A relatividade da honra

A peça de teatro infantil acabou às seis e trinta da tarde. As crianças quiseram comprar pipocas à saída. O movimento de pessoas e de carros era intenso, mas rapidamente tudo se acalmou e era evidente que o pequeno jipe Willys não estava onde o tinham deixado. Nem era truque dos bruxos da peça, garantiu a mãe que revirava as chaves do carro entre as mãos. Desaparecera mesmo. Ficaram os quatro especados na escadaria.

E agora, mãe? Eram apenas quatro quarteirões. Foram apé.

Sensação incômoda, revoltante essa de ser espoliado. Logo o jipinho Willys, o símbolo de aventuras africanas, o cavalo das dunas nas praias de Santa Catarina, um trator no mato. Fazia parte da família.

Deram parte na polícia. Sem resultado nem notícia. Durante os dois meses seguintes, quando saíam à rua, não conseguiam evitar inspecionar de perto cada jipe que aparecia. Passou a ser rotina segui-los até ter a certeza de que não era o deles. Sílvio conhecia cada detalhe na chaparia, cada risco na pintura do seu velho jipe. As crianças gritavam dentro do carro novo: um jipe! Lá! É ele! Pintaram de outra cor!

Não era. Nunca era. Pouco provável estar na mesma cidade.

Quatro meses depois, Sílvio, mais conformado com o episódio, ficou surpreso, quando entrou na avenida Marechal Floriano e viu o jipe. Alguém desconhecido o estacionara em frente de uma casa comercial. Podia ser engano. Deu a volta lentamente. Passou a seu lado, e nem foi preciso parar. Não havia dúvidas, era o velho Willys. Seguiu em direção à avenida principal e explicou a dois guardas de trânsito o que se passava. Foram os três até o carro roubado. Os policiais aconselharam-no a fazer-se passar por um delegado da polícia, enquanto eles dariam a ordem de prisão. Foi o que fizeram, logo que o homem saiu da loja e se aproximou do jipe, coxeando.

Em poucos minutos, estavam todos no pátio da delegacia, para a verificação do número de chassi, do motor e da documentação, que Sílvio fora buscar às pressas. Caminhava agora desolado em volta do carro. Estado deplorável. Tinha sido desmontado aos poucos, provavelmente, para venda das peças que já não se fabricavam mais; as rodas não eram as mesmas, os pára-lamas de outra cor e ferrugentos; o jipe estava sem a capota e sem os bancos; um caixote de madeira improvisava o assento do motorista.

Placa falsa, ilegal o uso de gás de cozinha como combustível, carro comprovadamente roubado, concluía o delegado, esfregando o queixo. Passaram para uma sala apertada. Esperaram um escriturário sentar-se calmamente, como quem tem todo o tempo do mundo, e registrar a ocorrência. Uma hora depois, o delegado começou um interrogatório indeciso e engasgado como se fosse o primeiro de sua carreira. O infrator respondia às perguntas.

Era evidente que Sicuta, assim o chamavam todos, era conhecido no círculo policial. Cortava as respostas, para cumprimentar cada agente que entrava ou passava pela sala. Sílvio observava-o calado. Figura grotesca. Sofria de lepra seca. O mal era evidente em seu corpo mutilado. Faltavam-lhe vários dedos nas mãos, e o pé esquerdo tinha sido amputado. Toda a perna acabaria sendo retirada também, alguém fez questão de dizer a Sílvio discretamente. Alterações purulentas no nariz, na boca e nas orelhas anunciavam a continuação progressiva do estrago.

O delegado, homem de carnes balofas e cansadas, na profissão de ali estar, insistia. Sicuta defendia-se. Falava pouco: tinha comprado o carro, não sabia que era roubado quando o comprara. O outro aceitava a resposta como convincente. Pausa para enxugar o suor das mãos, do rosto, do pescoço. Não era o irmão de Sicuta justamente o Dr. Zezinho, o senhor diretor do Detran*?

Ele mesmo, o mano Zé. Se eu ao menos desconfiasse que era roubado! E repetia: comprara o carro a um paraguaio na confiança. Trabalhava, dizia ele, na compra e venda de jipes há vinte anos. Nunca aquilo lhe tinha acontecido antes, jurava a pés juntos. Ajeitou nervosamente o corpo na cadeira. Um dos policiais parecia incomodado com o interrogatório e dirigiu-se a Sílvio:

O Senhor é que é o proprietário? A um gesto de assentimento de Sílvio continuou agressivo: e para que quer essa merda velha e desmontada de volta? Espere aí! Provei que sou o proprietário. Estão aí os documentos. É um direito, direito meu! O que é isto? Quem rouba diz que não sabe do roubo, e ao proprietário perguntam-lhe para que quer o que é seu? Não sou obrigado a responder a um absurdo desses!

A sala calou-se, e reação fazia-se tardar. Irritado, Sílvio recolheu os documentos e as chaves: o carro é meu. Eu mesmo o encontrei e vou levá-lo para casa agora.

Acordado do marasmo, atacado de urgência súbita, o delegado queria a ocorrência assinada. Sílvio recusou. E a queixa? O senhor faz uma queixa e depois retira? A queixa está aí faz quatro meses, e o que é que fizeram com ela? Fui eu que encontrei o carro! O delegado reagiu: É por essas e outras que não se pode trabalhar nesta fronteira! Palhaçada! Como é que eu fico? O Senhor, delegado, fica como esteve nestes quatro meses em que o carro andou sumido. Com licença. Boa tarde.

Dois dias depois, Sicuta apareceu na casa de Sílvio. Trazia dois pára-lamas novinhos. Encostou-os no portão, afastou-se sorrateiro, o mais rapidamente que sua condição de manco permitia, e sumiu dentro de um novo jipe, sem dar tempo a conversa. Começava assim, um vaivém diário no portão da casa. Alguém chamava, a dona da casa ia ver quem era e acabava com um carburador nas mãos. Em poucos dias, chegaram calotas originais, bancos, retrovisores e várias peças do motor, difíceis de achar. Parecia que não terminava. O homem conhecia de cor a relação do que havia trocado ou tirado do carro. Sempre que Sílvio chegava a casa, ouvia um relatório sobre a devolução das autopeças.

A mulher comentou que aquelas aparições sinistras assustavam as crianças, testemunhas circunstanciais, desde o início do caso. Mal o homem chamava no portão, era o bicho papão em pessoa que se apresentava: é ele, é ele, é o veneno! Além do mais, a presença de Sicuta começava a minar de constrangimento o sossego da família, porque lhes ocorreu que um número incalculável de jipes Willys poderia estar sendo roubado, para que o homem, envenenado no nome e na vida, conseguisse repor peças tão raras. Com uma determinação que parecia inabalável e seguindo um critério que só ele mesmo conhecia e se impusera, Sicuta reaparecia uma e outra vez mais. Agora vinha com uma capota de lona.

Antes que o homem desaparecesse dentro do carro na rua, Sílvio agradeceu em voz alta para que o escutasse onde estava: a questão estava encerrada, não queria mais nada, dava-se por satisfeito, tudo em ordem.

Sem uma palavra, e sem dedos a mão que levantou, concordando, o homem sorriu e despediu-se.

*Detran - Departamento de Trânsito

Anabela Bingre de Négrier
Enviado por Anabela Bingre de Négrier em 21/05/2006
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