O HOMEM DO POÇO

Despediu-se do velho Vieira, levou-o ao portão da casa. Aparentemente indiferente ao assunto em pauta, o Vieira apenas reagia ao cumprimento da chegada e ao apertar de mãos à saída. O que ficava entre estas duas manifestações de vida diluía-o ele, o Vieira, numa expressão ausente desta vida, um menear quase imperceptível de cabeça, reação fática a que a educação obrigava, quando estavam só os dois à mesa. Ressuscitava de sua letargia ao despedir-se no portão, como tinha acabado de fazer. Falar com ele era um permanente monólogo, suspirou Zacarias Papaki enquanto se dirigia para o quintal.

Espreguiçou-se, alongando os braços acima da cabeça. Instalou-se de pernas cruzadas sobre a laje do velho poço no fundo do quintal. Eram as seis da tarde. Olhos fechados, começou então o ritual de meditação, a princípio silencioso, depois um canto, melhor dizendo, um mugido monotônico, grave e tão prolongado quanto lhe permitia o fôlego.

O poço era uma imensa caixa sonora abaixo da laje, megafone que lhe potencializava a voz. O corpo todo vibrava no que lhe parecia ser uma sintonia cósmica integradora. Às primeiras vibrações da voz, espantaram-se os pássaros em revoada súbita. Calaram-se incrédulas as cigarras e no instante seguinte, o mundo veio abaixo.

Se não foi o mundo todo, foi um metro quadrado dele, aquele metro quadrado que não pôde suportar o peso e a vibração desta estranha existência, cheia de leviandades, como esta de pôr-se um homem a cantar sobre a laje rachada de um poço condenado pela erosão. Soterrado pelas velhas paredes minadas do poço, o da meditação morreu ali mesmo sem ai nem pio.

De certo, não era este Zacarias pessoa observadora, pois que os sinais da natureza não são coisa que se ignore. Passarinho é bicho assustado à toa; que ele os ignorasse, vá que não vá, mas calar cigarras é feito inédito, digno, portanto, de um pouco de atenção. Mais que não fosse, deveria um homem, dado a cantos e meditações, ver onde pisa. Enfim, não viu. Agora já foi. Morto e sepultado nos escombros.

Ato contínuo, refazem-se do susto as cigarras, e o mundo continua com uma alma a menos, apesar de que pouco se sabe da matemática das almas, para dizer se foi subtração aqui, soma além, ilusão coletiva ou universal. Ninguém viu, exceto as cigarras e os pássaros, mas esses respeitam as leis da vida e da morte sem fazer dramas.

Estranhou o encarregado do armazém que o patrão não aparecesse no dia seguinte, a pedir contas, a verificar tudo, como era de costume, a fazer telefonemas para a capital, apesar de o armazém ainda ter muita mercadoria para distribuir no mercado.

Telefonou para a casa do patrão, mas ninguém atendeu. Depois de conferir todas as seções e de fechar o armazém da distribuidora, foi lá à tardinha. Tudo o que teve como resposta aos repetidos chamados foi o silêncio.

No segundo dia, depois de vários telefonemas para a capital, o encarregado concluiu que ninguém sabia dele e que o sr. Zacarias tinha desaparecido sem dar satisfações, imagine-se. Era verdade que Zacarias nunca falava de sua vida privada, mas à distribuidora era muito dedicado.

Na quarta-feira, foi a diarista à casa de Zacarias e fez a limpeza de rotina. Tinha a chave da casa onde ia a cada dois dias. Trocou lençóis e toalhas, cozinhou a tarde inteira e deixou várias refeições separadas em pequenas caixas que guardou no gelo. Estranhou haver no frízer tantas caixas por abrir. Mas afinal o homem estava fora mesmo, e ela não era muito de especular sobre os outros nem sobre a vida. Fazia o seu trabalho, era tudo. Quando o sumiço já levava uma semana completa, o encarregado do armazém da distribuidora achou por bem falar à polícia. Fez-se a ocorrência e, depois de uma visita rápida, a casa foi fechada pelas autoridades e as chaves entregues ao encarregado do armazém.

Foi assim, sem lágrimas nem velório o fim de Zacarias. Ainda houve umas perguntas, a princípio preocupadas, intrigadas depois, algumas hipóteses, umas quantas especulações descabidas sobre falência e dívidas. Mas, depois de dois meses, era assunto morto, como o próprio Zacarias, duas vezes morto, no fundo do poço e na memória de todos. Poderia mesmo dizer-se mortíssimo, não fosse por este texto que nos obriga a trazê-lo de volta à vida e ao canto das cigarras lá fora.

Anabela Bingre de Négrier
Enviado por Anabela Bingre de Négrier em 20/05/2006
Código do texto: T159829