Uma noche no El Apagón

Uma noche no El Apagón

Flavio MPinto

Serpentino andava numa naba sem tamanho. Pensava até em vender seus sapatos.

- Ainda bem que no tengo compromissos sérios e moro solito. Nomás, tudo bem. Dizia seguidamente aos amigos do Bar Pingüim.

Só vivia pendurando contas. E perambulando nos bares. E disparando dos cobradores.

- Cacho, me trás aquela prenhada caprichada e uma meia taça.

Era seu almoço quase meio dia de sexta-feira no Pingüim. Tinha saído meio escondido da pensão na Silveira Martins, após ser ameaçado de despejo por falta de pagamento.

E ficaria na rua até tarde da noite quando a D.Joaquina e o Seu Miguel estavam dormindo e poderia entrar com segurança na pensão.

Cabelo bem pretinho, liso e penteado para trás cheio de gomina, sapato preto e branco bem lustrado, calça e casaco branco e camisa bem passada e vincada, ia pulando nos suspensórios para a vida.

Mas aquela sexta-feira traria surpresas: já de manhã ao sair da cama enfiou o pé no orinol. Ainda bem que estava vazio, praguejou.

“Serpentino Maciel, teu dia de suerte es hoy”, disse para si mesmo.

Na parte da tarde, com uma nota de 100 cruzeiros novos, vai até o Sanz jogar na Quiniela e na Loteria Esportiva. Acreditava no seu taco e jogou no milhar duas vezes combinando número do sapato , camisa e calças com seu peso e altura.

Sábado era dia de carteado do Caixeral.

Ao meio-dia saiu rápido e faceiro da pensão, passou na rodoviária, subiu a Vasco Alves e caiu direto numa mesa no Ponto Chic. Dali para o carteado foi um pulo. Como não tinha dinheiro, nem Vale quiseram lhe fazer mais, não pode jogar.

- Segunda vão ver o que é bom prá tosse. Terão que me engolir! Me aguardem. E saiu esbravejando.

No entanto, começou acertando os jogos de sábado da Loteca.

“ É barbada. Só papinha pros times de São Paulo. Tudo Mumu. Tinham que ganhar mesmo”.

Foi dormir feliz e aguardar os resultados de domingo.

Acordou alegre e mal esperou os donos da pensão se ajeitarem na entrada e se mandou para a praça General Osório.

Manhã de domingo de abril fresquinha, temperatura amena, flor de especial na fronteira. Lá na praça, na sombra das árvores centenárias com seus amigos, xeretavam e se metiam na vida de todo mundo. Ninguém escapava. Nem o padre da Matriz.

À tarde vão terminando os jogos e Serpentino cada vez mais ansioso acertando todos. Não deu outra: ganhara na Loteria. Instala-se a felicidade no coração do Serpentino e logo reúne os mais chegados para comunicar o fato.

- Serpe, então vamos prá Peggy, fala Metiocol.

- Claro e é tudo comigo.

Quando chegaram na casa, a dona já sabia do fato e literalmente abriu as portas e a copa. Serpentino, Metiocol e mais dois amigos se esbaldaram.

Lá pelas tantas, o sortudo confidencia ao amigo que queria ir até o Apagón. Era desejo antigo.

Como não tinham dinheiro vivo, Peggy fez um gordo Vale , pois queria guardar uma plata, dinheiro grosso que havia entrado no dia e não tinha onde guardar e Serpentino, com certeza, seria um bom cofre. Gastaria, por supuesto, mas pagaria logo que saísse a bolada do prêmio. Na folga das meninas, segunda ou terça-feira, depositaria no Banco da Lavoura e estávamos conversados.

E a turma se bandeou para o El Apagón cada um com uma percanta. Serpentino enroscado com a Arvorecilda e Metiocol com a argentina Rodocleides, as melhores da casa.

Descem a Agraciada cantando La cumparsita tropeçando nas pantalonas, passam pela Sarandi e se aboletam na entrada do Apagón.

Serpentino, rápido no bolso, saca um maço de notas e paga entrada para todos.

- Vamos praquela mesa, meu bem, diz Rodocleides.

A estas alturas, Arvorecilda, bem assanhada, não largava o Serpentino e louca para que a luz se apagasse.

- E daí, Serpe, não vais me abraçar?

