História do pequeno Guan

Capítulo primeiro

Aquele território parecia nunca deixar de ser estranho para ele. Guan tinha vindo das tribos dos velhos contadores de histórias e era muito pequeno quando isso acontecera. Agora não se lembrava mais quando e porque se desgarrara dos seus. Todos olhavam com estranheza o jovem escravo, mas acabaram por aceitá-lo porque à noite, depois do trabalho, contava histórias que eles gostavam de ouvir. Reuniam-se frente àquele estranho fogo azul que lhes estampava uma luminosidade esverdeada na expressão. Pelas palavras de Guan, viajavam até a origem dos tempos, dos sonhos e das conspirações mais terríveis que o planeta já tivera.

Escravo durante o dia, Guan era um príncipe a que todos se curvavam para o ouvir à noite. A gente do Território do Fogo Azul, belicosa e agressiva, vivia em permanente estado de sobressalto e maltratava qualquer estranho que se avizinhasse de seus grupos de conversa. Talvez isso acontecesse por se saberem vigiados a toda a hora pelos magistrados, que apareciam inesperadamente. Eram poderosos os magistrados e tinham a capacidade de transmutar sua aparência original em mil outras. Essas aparências variavam tanto que ninguém sabia quem era que os vigiava. Mas a maior habilidade mágica destes espiões do sistema era realmente a invisibilidade: sem que ninguém na roda do fogo azul se apercebesse, eles se aproximavam na noite quieta e se juntavam aos grupos. Às vezes, afastavam-se para a escuridão e reapareciam visíveis, embora visivelmente mascarados com um novo rosto e vestimentas diferentes. Chegavam a participar das queixas dos habitantes locais, afinal tão maltratados quanto Guan, e a alimentar os acalorados discursos de exortação à guerra dos grupos que propunham uma inconfidência, uma revolta ou uma fuga em massa.

Certa noite, Guan começou a observar que muitos habitantes desapareciam das rodas de conversa junto ao fogo azul para nunca mais serem vistos. Ainda perguntou por eles algumas vezes, mas ninguém soube responder.

Capítulo segundo

Quando, a cada noite de reunião para contar histórias, Guan começou a perceber que os habitantes mais entusiasmados com as idéias de libertação desapareciam, pensou que porque eram antigos nômades, facilmente se mudavam para outros lugares no deserto. Pensando melhor, e uma vez que nos dias anteriores pareciam tão comprometidos com a idéia de arquitetar uma conspiração, isso não fazia sentido. Com o passar dos meses e nos desabafos mais sigilosos, a verdade, sempre cercada de grande mistério, foi aparecendo: esses rostos conhecidos desapareciam porque eram aniquilados pelo sistema. O entusiasmo e a espontaneidade na exaltação à revolta era a garantia de pena de morte. Nada acontecera a Guan porque apenas contava histórias de territórios longínquos e de tempos passados. Ou ele pensava que era assim. Era certo que em algumas passagens de suas histórias que traduziam sonhos universais de liberdade, Guan tinha percebido olhares ressentidos suspensos de cada uma de suas palavras e gestos. A verdade, ele estava certo disso agora, era que quem falava demais morria. Também não se faziam perguntas com desenvoltura, e, nas mais das vezes, elas ficavam sem resposta. Da mesma forma, mencionar os nomes dos mais poderosos era proibido. Para aquele povo, saber o nome de alguém dava à pessoa um certo poder sobre o designado pelo nome. Proclamar o nome de alguém era sinônimo de intimidade e, portanto, de controle sobre o outro, coisa a que os habitantes comuns não tinham direito. Por ser considerada prática desrespeitosa, agressiva e ameaçadora, só os mais humildes, como Guan, tinham nome e eram chamados por ele. Em contrapartida, todos aqueles que tinham algum poder eram designados por números ou iniciais, sobretudo os magistrados. Se em conversa, alguém deixava escapar a menção a um número, o 14, o 17, o 20, o 11, o 13, o 1 o 23 ou o 24 desencadeava uma reação. (decifre estes números e decifrará a conspiração no próximo capítulo)

Capítulo terceiro

A cada dia, um número cada vez maior de habitantes se aproximava do fogo azul para ouvir Guan. Numa noite de muitas estrelas azuis, ele contou sua história e terminou-a com a seguinte frase: “Os rios são superiores ao mar porque vêm das montanhas, morada dos deuses. Mas até eles, em sua dignidade de rios, correm para oceano que lhes é inferior”. Os rostos azuis silenciaram em atitude de reflexão. Um deles pediu a Guan que repetisse o pensamento, e Guan assim o fez. Alguém perguntou o que aquilo queria dizer. Um outro, de olhar penetrante, dirigiu-se a Guan e perguntou-lhe quem era ele afinal. O rapaz ia responder quando um magistrado se apresentou, vindo do oco da escuridão e, de pé, respondeu por ele: aquele era Guan, o escravo contador de histórias. Sabia tudo sobre ele. O grupo dispersou rapidamente e o contador de histórias esgueirou-se com eles para dentro da escuridão. O 20 ficara sozinho diante do fogo azul, braços cruzados sobre o peito e, no rosto, uma expressão indefinida. Pensava sobre os rios e o oceano do contador.

