L´amour

Não sei que nome melhor poderia dar a este pequeno texto senão este apresentado. Na verdade o nome veio do inconsciente, sendo responsável por isso a música L'hymne a L'amour que ouço enquanto ainda sinto as mãos sujas de sangue, mesmo as tendo lavado a ponto de sentir que esfregava os ossos, e porque este não seria um nome perfeito?

A palavra amor já é auto-explicativa, mas somente amor seria algo simplista demais, normal demais. Não seria forte o bastante para explicar o meu amor.

Dizem que os franceses são a nação mais apaixonada que existe, suas cidades são conhecidas como românticas, e o movimento labial ao pronunciar tal palavra é quase um movimento sexual. Este é o significado de meu amor. Avassaladoramente apaixonante, estupidamente romântico e o principal, rusticamente sexual.

Poderia ficar aqui por horas a escrever e tentar comparar esse forte sentimento que tenho dentro de mim para que vocês possam melhor entender, porém seria inútil, homem ou mulher algum no mundo conseguiria entender com precisão o que o amor é pra mim. Portanto não perca seu precioso tempo em tentar entender-me, faça melhor do que eu fiz, corra, ande, vá de carro ou mesmo ligue para a pessoa que você mais ama e que quer ter ao seu lado sempre e diga isso para ela. Não tema em não sentir a reciprocidade que acha que merece, amar é solitário, é cravar uma faca no peito e ainda sorrir.

E há outro motivo que me faz correr com este escrito também, há dois corpos mortos sobre a cama no quarto ao lado. Preciso me decidir o que fazer com eles.

Eu tenho um grande amigo... tinha, melhor dizendo, o Alex. Amigo para qualquer e de toda hora. Vivemos juntos a infância de muitos sabores, a pré-adolescência com o surgimento de espinhas intermináveis e uma adolescência com algumas brigas. Mas quem é que nunca brigou com o melhor amigo? Todos precisamos de cicatrizes, senão não foi amizade de verdade, com certeza só foi um jogo de interesses. Ficávamos alguns dias sem nos falar e olhando de cara feia um para o outro, e então do nada voltávamos a ser como éramos. Na verdade voltava melhor do que era, pois nossa amizade parecia ganhar uma proteção invisível a cada reconciliação.

O que nos separava era apenas uma casa, uma casa de aluguel que ficava entre a casa dele e a minha. Os vizinhos tivemos muitos, os que mais duraram foi um casal ocupadíssimo, raramente víamos eles em casa, e depois de uns seis meses simplesmente suas coisas não estavam mais lá, soubemos que tinham se mudado pois a placa de aluga-se havia voltado a ser colocada. Tivemos vizinhos de várias crenças, raças e até estrangeiros, mas poucos tinham filhos da nossa idade e quando começávamos a nos conhecer se mudavam. Porém Alice foi um caso aparte, um anjo de discórdia, mas também um dos motivos de você querer estar vivo, mesmo que seja apenas para ficar observando sua beleza.

Foi em uma tarde de sábado, meados de março, o céu estava lindo com aquele tom forte de azul, cinza e negro, uma chuva estava a caminho e foi debaixo desse céu pesado que os novos vizinhos vindo do sul chegaram e descarregaram sua mudança. Ficamos Alex e eu sentados na calçada de casa vendo descer os pertences do caminhão, eram pessoas contratadas que fizeram a mudança, sabíamos disso pelo uniforme que usavam. Da família apenas o Senhor Rafael estava ali, dizendo pra onde ia cada caixa.

As caixas estavam acabando e as primeiras gotas grossas de chuva começavam a despencar do céu quando um carro parou do outro lado da rua, de lá desceram Dona Gisele e uma garota de cabelos de fios de ouro, ela simplesmente atravessou a rua correndo e entrou na casa, foi rápido, tão rápido quanto os raios que iluminavam o céu, mas eu já me sentia apaixonado por Alice. Alex também.

No domingo tínhamos almoço na casa de meu tio, apesar de eu adorar esses almoços o que eu mais queria mesmo naquele dia era voltar logo pra casa, me juntar a Alex e investigar a nova vizinha.

Para meu desespero total aquele foi um dia especial, minha tia de outro Estado estava a passar uns dias na cidade e o que era para durar apenas o almoço durou até a janta.

No caminho para casa já planejava o que faria quando chegasse, ia correndo para casa de Alex para saber como foi o dia. Porém ao chegarmos eu vejo a família de Alex conversando com a família de Alice na calçada, mas não vejo nenhum deles. Meus pais se aproximam e entram na conversa e antes mesmo de eu perguntar me avisam que Alex e Alice entraram para ela lhe mostrar... O mundo parou naquele momento, perdi os sentidos e nem soube o que ela ia lhe mostrar. Aquele foi o início de toda a tragédia que ocorreu hoje.