- Ainda não, deixa eu guardar energia.

Já sentados, pedem bebida.

- Negro, traiga uísque a todos, ordenou Metiocol ao garçom.

- Nacional o importado?

- Importado, claro. Y unas papas fritas.

Já sentindo boa clientela, o garçom volta rápido com oito doses de Scats Bar.

- Mas o que é isso? grita Metiocol ao provar ao bebida.

- Uísque brasileño, legitimo, señor.

- Ora, ora, ora, vamos tomar esse mesmo, diz Serpentino. Hoje tudo é festa.

- Um brinde ao meu amor Serpentino Maciel, grita a assanhada Arvorecilda.

Logo saem para dançar. A estas alturas o salão ainda estava claro. No escuro, mal se viam o casaco branco do garçom e os dentes de ouro do Serpentino e mais nada ante o único bico de luz negra.

O El Apagón caracterizava-se por ter suas luzes ora acesas ou apagadas. Nesta hora a “coisa pegava”. Ninguém era de ninguém e os pares se agarravam, pareciam um só. Os homens seguravam suas parceiras como podiam.

A luz apaga.

Serpentino não queria nem saber. Se atracava na Arvorecilda como se fosse a última música e que o mundo acabaria logo.

-Ai, ai, ai, tira essa lanterna do bolso, Serpentino, está me machucando, fala Arvorecilda ao ser fortemente abraçada. Era coxa com coxa, barriga contra barriga, peitos unidos, pernas e braços e até os cabelos se misturavam no tango de Gardel. E quando as vozes de Serge Gainsburg e Jane Birkin entram cantando Je t’aime mois non plus... então...

E a noite foi longa no El Apagón.

Saíram de lá quando amanhecia. Tropeçando nas pantalonas das moças a tempo de tomarem um bom café no Tupinambá.

Mas o caso é que chega segunda-feira a quantidade de ganhadores da Loteca é divulgada: nada mais nada menos do que 1534 em todo Brasil! Serpentino levou um susto, pois dava pouco mais do que um copo de Ñeja para cada um.

Um cobrador da Peggy já havia saído no seu encalço. Serpentino passou a esconder-se.

A cidade toda o procurava. Queriam saber quem era o tal ganhador.

Lá pelas tantas um vendedor da Quiniela passou a procurá-lo.

No hotel, o castelhano deixou recado e disse que era questão urgente. Tinha de encontrá-lo.

- Até o vendedor da Quiniela anda atrás de mim. Que foi que fiz? Tenho de fugir? Mas para onde? Como? Eram as dúvidas do Serpentino. Driblava todos, contorcia-se, escondia-se.

- Ainda mais esse castelhano? a Peggy? E agora?

Já pensara ir para o Upamaroti onde moravam seus parentes ou até para Pampeiro. Tinha também um irmão criando ovelhas no Passo da Guarda. Mas como sairia da pensão? Tudo se passava na cabeça do Serpentino.

Criou coragem. Vestiu uma gabardine surrada , colocou um chapéu e saiu porta afora correndo. Logo foi alcançado pelo castelhano da Quiniela.

- Don Maciel, tengo uma cosa mui importante a lhe decir!

- Não quero saber de nada, me deixa.

- Mas me ...

- Não, não e não. Me deixa.

Já estava fugindo na direção da subida da Vasco quando o castelhano gritou que ele havia ganho a Quiniela uruguaia e brasileira.

- Don Maciel, casi quebraste la banca. Y yo vino a trazer el dinero.

Serpentino não acreditava no que ouvia. Era muita música para seus ouvidos sedentos.

- Mas o que é mesmo?

- Si, ganaste los dos milhares, o de domingo e o de segunda. Primeiro e segundo prêmio. Que suerte , hombre!

- Tá todo dinheiro nessa pasta?

- No, solamente uma parte. Le traigo más tarde o que falta.

- Não acredito, não acredito que Deus seja tão bom comigo!

Serpentino deu uma coima ao vendedor e pediu para que não avisasse ninguém que havia ganho a Quiniela dos dois lados da fronteira. Pagou suas contas e ainda guardou uns trocos para tomar uns birinaites de vez em quando.

Ficou conhecido como o ganhador da Loteca e o maior cliente que o El Apagón já teve.