Na noite seguinte, o contador de histórias contou a todos sobre a Esfinge de Tebas. Era o monstro que, plantado à entrada da cidade, trazia aos habitantes os maiores flagelos naturais, como secas, inundações e pragas que se alternavam sem trégua. Para poder entrar em Tebas, Édipo apresentou-se a ela para que lhe expusesse o enigma que ninguém até então decifrara. Ninguém que tivesse se apresentado à Esfinge sobrevivera para relatar qual tinha sido o enigma apresentado. Sabia que se não conseguisse, teria o mesmo destino dos peregrinos anteriores: ser lançado às profundezas abismais do Hades. Pausadamente e com uma voz que vinha do fundo dos tempos e fez tremer Édipo, a Esfinge perguntou-lhe qual era o animal que de manhã caminhava de quatro, ao meio-dia, com dois pés e, à noite, com três. Édipo ficou pensativo diante da Esfinge que aguardava em silêncio.

Capítulo quarto

Finalmente Édipo fixou os olhos no rosto esfíngico do monstro e respondeu-lhe que o animal mencionado era o homem: engatinhava de manhã, princípio da sua existência; era bípede na idade adulta e caminhava com a ajuda de um bastão ou uma bengala na noite de sua vida, a velhice. Havia decifrado o enigma. O que fez a Esfinge?, perguntaram os ouvintes. Conforme previsto, jogou a si mesma no abismo dos infernos ancestrais, para nunca mais voltar. Tebas estava livre do monstro pré-histórico, e novos tempos se anunciavam. Édipo foi levado ao palácio real como herói. O homem do enigma da Esfinge, explicou Guan, somos todos nós desde o princípio dos tempos.

Dizem os anciãos que os primeiros homens se arrastavam como animais. Depois adquiriram a dignidade altiva da verticalidade, livrando as mãos para todo tipo de habilidade e progresso. Se, entretanto, não souberem manter seus princípios, perderão a inteireza de espírito e, vergados sobre o peso da corrupção, serão obrigados a se apoiar em bengalas que podem ser outros seres corruptos. Corruptos, de maneira geral, são sempre bengalas solidárias e prestativas, o avô de Guan havia dito. Eles reforçam e consubstanciam os interesses de quem neles se apóia. Um dos ouvintes deixou escapar: Parece que ele fala de EL 1015!

EL 1015?, perguntou de volta o contador de histórias. Já o grupo arrumava suas trouxas e se retirava para a escuridão como se fugissem do diabo.

Capítulo quinto

Guan encontrou-se com um dos habitantes numa caverna. Evitavam a caverna de Platão porque sabiam que os magistrados apareciam por lá. Preferiram a caverna de Almiro, menos conhecida.

Tudo isto foi explicado a Guan por um dos habitantes num cochicho apavorado e interrompido inúmeras vezes. A cada interrupção, olhavam os dois para os lados e para trás, o que cochichava e o que ouvia, com a estranha sensação que alguém invisível estava por perto, tudo via e escutava.

Guan, que achava que o 20 era a autoridade máxima da região, aprendeu que, como ele, havia mais e, de fato, eles passaram a aparecer aos pares nas reuniões noturnas. Soube também que havia rivalidade pelo poder entre eles. Os magistrados não eram afinal o máximo do poder. Acima de todos eles, estava a palavra de EL 1015, o Supra-Magistrado, o Magnânimo ou simplesmente o Senhor, a quem obedeciam cegamente. Ninguém, nem mesmo os magistrados pronunciavam seu nome, e ele era o único a ser designado por quatro dígitos em vez dos dois reservados aos magistrados. A palavra do Senhor era sagrada. A um aceno seu, certos habitantes desapareciam do dia para a noite para nunca mais serem vistos.