Voltaram em risos e então fui apresentado a Alice. Naquela noite ficamos os três conversando até tarde da noite sentados na calçada, nos conhecendo e nos apaixonando um pelo outro.

Durante aquele mês deixamos de ser uma dupla e nos tornamos um trio, fazíamos tudo junto, ficamos tão próximos como se ela sempre tivesse morado ali.

Alex e eu não dizíamos absolutamente nada sobre o assunto, mas sabíamos que estávamos com um problema. Os dois gostando da mesma garota, pelo menos era o que parecia, e ela não dava demonstração de gostar mais de um do que do outro.

Em abril fomos a uma festa na casa de um amigo, os pais dele haviam deixado a casa por conta dele aquele fim de semana para fazer uma festa de aniversário. Consegui o carro com meu pai e lá fomos os três. Particularmente aquele dia Alice estava radiante como se o próprio sol radiasse de seus cabelos, uma blusa leve encostava de leve em suas curvas, e a maquiagem que tinha feito em si mesma realçava ainda mais sua beleza facial. Alex parecia um galã de novela, mas para ele era fácil, tinha um corpo atlético e sorriso que conquistava a todos, então qualquer roupa que vestia ficava boa, desde as simples que eu via todo dia como as roupas de dia de festa. Somente eu me sentia impróprio, mas nada que afetasse uma noite de festa.

Naquela noite bebemos bastante, inicialmente porque parecia não fazer efeito, depois porque a bebida estava ótima.

Foi nesta noite que ela disse que nos amava.

Estávamos sentados no sofá eu e ela apenas, quando Alex chega com mais bebida, distribui entre a gente e se senta no braço do sofá. Erguemos os copos e ...

- Um brinde eu proponho – disse eu.

Alex também levanta o copo. – Ao que brindamos?

- As coisas boas da vida - digo eu.

- As coisas prazerosas da vida você quer dizer – diz Alex.

- Aos dois homens que eu amo nessa minha vida – diz Alice e levanta o copo olhando para nós dois.

- Ei garota! Também te amo – disse Alex e dá um abraço nela. Então ela olha para mim e pergunta:

- E você não nos ama?

- Só quero dizer que amo alguém quando eu tiver a certeza de que o que eu sinto seja amor puro, até lá... eu adoro vocês seus canalhas.

Abraçamo-nos e rimos muito.

Mais tarde eu vi uma morena linda chegar em Alex. Foi engraçado, pois ela para ele com cara de espanto e disse – Ei! Essa boca é minha - e lascou um beijo nele. Os dois encostaram na parede e ficaram nos amassos. E eu fui para outro canto da festa.

- E aí? Está com sorte como o nosso amigo ali? – disse Alice se aproximando de mim e apontando para Alex.

- Não beijei ninguém ainda. E acho que vou ficar sem beijar.

- Só vai se quiser! Com uma boca linda dessa é até um desperdício – e me lança um sorriso safado.

- Se acha um desperdício porque você não aproveita?

- É pra já.

Não acreditei naquilo. Juro que demorou para cair a ficha. Ter aquela boca linda e macia na minha era um sonho. E foi mais sonho ainda quando ela disse que queria me namorar, aceitei na hora claro.

A amizade entre nós três a partir desse momento muda um pouco com o Alex se afastando um pouco da gente. Não queria isso, não queria ele longe de mim, eu precisava dele tanto quanto antes, então sempre eu insistia para ele sair com a gente. Era gostoso ter ele por perto enquanto eu estava sendo feliz. Mas ele foi se afastando aos poucos para não sentirmos a diferença.

Umas semanas tinham-se passado quando Alice falou comigo sobre o Alex.

- Você não acha que ele está diferente?

- Não sei. Não tenho reparado muito nele ultimamente.

- Será que é algum problema com garotas?

- Acredito que não. Ele é bonito, inteligente, tem aquele sorriso perfeito, não creio que seja problema com garotas, a não ser que alguém arrebatou o coração dele e não está mais querendo.

- Por que você não fala com ele?

Eu disse que iria, mas demorei um pouco além e quem veio falar comigo foi ele.

Sabendo que Alice ia ao grupo de orações todas as quartas ele apareceu no meu quarto com os olhos marejados, não chorando, nunca o vi chorar, mas estava com os olhos vermelhos. Sentou ao meu lado na cama e ficou mudo apenas me vendo jogar vídeo game. Logo desliguei a televisão e coloquei uma música para nós.

- E aí, tudo bem contigo?

