Um dia de passados

- Oi, tudo bem?

- Podes bater uma foto minha com o mar ao fundo? (clic)

- Obrigada, fostes muito gentil.

Será que tenho cara de fotógrafa? Aqui estou eu, sentada nesta mureta de pedra, a olhar este mar que nem sei bem para onde leva os meus pensamentos e hora a hora alguém me pede para bater uma foto. Olho em volta e há várias pessoas. Porque eu? Porque a me tirarem desse vasto e desconhecido vazio? Deixem-me aqui, quieta no meu canto.

O olhar fixo na linha distante do horizonte; um navio do tamanho de uma cabeça de alfinete; para onde ele segue? Ele vem de algum lugar ou vai para algum lugar? Que pergunta mais idiota. Um dia sem sol, sem céu azul, sentada há horas em um muro frio de pedras, a espera que a terra gire a minha frente para que eu possa ver o que tem depois daquele navio.

Tomo a atenção para as crianças que brincam na areia. Baldinhos de plástico, pázinhas, rastelos. Uma delas corre a beira mar e trás um pouco de água dentro do balde, enquanto a outra cava um buraco na areia. Por mais que eu queira voltar a minha atenção ao horizonte, aquilo me toma hipnóticamente.

A areia tirada do buraco transforma-se em um monte que vai tomando formas geométricas com os tapinhas das mãos. Logo vem a forma do que não seria outra coisa senão um castelo. Lá estão as mãos a molhar a areia no balde e deixar escorrer e formar gotas por cima daquela arquitetura. Logo me vem um sorriso saudoso. Quantos castelinhos de areia eu já construí? E pensava: Quando eu crescer, vou ter um igualzinho.

Volto a olhar o horizonte; aquele navio; parece até que não sai do lugar. Parece até que se move em milímetros. Dá a sensação que posso tê-lo na palma da mão. Tão pequeno naquela imensidão de água. Como se estivesse ancorado.

Fecho um dos olhos, coloco o meu dedo indicador acima do navio e brinco de tentar afundá-lo; mas ele some por detrás do dedo.

Ouço gargalhadas e quando dou por conta, alguns adolescentes a rirem do meu grande feito patético.

Um grupo de jovens a flor da idade divididos em turma com uma rede ao centro e uma bola. Ah! Meus tempos de vôlei de praia. As flertadas com os rapazes. Os jogos de seduções. Um dos garotos parece estar a se exibir. Alongamentos com os braços, cabeça em movimentos circulares, e as meninas a cochicharem uma com as outras. Com certeza a disputarem aquele Eros da areia. Rindo comigo mesma. Parece até um espelho a refletir os bons tempos.

- Ei tia, joga a bola aí!

Tia? Era comigo? Olho aos meus pés e lá está ela, toda colorida esperando para levar um tapa.

Pego a bola, limpo a areia... É, porque não? Posiciono a bola a frente, levanto a mão, jogo a bola ao ar e o famoso tapa.

- Valeu tia, grande lance.

Com um sinal de positivo com o dedão, -mal sabem eles as dores no ombro que senti –amarelei num sorriso a dizer: - Valeu *tchurma*. Já não sou aquela adolescente. O que estou pensando?

E olhe lá o navio; ainda no mesmo lugar. Será que é um pesqueiro? Ou um cargueiro com problemas na “rebinboca da parafuseta” - Uma longa gargalhada. Eu não resisti à faceta.

- Olha a esfiha, coxinha, empadinha e bolinho de bacalhau!

Aos risos eu imaginei que aquilo não poderia faltar numa praia. O famoso vendedor de salgadinhos.

Até fez-me lembrar de uma portuguesa que fazia uns bolinhos de bacalhau de dar água na boca no Deus Netuno.

- Água de coco geladinha, quem vai querer?

Mesmo sem sol, até que a sede já estava a me consumir. Dei-lhe lá “cinco reaus”, como ele havia cobrado.

Não muda nada; apenas os figurantes. As mesmas cenas, como quadros em tela com movimentos; e os meus já em tons de sépia, apontavam o tempo já passado. E lá está o navio, no mesmo ponto. Há quantas braçadas de distancia ele estará?

O dia já começa a deixar de ser dia. As tonalidades alteram-se e uma ou duas estrelas já brilham no céu. Uma, a mais brilhante, dizia meu avô, que era Vênus. Também posso tocá-la com a ponta do dedo, mas chegar até ela? Tenho medo de altura. Volto a atenção ao navio. Empurro as sandálias para fora dos pés e piso firme na areia. Olho para trás e já há luzes nos edifícios. Fito novamente aquele navio e caminho em direção ao mar.

Ouço ainda, em volta, um certo falatório entre as pessoas que permanecem na praia. Na beira, espero a onda chegar devagar e molhar meus pés. A água nem está fria. Ainda morna pelo mormaço da tarde. Adentro aquele mar, com os olhos fixados naquele navio que já tem luzes. É, talvez seja um iate, com pessoas a se divertirem entre si.

O silêncio já começa a tomar conta da noite. Apenas o som das braçadas que me levam mais adentro. Paro por um momento, apenas a manter-me mexendo os pés. Viro-me para trás e a praia, quase que não a vejo. Apenas pequeninas luzes a piscarem como estrelinhas.

De volta à atenção para o navio; ele cresceu tão pouco. Levanto a cabeça a olhar o céu e parece que um manto negro, bordado de estrelas está pronto a me cobrir. Uma lua pintada de prateado reflete uma luz no mar que vem de encontro a mim, como que me guiando um caminho. O navio. Será que num mergulho aproximo-me mais dele?

Mergulhei. Que sensação. Um silêncio inigualável, nada nunca sentido. Quanto mais fundo, mais tranqüilo. Olho para cima e a lua, turva no movimento daquele mar; vai desaparecendo como se uma nuvem passasse entre mim e ela. E mais ainda eu mergulhava.

De repente, uma luz azulada, subia de encontro a mim. Quanto mais perto, mais lindo era aquele azul; e cercava-se de um branco indescritível.

Uma música acompanhava aquela cor. Pareciam harpas em harmonia com o mar. Não era como um canto de sereia. E mais nos aproximávamos e eu podia ver agora uma forma de círculo. É como se fosse uma bola de cristal irradiando aquela luz branca, e dentro dela aquele tom de azul parecia puxar-me para dentro. Olho novamente para cima e não vejo mais o brilho da lua.

Mas para que querer a lua, se aquela bola de cristal era tão linda, tão mais linda que a lua!

Senti como se u’a mão tomasse por mim e puxara-me para dentro.

Do lado de dentro eu já não via mais o mar de antes. Eu apenas sentia que aquela bola girava em volta de mim, e apenas podia sentir um cheiro diferente.

Ali, eu vi toda a minha vida, toda à gente com quem convivi. As risadas, as festas, as brigas, as confraternizações e também as conspirações. Até quem eu não conhecia estavam lá, não sei o por quê, mas estavam; toda uma vida, e nada ali eu pude tocar. Não me ouviam, não me viam. Tudo no branco e no preto.

E a cada volta, as imagens se distorciam e sumiam até que restou apenas um branco. Dei apenas um longo respiro.

Eu não sentia mais dores, eu não tinha mais lágrimas. Nada mais me angustiava. Eu nunca soube que lugar era aquele. Eu só tinha uma certeza: Eu estava em Paz.

Anna Müller
Enviado por Anna Müller em 11/06/2006
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