EL 1015 comandava realmente os magistrados. Tinha quatro olhos e via a grandes distâncias. Exigia de seus magistrados fidelidade e reverência absolutas. Deviam comparecer ao Templo da Magistratura Inquisidora com constância diária e prestar-lhe contas de tudo que viam e ouviam. Embora EL 1015 fosse onipresente e, portanto, onisciente, essa prestação de contas diária era uma forma de controlar os magistrados. Estes viviam em constante competição entre si na tentativa de exibir sua competência diante de EL 1015. Os habitantes achavam que nenhum deles se interessava realmente pelo povo. O povo era apenas massa de manobra para exercitar seu poder.

Capítulo sexto

Naquela noite, Guan observou que a quantidade de ouvintes junto ao fogo azul era menor e que tinha vindo a reduzir a cada noite. Muitos estavam descontentes com tudo aquilo e esquivavam-se na escuridão, evitavam aparecer por lá. Muitos outros tinham migrado para outros territórios.

Guan contou-lhes então a terrível história de Édipo, o herói que se tornara rei de Tebas depois de vencer a Esfinge: seu pai, Laio, tinha sido responsável por trazer a pederastia para a Hélade. Ele e seus descendentes foram amaldiçoados por isso. Sem saber, porque desconhecia sua origem, Édipo matou seu pai e casou com a própria mãe de quem teve quatro filhos. Anos mais tarde descobriu quem eram seus verdadeiros pais. Ele, o magnífico rei de Tebas, furou os próprios olhos para não ver os horrores que tinha praticado. Estava agora reduzido a nada e abandonou Tebas como um mendigo. Sobre Édipo, o Corifeu havia dito: “Habitantes de Tebas, minha Pátria! Vede este Édipo, que decifrou os famosos enigmas! Deste homem, tão poderoso, quem não sentirá inveja? No entanto, em que torrente de desgraças se precipitou! Assim, não consideremos feliz nenhum ser humano, enquanto ele não tiver atingido o termo de sua vida e sofrido os golpes do destino”.

Quando Guan se deu conta, todos tinham dispersado, e EL 1015 estava a seu lado.

Capítulo sétimo

Que histórias contas tu, escravo? As histórias que ouvi de meu povo, Senhor. Sabias que são histórias perigosas? Perigosas, Senhor? Minhas histórias não contêm obscenidades, desrespeito ou fobia a povo algum ... São perigosas assim mesmo, podem levar este povo à rebelião contra mim. São apenas histórias, Senhor, e qualquer criança do povo do Fogo Vermelho as escuta e as sabe de cor. Como é o teu povo, escravo? Um povo pacífico, Senhor, um povo de uma só cara, respeitador dos bons costumes e da boa convivência. Quem governa o teu povo, rapaz? Os contadores de histórias são um pequeno povo, não têm chefe, Senhor. Não têm chefe? E quem mantém a ordem, quem impõe a lei? Os contadores aprendem a lei da boa convivência e dos bons costumes nas próprias histórias que contam. Isso significa, disse EL 1015, que são educados pela Literatura que divulgam? Como educam os habitantes deste território, Senhor? Aqui não há educação formal. Guan sentiu na voz do El um tom amargo. Tudo o que Guan ouvira ali tinha sido contado pelos habitantes. Nunca estivera presente a um discurso dos que eram acusados. Guan isnsistiu, Nesta comunidade eles não são educados? insistiu Guan. Não. Têm pouca formação moral, intelectual ou cívica. Por isso somos obrigados a vigiá-los noite e dia. Meu avô sempre dizia que a educação deve vir antes da repressão, Senhor. Escravo, és atrevido, mas diz-me. Como é aquela frase dos rios e oceano? É do meu avô, Senhor: Os rios, em sua dignidade de rios, correm em um nível superior ao do mar. Vêm das montanhas, lugar dos deuses. Mas até eles correm para o mar que lhes é inferior. Tu me lembras o jovem idealista que eu fui há muito, disse El 1015 como se pensasse alto. EL 1015 continuou absorto em suas próprias considerações: houve muito vandalismo neste território. Foi necessário impor regras severas para coibi-lo. Depois que a Magistratura Inquisidora se formou, os magistrados se enredaram nas leis que eles mesmos criaram. Perderam-se no labirinto infinito dos próprios julgamentos e votações. Guan nada respondeu, mas pensou que era triste a sorte de um governo que via todo o seu esforço e competência voltado para si mesmo e com um único objetivo, o pior de todos: o controle e a repressão da população. EL 1015 continuou: o território está quase estéril em sua produção. Para piorar, além de vigiar os habitantes, agora também intervenho nas questiúnculas menores entre magistrados. Depois de dizer isto, El 10 15 parecia irritado com o próprio desabafo diante de um escravo. Procurou algo nos bolsos. Não encontrou. Revistou o chão próximo ao fogo azul e, naquilo que parecia ser um gesto sem objetivo, apanhou uma pequena pedra do fogo azul e encostou-a na testa entre os quatro olhos. De imediato, EL 1015 fez-se da cor da própria noite e desapareceu. Guan ficou sozinho com o próprio espanto.

