco mais crescida, embora estando certa de que não poderia nem esbarrar no ombro do amado.

No dia em completaram sete anos de casados já tinham cinco filhos, todos eles do sexo masculino. Sete anos após o casamento, ela ainda sentia-se tanto ou mais apaixonada do que quando teve a camisola de seda branca dilacerada devido a afoiteza do marido na noite de núpcias. A audácia do marido nas noites de amor que se seguiram, deixava-a cheia de graça, o que a fez entregar-se de corpo e alma àquele homem de riso solto. Foi quando inteirou o quinto filho, que repararam que a casa de dois quartos que ocupavam desde o casamento havia ficado apertada demais. O caçula precisou ser colocado no quarto do casal, o que lhes causou uma sensação de perda de intimidade para o amor. O quarto do lado era ocupado por dois beliches, dois armários e quatro crianças que quase não dispunham de espaço para espalhar os brinquedos. Nem com muito esforço havia sido possível colocar um berço entre os dois beliches.

Com seus vinte e quatro anos de idade e uma escadinha de cinco filhos a mulher olhou-se no espelho após o banho. As crianças dormiam. O pequeno de cinco meses já havia mamado. Esperava pelo marido. Colocou uma bonita camisola pérola rendada que mais desnudava do que vestia. Sentiu prazer ao ver o reflexo da sua imagem. A barriga já estava no lugar, os seios durinhos, apesar dos quarenta e cinco meses de gravidez e dos quase cinco anos de amamentação. Ficou pensando em como estava sendo penoso para o marido trabalhar para sustentar aquela família toda. De meses para cá ele estava varando noites no trabalho, ocupando o sábado e parte do domingo.

Pouco mais da meia noite, o marido chegou com a gravata afrouxada no pescoço, paletó amarfanhado, olhar cansado. A mulher insinuou-se toda dengosa, pegando-lhe a pasta e oferecendo-lhe os chinelos que ele aceitou sem levantar-lhe o rosto, sem beijá-la, sem dar-lhe uma palavra. Foi quando a mulher teve em conta que ele havia passado direto pela copa, sem ao menos notar a mesa posta com cuidado, as flores, as taças para o champanha, o candelabro com as velas perfumadas. Ele havia se esquecido do aniversário dos sete anos de casamento! Ela, que vivera todos aqueles anos para o casamento. Abandonara o curso normal no primeiro ano. Afastara-se de todas as amigas, de todas as festas, de toda a família, para viver com aquele homem que havia lhe despertado tamanha paixão. Dera-lhe todos aqueles filhos homens. Quase sem ajuda de outras pessoas, para economizar maiores gastos, ela cuidara bem daquelas crianças, da casa, daquela rouparia toda, das camisas brancas de linho custosas de passar. Enquanto o marido tomava o banho ela chorou. E começou a levar em conta pequenos fatos desagradáveis que aconteceram após o nascimento do caçula. Com a desculpa de que a criança estava dormindo no mesmo quarto, aquele marido afoito havia se apagado. Com as outras crianças havia perdido o prazer de brincar. Dizia-se esgotado, por estar dando duro no trabalho com o objetivo de adquirir uma casa maior, onde pudessem colocar o neném em quarto separado e as crianças todas tivessem mais espaço para brincar. Com o pensamento nessas miudezas, a mulher acompanhava os movimentos do marido, que, após o banho dirigiu-se a cozinha, tomou um copo d’ água e passou mais uma vez pela copa sem notar a mesa posta e decorada, sem sentir o perfume das velas. Imóvel na sua parte da cama, ressentida, a mulher tremia. Olhos fechados, sentiu quando o homem amado deitou-se a seu lado, sem ao menos dizer-lhe boa noite. Quando ouviu o ronco do marido ela levantou-se. Mais uma vez olhou-se no espelho. Dessa vez, tentando comparar-se com a noiva de sete anos atrás. Havia dois quilos a mais, que não representavam nenhuma diferença. Ainda continuava magra, o rosto mais jovem devido aos cabelos cortados mais curtos. As amigas de antigamente, quando as encontrava na rua, no supermercado, costumavam dirigir-lhe elogios: “os cinco filhos a deixaram mais bonita”. O que estaria ocorrendo? Lembrou-se da vizinha do lado. Desde o nascimento do caçula ela estava ajudando-lhe a cuidar das crianças. Uma ajuda sem compromissos. Brincava com as crianças maiores quando ela amamentava o neném ou quando ele se contorcia de cólicas e não havia nada que o fizesse calar. Oferecia-se para acompanhá-la quando levava os três mais velhos até a escolinha. Essa mesma vizinha havia lhe feito umas perguntas que até aquele momento não lhe despertaram suspeitas. Se ela tinha ciúmes do marido, se ele chegava sempre tarde em casa, porque o marido trabalhava aos sábados... a partir de então as perguntas perderam a ingenuidade. Uma a uma, ela apagou as cinco velas do candelabro. Foi até o forno e retirou o prato de camarão que havia preparado com capricho. Despejou tudo na lixeira, apesar de sentir fome. Desarrumou a mesa da copa. Num ímpeto de raiva deixou cair uma taça de cristal. Apurou os ouvidos, mas não ouviu choro de criança. Felizmente continuavam dormindo. Colocou na mesa o forro de encerado que serviria para o lanche da manhã seguinte. Sentou-se no sofá e ficou olhando para o nada, ouvindo o ressonar tranqüilo das crianças e o ronco forte do marido. O amanhecer a surpreendeu com os olhos ainda fitando o vazio e o pensamento a mil. Moveu-se quando o neném chorou. Sem inteirar-se do que estava fazendo foi até o berço e o amamentou sem a alegria de sempre. Foi cuidando de cada um dos filhos que ia acordando, oferecendo-lhes o café da manhã, arrumando os que iam para a escolinha que ficava a duas quadras dali. Fez questão de estar bonita no momento em que o marido saiu para o trabalho. Cuidou da casa, das roupas das crianças, das roupas do marido, de todas as tarefas diárias com o pensamento distante. Custou a esperar pela chegada da noite. Pela primeira vez nos seus sete anos de casada pediu à vizinha que cuidasse dos filhos que acabavam de dormir, por uma hora, hora e meia, que ela precisava sair. Apesar da curiosidade que viu no olhar da vizinha, não lhe disse onde ia.

A mulher sabia que a janela do escritório do marido dava para a rua. Quando se aproximou, viu que as persianas estavam fechadas, mas que seria possível ver o que estava acontecendo lá dentro se conseguisse arranjar por ali qualquer coisa em que pudesse subir. Foi fácil conseguir uns tijolos no jardim da casa vizinha. A pouca iluminação da rua devido às árvores que cobriam as luzes dos postes cooperavam para que não fosse vista na espionagem. Com cuidado para não fazer barulho, subiu na pilha de tijolos e fez uma greta entre as persianas para que pudesse olhar dentro do escritório. Após olhar lá dentro, ela desceu com rapidez, e, correndo, sem olhar para os lados, atravessou a rua. Foi colhida por um carro preto que passava em grande velocidade. Socorrida por pessoas que andavam por perto ela não disse palavra alguma antes de morrer .

Terezinha Pereira
Enviado por Terezinha Pereira em 06/05/2005
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