O cirrósico Hepático

O Cirrósico Hepático

Dr. João, um humilde médico, clínico geral, estava em seu consultório pensando com seu bigode no caso da paciente que acabara de sair, quando entra sua secretária com uma cara mais triste do que afobada, anunciando que “o homem” estava na sala de espera aguardando a vez de ser atendido. Prontamente, com um sorriso sacana como que dizendo para a secretária, não tenho nada com isso, respondeu: “é,... peça para que entre.”

Começou aí um diálogo, digno de registro para a posteridade. Dr. João de um lado, com suas idéias libertadoras fundamentadas numa mistura de Paulo Freire com Che Guevara. De outro lado o CH (Cirrósico Hepático), como tinha sido apelidado pelo médico, secretária e as enfermeiras.

Funcionário público, mais marajá do que trabalhador, buscando aposentadoria devido a uma cirrose ocasionada pela alta quantidade de álcool em seu organismo. O paciente entrou observando bem o espaço, como se dissesse para si mesmo que aquela seria a última visita ao médico e que, não sabe porque, deveria apreciar bem os cartazes e os diplomas pendurados na parede. Sentou defronte à mesa do médico com um cara de doente pidonho, em seus pensamentos certamente estaria escrito: “estou doente, doutor, me libera logo.”

Ocorreu as apresentações de praxe do tipo como vão os negócios, a família, o trabalho. Seria até uma injustiça ao funcionalismo público perguntar sobre o trabalho, sendo que o paciente raramente dava as caras no emprego, apesar de seu salário sendo creditado na conta bancária.

Como as apresentações tinham cessado, Dr. João puxou de seu fichário a extensa ficha do paciente e começou a narrar o diagnóstico:

— Senhor Cláudio Roberto, o senhor está com cirrose em estado avançado e surgindo uma hepatite B, isso é conseqüência da grande quantidade de bebida alcoólica ingerida pelo senhor durante um período longo. Diga-me uma coisa: o senhor bebe muito?

— Olha, doutor — respondeu o paciente com um sentimento de culta — Normalmente bebia todos os dias.

— E o seu trabalho? Indagou o médico.

— Bem, eu comecei neste município como professor, sabe como é, é só dá algumas explicadas na matéria e depois pedir para que os alunos leiam o texto e respondam o questionário.

— O senhor está dizendo que bebia durante o trabalho? Que ia trabalhar embriagado? – Perguntou o médico.

— Olha doutor, todo dia não, só o dia que eu acordava mais cedo, aí bebia alguns goles mas era para agüentar a lida.

— E os alunos não desconfiavam, seus colegas, o diretor da escola, o que eles diziam?

— Bem, os alunos não diziam nada porque eles estavam ali para aprender e obedecer ao professor, meus colegas e a direção da escola também não diziam nada porque eu sou chegado do poder, tenho “costas largas” na prefeitura e daí ninguém reclamava com medo de ser perseguido; o senhor sabe que quem tem boa relação com o poder tem mais privilégios.

Com um olhar de revoltado Dr. João ficou imaginando e perguntando para si mesmo, que poder é esse que sustenta uma pessoa que, pelas leis, deveria ser expulso e internado para tratamento. E pior ainda é deixar que trabalhe com crianças. O que pensavam do futuro essas crianças? Não é preciso fazer nada além de cumprir a lei. Embriaguez é motivo de demissão por justa causa. Que poder corrupto é esse? Como uma sociedade pode aceitar que isso ocorra sem nenhuma atitude.

— Sabe Doutor depois de algum tempo, pouco tempo, fui indicado para ser diretor de escola, já era tempo, porque o que eu ajudei a eleger de político nessa cidade não foi pouco, então merecia alguma coisa melhor do que ficar agüentando pirralho em sala de aula.

— Continue por favor. E quando o senhor foi diretor de escola, continuava bebendo?

— Bem, bebia um pouco mais, porque não precisava chegar cedo na escola, quem tinha que chegar no horário era os alunos e os professores, o diretor não. O diretor vai para a escola na hora que bem entender, eu acabava bebendo mais e tinha dia que nem aparecia para trabalhar, e depois tinha que fazer alguns contatos políticos.

Doutor João lembrou de um escritor que falava que um povo evolui quando tem um líder que estimula e dá exemplos e perguntou para si mesmo: Que estímulo esta escola tinha para trabalhar? E que exemplo de líder os professores tinham? Mais uma vez veio a lembrança do podre poder que tinha a audácia de fazer uma pessoa sem responsabilidades ser um líder de uma comunidade escolar.

— Estou sabendo que o senhor não é mais diretor de escola. Qual é a sua função nesse momento?

— Agora sou orientador vocacional. É uma cargo que existia e ninguém queria pegar porque diziam que era de muitas responsabilidades, orientar os alunos em relação a que profissão devem seguir, a que curso devem prestar vestibular. É fácil porque a maioria dos alunos já sabem o que vão estudar, eles trazem isto definido de casa em conversas com os pais. Está sendo moleza. Neste cargo eu posso fazer meus contatos políticos e tomar bebidinhas mais que o normal.

O doutor novamente se revoltou perguntando para si: Onde estamos? Que tipo de poder público aceita isso? Que tipo de sociedade aceita isso? Que alunos foram orientados por esse professor, que na verdade é ele que precisa de orientação? Ainda bem que não existe muitos desses, ou existe?

— Bem senhor Cláudio Roberto, enviarei um relatório ao INSS para que o senhor seja aposentado. Espero que o senhor aproveite bem a aposentadoria.

E assim termina o diálogo entre médico e paciente. O paciente em trinta dias conseguiu sua aposentadoria e resolveu passar uns dias na praia. Soube-se depois que sua cirrose agravou matando-o em seu descanso merecido depois de anos de trabalho.

Valter Figueira
Enviado por Valter Figueira em 22/05/2006
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