- Mais ou menos.

- Precisando desabafar?

- Só estou precisando de uma companhia que me dê segurança.

Confesso que fiquei surpreso. Nunca havia passado por minha cabeça que ele me achava um cara seguro. De nós dois sempre fui o mais medroso sempre. Nesse momento senti algo se aquecer dentro de mim, mas não sabia o que era.

- Ei, se precisar você sabe que tem um amigo aqui não é.

- Sei sim, e é por isso que estou aqui.

- Não quer desabafar mesmo?

- Eu acho que consigo contornar isso sozinho, caso eu não suporte aí eu te chamo para dar uma mãozinha.

Estendi a mão para ele e o puxei para ficar em pé. Então, usando do movimento de alavanca que formamos, ele me puxou para ele e me envolveu nos seus braços me dando um abraço como nunca havia dado. Nosso último abraço de amigos. Ficamos assim por um tempo não mensurável, apenas falando com os nossos corpos e sentindo o coração bater um no peito do outro. Senti-me estranho, porém incomensuravelmente feliz.

- Desculpa cara.

Não entendi, naquele momento, o real motivo das desculpas, só disse que estava tudo bem e ficamos calados novamente.

É tão doloroso lembrar desse momento agora que não consigo mais prender as lágrimas. Desculpem-me...

Voltei.

Precisava de um pouco de água.

Parei uns instantes na frente do quarto para observar o sono de meu amor e acredito que tenha encontrado uma forma de como esta estória vai acabar, mas antes devo preencher a lacuna que deixei até o dia de hoje.

O mês de maio trouxe consigo um ar gelado. Alex voltou a sair com a gente e ficávamos contentes em tê-lo de novo conosco. Às vezes fazíamos sessões de cinema em casa, encolhidos debaixo de edredons tomando chocolate quente e comendo pipoca feita na hora. Mas também saíamos ver gente. Pelo menos uma em cada vez que saíamos alguma garota dava em cima de Alex, ele olhava para mim e então retornava negativo para a garota. Naquela época acreditava que ele olhava para mim, mas eram os olhos de Alice que ele buscava.

E junho chegou rápido. Quadrilhas, quermesses e arraiás diversos aconteciam.

Hoje nossos pais combinaram de ir para um lugar destes. Mas fica do outro lado da cidade, é um evento beneficente no qual a mãe de Alex esta trabalhando. Até esta tarde, iríamos todos, porém Alex disse que não iria mais, tinha um compromisso com a garota com quem ia sair, aniversário da avó dela ou algo assim, talvez mais tarde passasse por lá e a apresentaria para nós. Era o começo da mentira.

Faltava pouco tempo para irmos quando fui à casa de Alice buscá-la. Ela estava debaixo do edredom, não se sentia bem e por isso não iria mais. Na hora minha resposta foi a de que não iria também, ficaria para cuidar dela, porém ela insistiu comigo, que aliás já estava até pronto. Mas as mulheres são habilidosas na arte de mentir e persuadir. E ficou certo de que eu iria, porém voltaria mais cedo do que os outros e lhe traria prendas das barracas pelas quais eu passasse e me lembrasse dela. Antes de sair ainda ela me pediu um beijo. Aquele foi um beijo cheio de culpa, mas eu ainda não devia saber, então não senti o veneno nos seus lábios.

Saímos com o carro pesado, não que houvesse muita gente, estávamos só a família, o peso que sentia a mais vinha da minha culpa em largar minha namorada doente em casa e sair passear. Até que não suportei mais e pedi para meu pai parar o carro, iria voltar e ficar com ela. Voltei para casa andando e quando ia me aproximando eu vi Alex entrar na casa de Alice. Na minha cabeça ingênua ele foi lá ver como ela estava antes de sair. Como fui tolo.

Entrei na casa sem fazer barulho, pretendia pregar um susto em ambos e depois riríamos juntos. Conforme fui me aproximando do quarto escutava sons diferentes do que era para eu escutar. Pequenos estalidos e não havia conversa. Então escuto um gemido falso vindo de Alice e ela diz:

- Ah! Eu te amo Alex.

Minhas pernas perderam as forças e me sentei no corredor ficando apenas a ouvir os estalidos que eu liguei a beijos. Não era possível estar acontecendo isso. Eu estava dormindo e tendo um pesadelo, só podia ser isso. Não sabia como agir, então arrisquei-me e olhei para dentro do quarto que estava sendo iluminado apenas por um abajur de cabeceira. Alex estava nu sobre o corpo dela, era um corpo bonito, muito mais do que eu podia imaginar.