Capítulo oitavo

Guan começava a ser evitado por alguns dos habitantes. Tinha sido visto a sós com EL 1015. Isso podia significar que tinha tomado o partido dos magistrados e do próprio El. Outros tornaram-se extremamente solícitos com Guan, e o escravo passou a ser poupado dos trabalhos pesados. O contador de histórias decidiu ignorar essas reações e, nas noites seguintes, sempre frente ao fogo azul, relatou as historias da Odisséia, da Elíada e da Eneida, sabendo que estava sendo vigiado de perto por rostos novos, enquanto os velhos companheiros de histórias continuavam desaparecendo. Teriam sido mais ordens d`EL? Ele não sabia. Contou-lhes ainda a história de um poeta que sofria da mesma solidão de Deus quando criou o homem. O poeta captou a idéia do mundo fragmentado de sua época. Não havia pares à altura da sua intelectualidade com quem trocasse idéias. Então, ele criou dentro de si vários outros poetas, com outros rostos, aparências e nomes com quem pudesse conversar. Algumas das criaturas do poeta discordavam das idéias do próprio criador. Assim mesmo, aquelas Pessoas mantinham um diálogo perfeito, embora discordante, porque o criador lhes dava o direito à palavra e ela era legítima viesse de quem viesse. Os habitantes aplaudiram, uns mais entusiasmados, outros ainda indecisos.

Capítulo nono

Dias depois, Guan foi à Caverna de Almiro. Soube, então, que EL 1015 não era o poder máximo, mas um de muitos que como ele obedeciam às determinações do grande TUKRO. Este por sua vez estava aos serviços de ELGOOG que obedecia às leis gerais do LATIPAC. Quanto mais se estendia a história daquele território, menor ficava a estatura de EL 1015 em importância, e menores ainda seus magistrados que pareciam dispostos a se matarem por migalhas de poder.

Isto lembrou a Guan a história do paradoxo de Zenon de Eléia, do qual falou numa das últimas noites. Esse filósofo afirmava que, para alguém se deslocar de um ponto A a um ponto P, primeiro precisava percorrer a metade desse percurso. Mas, antes de percorrer a metade do percurso, precisava percorrer um quarto do percurso. Entretanto, para percorrer um quarto do percurso, deveria começar por percorrer um oitavo do percurso, oitavo esse que exigia que o caminhante palmilhasse antes um dezesseis avos da distância, e por aí fora até o infinito. Assim também é o poder organizado e instituído, continuou Guan diante de olhares interrogativos.

Capítulo décimo

Guan dirigiu-se ao descampado do fogo azul. Além dos ratos do deserto, não havia vivalma ali, mas o jovem Guan falou como quem se dirigisse a uma multidão. Sabia que El 1015 estava por perto, embora invisível ... O líder, cujo poder vem da admiração popular, não precisa andar caminhos longes. São os caminhos que vêm naturalmente a ele. Em contrapartida, o líder, cujo poder é burocratizado, programado e instituído para defender o próprio poder, está cada vez mais longe daquele que deveria ser seu principal objetivo: proteger e assistir a população. O poder, uma vez instituído, nunca mais consegue sair do palácio, porque delegar poderes exige saber a quem; isso exige critérios de seleção, que exigem leis, horários, regras, que, por sua vez, exigem vigilância e observância dos critérios, leis, regras e horários e punições para quem não os cumprir. Finamente, todas essas medidas levam a dissidências. Assim, existências inúteis se consomem em debates que levam o poder a um ponto cada vez mais longínquo do povo. Uma mulher loira apareceu e rogou-lhe pragas; gritou-lhe impropérios; suas histórias estúpidas e incompreensíveis eram as responsáveis pelo desaparecimento dos habitantes; suas idéias e charadas absurdas assustavam todo mundo e punham a todos em perigo. Depois que ela se foi, Guan olhou em volta repetiu para si mesmo: os rios, em sua dignidade de rios, correm em um nível superior ao do mar. Vêm das montanhas, lugar dos deuses. Mas até eles correm para o mar que lhes é inferior. Em seguida, Guan passou lentamente a mão na testa entre os olhos.

E o silêncio se fez. Essa foi a última vez que viram Guan.

Texto patenteado sob o número 1015

Bibliografia

Bingre, Anabela. A biografia de Guan. Ponta Porã: TDC Editora, 2006.

Anabela Bingre de Négrier
Enviado por Anabela Bingre de Négrier em 20/05/2006
Código do texto: T159672