Voltei para o abrigo do corredor, de onde eu não poderia ver tal cena, e me perguntei novamente o que deveria fazer. Dessa vez uma imagem limpa veio a minha cabeça, todos os movimentos desenhados passo a passo como uma story board. Saí na quietude e fui para minha casa.

Fui direto ao quarto de meus pais. Na parte de cima do guarda roupas havia uma caixa de sapato escondida no fundo, enrolada em um pano branco e coberta por roupas velhas. Puxei com cuidado, tinha visto meu pai mexendo ali várias vezes, até já tinha brincado com aquilo uma vez, mas o revolver era algo proibido dentro de casa, somente em casos extremos meu pai dissera. Esse era um caso extremo. Extremo até demais. Desculpe pai por ter feito besteira.

Carreguei a arma e voltei para casa de Alice.

Sabe, notando agora que olho para o revolver ao meu lado, tenho a certeza de ele foi inventado por um homem. Alguém já notou o formato de um revolver? Ele tem o formato de um falo, talvez o inventor não tivesse um de bom tamanho ou não conseguia deixá-lo ereto e duro, então criou algo semelhante ao que desejava. Criou algo poderoso o bastante para matar e o fez a semelhança do órgão masculino para mostrar a todos que o homem é o mais forte e mais irracional dos animais.

Voltei e fiquei inerte na porta olhando-os. Transavam como amantes, seria uma bela cena se os atores personagens não fossem minha namorada e meu melhor amigo. Gemiam baixo e ritmicamente juntos o que me deixou excitado de certa forma.

- Eu te amo.

Foi o que eu disse e o que eles ouviram antes do primeiro tiro, que acertou a cabeceira da cama. Ele saiu de dentro dela ficando os dois lado a lado. Na seqüência foram mais três tiros, não sei em que ordem, mas um acertou o abdômen de Alex e os outros dois foram parar um na perna e o outro próximo a garganta de Alice.

- Eu disse que eu te amo – o eu te amo saiu em voz alta junto dos

outros dois tiros que dei.

Alex agora estava com o peito sangrando também, o outro tiro não sei onde foi parar. Não me importava mais.

- Eu descubro que te amo e você faz isso comigo? – minha voz pareceu mais ríspida, porém já era um pedido de desculpas.

Aproximei-me da cama e peguei sua mão, tentei tapar com a minha outra mão o orifício que sangrava, foi inútil. Olhei para seus olhos que me fitavam, a boca entreaberta era um convite para o último beijo. Fui encostando meus lábios lentamente, sentindo sua respiração fraca ainda a existir, beijei cada centímetro delicadamente sentindo o gosto mais maravilhoso do mundo, aquele era o gosto de um beijo de amor. Meu coração gritava dentro de mim, sangrando e doendo com a estaca que eu mesmo havia cravado.

- Será que é possível morrer de dor de amor? – disse eu para um quarto onde só as paredes pareciam me ouvir. – Porque se não for, eu vou perecer aos poucos sem você aqui, como um rio que perece por falta de chuva.

Tentei puxar seu corpo para mim para abraçar uma vez mais, porém o sangue e o suor do sexo haviam deixado o corpo liso, escorregadio, que voltou a ficar deitado na cama. Fiquei mais algum tempo com as mãos a acariciar seu corpo morto e então fui ao banheiro esfregar as mãos para tirar o sangue que ia secando em mim. Precisava escrever o que tinha se passado aqui. Precisar contar sobre o meu amor. Achei o laptop e aqui estou a escrever.

Se a polícia não chegou aqui até agora quer dizer que os vizinhos não se incomodaram com os tiros, ou os tomaram por simples rojões que são soltos a todo o momento nessa época.

Já que creio não estar aqui quando chegarem, peço perdão aos que eu faço sofrer, sei que não há mais volta naquilo feito, mas saibam que compartilho do mesmo dilaceramento que sentem por dentro, por favor, não me julguem o único culpado disso tudo, a culpada maior é a doença do amor que me consumiu em instantes, me fez doente, irracional e possuiu meu corpo como um demônio possui uma virgem.

Meu amor está morto no quarto ao lado, portanto, estou morto também.

Meu físico ainda teima a permanecer aqui, mas a carne é fraca e obediente, vai comigo onde eu ordenar e eu estou a ordenar que ela volte ao pó de onde veio.

No revolver não há mais balas. Tampouco sobrou algo na caixa de sapato. Porém, encontrei no armário do banheiro alguns comprimidos que espero, me façam dormir logo, para não precisar mais acordar.

Estou cansado. Sinto meu corpo esmorecer aos poucos, deve ser o efeito das drogas. Então preciso ir agora. Vou estar deitado ao lado de meu amor e esperar que venha me chamar para que eu vá com ele para onde for.